22/05/2019

Leitura espiritual


COMPÊNDIO 
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA


CAPÍTULO II

MISSÃO DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL

II. A NATUREZA DA DOUTRINA SOCIAL

c) Expressão do ministério de ensinamento da Igreja

79 A doutrina social é da Igreja porque a Igreja é o sujeito que a elabora, difunde e ensina. Essa não é prerrogativa de uma componente do corpo eclesial, mas da comunidade inteira: expressão do modo como a Igreja compreende a sociedade e se coloca em relação às suas estruturas e às suas mudanças. Toda a comunidade eclesial — sacerdotes, religiosos e leigos — concorre para constituir a doutrina social, segundo a diversidade, no seu interior, de tarefas, carismas e ministérios.

Os contributos multíplices e multiformes — expressões estas também do «sentido sobrenatural da fé (sensus fidei) do povo inteiro» — são assumidos, interpretados e unificados pelo Magistério, que promulga o ensinamento social como doutrina da Igreja. O Magistério compete na Igreja àqueles que estão investidos do «munus docendi», ou seja, do ministério de ensinar no campo da fé e da moral com a autoridade recebida de Cristo. A doutrina social não é somente o fruto do pensamento e da obra de pessoas qualificadas, mas é o pensamento da Igreja, enquanto obra do Magistério, o qual ensina com a autoridade que Cristo conferiu aos Apóstolos e aos seus sucessores: o Papa e os Bispos em comunhão com ele.

80 Na doutrina social da Igreja actua o Magistério em todas as suas componentes e expressões. Primário é o Magistério universal do Papa e do Concílio: é este Magistério que determina a direcção e assinala o desenvolvimento da doutrina social. Ele, por sua vez, é integrado pelo Magistério episcopal, que especifica, traduz e actualiza o seu ensino na concretude e peculiaridade das múltiplas e diferentes situações locais. O ensinamento social dos Bispos oferece valiosos contributos e estímulos ao Magistério do Romano Pontífice. Actua-se assim uma circularidade, que exprime de facto a colegialidade dos Pastores unidos ao Papa no ensinamento social da Igreja. O complexo doutrinal que daí resulta compreende e integra assim o ensinamento universal dos Papas e o particular dos Bispos.

Enquanto parte do ensinamento moral da Igreja, a doutrina social reveste a mesma dignidade e possui autoridade idêntica à de tal ensinamento. Ela é Magistério autêntico, que exige a aceitação e a adesão por parte dos fiéis. O peso doutrinal dos vários ensinamentos e o assentimento que requerem devem ser ponderados em função da sua natureza, do seu grau de independência em relação a elementos contingentes e variáveis, e da frequência com que são reafirmados.

d) Por uma sociedade reconciliada na justiça e no amor

81 O objecto da doutrina social da Igreja é essencialmente o mesmo que constitui e motiva a sua razão de ser: o homem chamado à salvação e como tal confiado por Cristo à cura e à responsabilidade da Igreja. Com a doutrina social, a Igreja se preocupa com a vida humana na sociedade, ciente de que da qualidade da experiência social, ou seja, das relações de justiça e de amor que a tecem, depende de modo decisivo a tutela e a promoção das pessoas, para as quais toda comunidade è constituída. Efectivamente, na sociedade estão em jogo a dignidade e os direitos das pessoas e a paz nas relações entre pessoas e entre comunidades de pessoas. Bens estes que a comunidade social deve perseguir e garantir.

Nesta perspectiva, a doutrina social cumpre uma função de anúncio mas também de denúncia.

Em primeiro lugar, o anúncio do que a Igreja tem de próprio: «uma visão global do homem e da humanidade». E isso não só no nível dos princípios, mas também prático. A doutrina social, com efeito, não oferece somente significados, valores e critérios de juízo, mas também as normas e as directrizes de acção que daí decorrem. Com a sua doutrina social, a Igreja não persegue fins de estruturação e organização da sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências.

A doutrina social comporta também um dever de denúncia, em presença do pecado: é o pecado de injustiça e de violência que de vário modo atravessa a sociedade e nela toma corpo. Tal denúncia se faz juízo e defesa dos direitos ignorados e violados, especialmente dos direitos dos pobres, dos pequenos, dos fracos, e tanto mais se intensifica quanto mais as injustiças e as violências se estendem, envolvendo inteiras categorias de pessoas e amplas áreas geográficas do mundo, e dão lugar a questões sociais, ou seja, a opressões e desequilíbrios que conturbam as sociedades. Boa parte do ensinamento social da Igreja é solicitado e determinado pelas grandes questões sociais, de que quer ser resposta de justiça social.

