DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
III
A
PESSOA E OS SEUS DIREITOS
III.
A PESSOA HUMANA E OS SEUS VÁRIOS PERFIS
B)
ABERTURA À TRANSCENDÊNCIA E UNICIDADE DA PESSOA
a)
Aberta à transcendência
130
À pessoa humana pertence a abertura à transcendência: o homem é aberto ao
infinito e a todos os seres criados. É aberto antes de tudo ao infinito, isto
é, a Deus, porque com a sua inteligência e a sua vontade se eleva acima de toda
a criação e de si mesmo, torna-se independente das criaturas, é livre perante
todas as coisas criadas e tende à verdade e ao bem absolutos. É aberto também
ao outro, aos outros homens e ao mundo, porque somente enquanto se compreende
em referência a um tu pode dizer eu. Sai de si, da conservação egoísta da
própria vida, para entrar numa relação de diálogo e de comunhão com o outro.
A
pessoa é aberta à totalidade do ser, ao horizonte ilimitado do ser. Tem em si a
capacidade de transcender cada objecto particular que conhece, efectivamente,
graças a esta sua abertura ao ser sem confins. A alma humana é, num certo
sentido, pela sua dimensão cognoscitiva, todas as coisas: «todas as coisas
imateriais gozam de uma certa infinidade, enquanto abraçam tudo, ou porque se
trata da essência de uma realidade espiritual que serve de modelo e semelhança
de tudo, como é no caso de Deus, ou porque possui a semelhança de tudo, ou em
ato como nos Anjos, ou em potência como nas almas».
b)
Única e irrepetível
131
O homem existe como ser único e irrepetível, existe com « eu», capaz de
autocompreender-se, de autopossuir-se, de autodeterminar-se. A pessoa humana é
um ser inteligente e consciente, capaz de reflectir sobre si mesma e, portanto,
de ter consciência dos próprios actos. Não são, porém, a inteligência, a
consciência e a liberdade a definir a pessoa, mas é a pessoa que está na base
dos actos de inteligência, de consciência, de liberdade. Tais actos podem mesmo
faltar, sem que por isso o homem cesse de ser pessoa.
A
pessoa humana há de ser sempre compreendida na sua irrepetível e ineliminável
singularidade. O homem existe, com efeito, antes de tudo como subjectividade,
como centro de consciência e de liberdade, cuja história única e não comparável
com nenhuma outra expressa a sua irredutibilidade a toda e qualquer tentativa
de constrangê-lo dentro de esquemas de pensamento ou sistemas de poder,
ideológicos ou não. Isto impõe, antes de tudo, a exigência não somente do simples
respeito por parte de todos, e especialmente das instituições políticas e
sociais e dos seus responsáveis para com cada homem desta terra, mas bem mais,
isto comporta que o primeiro compromisso de cada um em relação ao outro e
sobretudo destas mesmas instituições, seja precisamente a promoção do
desenvolvimento integral da pessoa.
c)
O respeito da dignidade humana
132
Uma sociedade justa pode ser realizada somente no respeito pela dignidade
transcendente da pessoa humana. Esta representa o fim último da sociedade, que
a ela é ordenada: «Também a ordem social e o seu progresso devem subordinar-se
constantemente ao bem da pessoa, visto que a ordem das coisas deve submeter-se
à ordem pessoal e não o contrário». O respeito pela dignidade da pessoa
não pode absolutamente prescindir da obediência ao princípio de considerar «o
próximo como “outro eu”, sem exceptuar nenhum, levando em consideração antes de
tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente». É
necessário, portanto, que todos os programas sociais, científicos e culturais
sejam orientados pela consciência do primado de cada ser humano.
133
Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao
seu mesmo progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente
em Deus e em Seu projecto salvífico: efectivamente o homem, na sua
interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si
mesma. Por esta razão nem a sua vida, nem o desenvolvimento do seu
pensamento, nem os seus bens, nem os que compartilham as sua história pessoal e
familiar, podem ser submetidos a injustas restrições no exercício dos próprios
direitos e da própria liberdade.
A
pessoa não pode ser instrumentalizada para projectos de carácter económico,
social e político impostos por qualquer que seja a autoridade, mesmo que em
nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras
pessoas, no presente e no futuro. È necessário portanto que as autoridades
públicas vigiem com atenção, para que toda a restrição da liberdade ou qualquer
género de ónus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e
para que seja garantida a efectiva praticabilidade dos direitos humanos. Tudo
isto, uma vez mais, se funda na visão do homem como pessoa, ou seja, como
sujeito activo e responsável do próprio processo de crescimento, juntamente com
a comunidade de que faz parte.
134
As autênticas transformações sociais são efectivas e duradouras somente se
fundadas sobre mudanças decididas da conduta pessoal. Nunca será possível uma
autêntica moralização da vida social, senão a partir das pessoas e em
referência a elas: efectivamente: «o exercício da vida moral atesta a dignidade
da pessoa». Às pessoas cabe evidentemente o desenvolvimento daquelas
atitudes morais fundamentais em toda a convivência que se queira dizer
verdadeiramente humana (justiça, honestidade, veracidade, etc.), que de modo
algum poderá ser simplesmente esperada dos outros ou delegada às instituições.
A todos, e de modo particular àqueles que de qualquer modo detêm
responsabilidades políticas, jurídicas ou profissionais em relação aos outros,
incumbe o dever de ser consciência vígil da sociedade e, eles mesmos por
primeiro, ser testemunhas de uma convivência civil e digna do homem.
C)
A LIBERDADE DA PESSOA
a)
Valor e limites da liberdade
135
O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como
sinal altíssimo da Sua imagem: «Deus quis “deixar o homem nas mãos do seu
desígnio” (cf. Eclo 15, 14), para que ele procure espontaneamente o seu Criador
e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e bem-aventurada perfeição. A dignidade
humana exige, portanto, que o homem actue segundo a sua consciente e livre
escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por
um impulso interior cego, ou por mera coação externa».
O
homem justamente aprecia a liberdade e com paixão a procura: justamente quer e
deve formar e guiar, de sua livre iniciativa, a sua vida pessoal e social,
assumindo por ela plena responsabilidade. A liberdade, com efeito, não só
muda convenientemente o estado de coisas externas ao homem, mas determina o
crescimento do seu ser pessoa, mediante escolhas conformes ao verdadeiro
bem: desse modo, o homem gera-se a si próprio, é pai do próprio ser,
constrói a ordem social.
136
A liberdade não se opõe à dependência criatural do homem para com Deus. A
Revelação ensina que o poder de determinar o bem e o mal não pertence ao homem,
mas somente a Deus (cf. Gn 2, 16-17). «O homem é certamente livre, uma vez que
pode compreender e acolher os mandamentos de Deus. E goza de uma liberdade
bastante ampla, já que pode comer “de todas as árvores do jardim”. Mas esta
liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “árvore da ciência do bem e
do mal”, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem. Na verdade,
a liberdade do homem encontra a sua verdadeira e plena realização, precisamente
nesta aceitação».
137
O recto exercício do livre arbítrio exige precisas condições de ordem económica,
social, política e cultural que «são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas
situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os
fortes como os frágeis à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei
moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe
a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina».
A libertação das injustiças promove a liberdade e a dignidade humana: porém é
«necessário, antes de tudo, apelar para as capacidades espirituais e morais da
pessoa e para a exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter
mudanças económicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem».
b)
O vínculo da liberdade com a verdade e a lei natural
138.
No exercício da liberdade, o homem põe actos moralmente bons, construtivos da
pessoa e da sociedade, quando obedece à verdade, ou seja, quando não pretende
ser criador e senhor absoluto desta última e das normas éticas. A
liberdade, com efeito, «não tem o seu ponto de partida absoluto e
incondicionado em si própria, mas na existência em que se encontra e que
representa para ela, simultaneamente, um limite e uma possibilidade. É a
liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que deve ser acolhida
como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade». Caso
contrário, morre como liberdade, destrói o homem e a sociedade.
139
A verdade sobre o bem e o mal é reconhecida prática e concretamente pelo juízo
da consciência, o qual leva a assumir a responsabilidade do bem realizado e do
mal cometido: «Desta forma, no juízo prático da consciência, que impõe à pessoa
a obrigação de cumprir um determinado ato, revela-se o vínculo da liberdade com
a verdade. Precisamente por isso a consciência se exprime com actos de “juízo”
que reflectem a verdade do bem, e não com “decisões” arbitrárias. E a maturidade
e responsabilidade daqueles juízos — e, em definitivo, do homem que é o seu
sujeito — medem-se, não pela libertação da consciência da verdade objectiva em
favor de uma suposta autonomia das próprias decisões, mas, ao contrário, por
uma procura insistente da verdade deixando-se guiar por ela no agir».
140
O exercício da liberdade implica a referência a uma lei moral natural, de carácter
universal, que precede e unifica todos os direitos e deveres. A Lei
natural «não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à qual
conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei,
deu-a Deus ao homem na criação» e consiste na participação na Sua lei
eterna, a qual se identifica com o próprio Deus. Esta lei é chamada
natural porque a razão que a promulga é própria da natureza humana. Ela é
universal, estende-se a todos os homens enquanto estabelecida pela razão. Nos
seus preceitos principais, a lei divina e natural é exposta no Decálogo e
indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. Ela tem
como eixo a aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo o bem, e bem
assim o sentido do outro como igual a si mesmo. A lei natural exprime a
dignidade da pessoa humana e estabelece as bases dos seus direitos e dos seus
deveres fundamentais.
141
Na diversidade das culturas, a lei natural liga os homens entre si, impondo
princípios comuns. Por quanto a sua aplicação requeira adaptações à
multiplicidade de condições de vida, segundo os lugares, as épocas e as circunstâncias,
ela é imutável, permanece «sob o influxo das ideias e dos costumes e constitui
a base para o seu progresso... Mesmo que alguém negue até os seus princípios,
não é possível destruí-la, nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a
ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades».
Os
seus preceitos, todavia, não são percebidos por todos de modo claro e imediato.
As verdades religiosas e morais podem ser conhecidas «por todos e sem
dificuldade, com firme certeza e sem mistura de erro», somente com a ajuda
da Graça e da Revelação. A lei natural é um fundamento preparado por Deus para
a Lei revelada e para a Graça, em plena harmonia com a obra do Espírito.
142
A lei natural, que é lei de Deus, não pode ser cancelada pela iniquidade
humana. Ela põe o fundamento moral indispensável para edificar a
comunidade dos homens e para elaborar a lei civil que tira consequências de
natureza concreta e contingente dos princípios da lei natural. Se se
ofusca a percepção da universalidade da lei moral, não se pode edificar uma
comunhão real e duradoura com o outro, porque sem uma convergência para a
verdade e o bem, «de forma imputável ou não, os nossos actos ferem a comunhão
das pessoas, com prejuízo para todos». Somente uma liberdade radicada na
comum natureza pode tornar todos os homens responsáveis e é capaz de justificar
a moral pública. Quem se autoproclama medida única das coisas e da verdade não
pode conviver e colaborar com os próprios semelhantes.
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