82 O intento da doutrina social da Igreja é de ordem religiosa e moral. Religioso porque a missão evangelizadora e salvífica da Igreja abraça o homem «na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social» Moral porque a Igreja visa a um «humanismo total», vale dizer à «libertação de tudo aquilo que oprime o homem» e ao «desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens». A doutrina social indica e traça os caminhos a percorrer por uma sociedade reconciliada e harmonizada na justiça e no amor, antecipadora na história, de modo incoativo e prefigurativo, daqueles «novos céus e ... nova terra, nos quais habitará a justiça» (2Pd 3, 13).

e) Uma mensagem para os filhos da Igreja e para a humanidade

83 A primeira destinatária da doutrina social é a comunidade eclesial em todos os seus membros, porque todos têm responsabilidades sociais a assumir. A consciência é interpelada pelo ensinamento social para reconhecer e cumprir os deveres de justiça e de caridade na vida social. Tal ensinamento é luz de verdade moral, que suscita respostas apropriadas segundo a vocação e o ministério próprios de cada cristão. Nas tarefas de evangelização, a saber, de ensinamento, de catequese e de formação, que a doutrina social da Igreja suscita, essa é destinada a todo cristão, segundo as competências, os carismas, os ofícios e a missão de anúncio próprios de cada um.

A doutrina social implica, outrossim, responsabilidades referentes à construção, à organização e ao funcionamento da sociedade: obrigações políticas, económicas, administrativas, vale dizer, de natureza secular, que pertencem aos fiéis leigos, não aos sacerdotes e aos religiosos. Tais responsabilidades competem aos leigos de modo peculiar, em razão da condição secular do seu estado de vida e da índole secular da sua vocação: mediante essas responsabilidades, os leigos põem em prática o ensinamento social e cumprem a sua missão secular da Igreja.

84 Além da destinação, primária e específica, aos filhos da Igreja, a doutrina social tem uma destinação universal. A luz do Evangelho, que a doutrina social reverbera sobre a sociedade, ilumina todos os homens, e cada consciência e inteligência se torna apta a colher a profundidade humana dos significados e dos valores por ela expressos, bem como a carga de humanidade e de humanização das suas normas de acção. De modo que todos, em nome do homem, da sua dignidade una e única, e da sua tutela e promoção na sociedade, todos, em nome do único Deus, Criador e fim último do homem, são destinatários da doutrina social da Igreja. A doutrina social é um ensinamento expressamente dirigido a todos os homens de boa vontade e efectivamente é escutada pelos membros de outras Igrejas e comunidades eclesiais, pelos sequazes de outras tradições religiosas e por pessoas que não pertencem a algum grupo religioso.

f) No signo da continuidade e da renovação

85 Orientada pela luz perene do Evangelho e constantemente atenta à evolução da sociedade, a doutrina social da Igreja caracteriza-se pela continuidade e pela renovação.

Essa manifesta em primeiro lugar a continuidade de um ensinamento que se remonta aos valores universais que derivam da Revelação e da natureza humana. Por este motivo a doutrina social da Igreja não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias, das várias opiniões: ela é um ensinamento constante, que «se mantém idêntica na sua inspiração de fundo, nos seus “princípios de reflexão”, nos seus “critérios de julgamento”, nas suas basilares “directrizes de acção” e, sobretudo, na sua ligação vital com o Evangelho do Senhor». Neste seu núcleo principal e permanente a doutrina social da Igreja atravessa a história, sem sofrer os condicionamentos e não corre o risco da dissolução.

Por outro lado, no seu constante voltar-se à história, deixando-se interpelar pelos eventos que nela se produzem, a doutrina social da Igreja manifesta uma capacidade de contínua renovação. A firmeza nos princípios não faz dela um sistema de ensinamentos rígido e inerte, mas um Magistério capaz de abrir-se às coisas novas, sem se desnaturar nelas: um ensinamento sempre novo, «sujeito a necessárias e oportunas adaptações, sugeridas pela mudança das condições históricas e pelo incessante fluir dos acontecimentos, que incidem no desenrolar da vida dos homens e das sociedades».

86 A doutrina social da Igreja se apresenta assim como um «canteiro» sempre aberto, em que a verdade perene penetra e permeia a novidade contingente, traçando caminhos inéditos de justiça e de paz. A fé não pretende aprisionar num esquema fechado a mutável realidade sócio-política. É verdade antes o contrario: a fé é fermento de novidade e criatividade. O ensinamento que nela sempre se inicia «se desenvolve por meio de uma reflexão que é feita em permanente contacto com as situações deste mundo, sob o impulso do Evangelho qual fonte de renovação».

Mãe e Mestra, a Igreja não se fecha nem se retrai em si mesma, mas está sempre exposta, inclinada e voltada para o homem, cujo destino de salvação é a sua própria razão de ser. Ela é entre os homens o ícone vivente do Bom Pastor, que vai buscar e encontrar o homem onde ele se encontra, na condição existencial e histórica do seu viver. Aqui a Igreja se torna para ele encontro com o Evangelho, mensagem de libertação e de reconciliação, de justiça e de paz.


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