DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
A TODA A HUMANIDADE
III. A PESSOA HUMANA NO
DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS
d) Transcendência da
salvação e autonomia das realidades terrestres
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A pessoa humana não pode e não deve ser instrumentalizada por estruturas
sociais, económicas e políticas, pois todo homem tem a liberdade de orientar-se
para o seu fim último.
Por
outro lado, toda a realização cultural, social, económica e política, em que se
actuam historicamente a sociabilidade da pessoa e a sua actividade
transformadora do universo, deve sempre ser considerada também no seu aspecto
de realidade relativa e provisória, porque «a figura desse mundo passa!» (1 Cor 7, 31).
Trata-se
de uma relatividade escatológica, no sentido de que o homem e o mundo vão ao
encontro do fim, que é o cumprimento do seu destino em Deus; e de uma relatividade
teológica, enquanto o dom de Deus, mediante o qual se cumprirá o destino
definitivo da humanidade e da criação, supera infinitamente as possibilidades e
as expectativas do homem.
Qualquer
visão totalitária da sociedade e do Estado e qualquer ideologia puramente
intramundana do progresso são contrárias à verdade integral da pessoa humana e
ao desígnio de Deus na história.
IV. DESÍGNIO DE DEUS E
MISSÃO DA IGREJA
a) A Igreja, sinal e
tutela da transcendência da pessoa humana
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A Igreja, comunidade daqueles que são convocados pelo Cristo Ressuscitado e se
põem no seu seguimento, é o «sinal e a salvaguarda da dignidade da pessoa
humana» [i].
Ela
«é em Cristo como que sacra to ou sinal, e também instrumento da íntima união
com Deus e da unidade de todo o género humano» [ii].
A
missão da Igreja é a de anunciar e comunicar a salvação realizada em Jesus
Cristo, que Ele chama «Reino de Deus» (Mc 1, 15), ou seja, a
comunhão com Deus e entre os homens. O fim da salvação, o Reino de Deus, abraça
todos os homens e se realizará plenamente além da história, em Deus. A Igreja
recebeu «a missão de anunciar e estabelecer em todas as gentes o Reino de
Cristo e de Deus, e constitui ela própria na terra o germe e o início deste
Reino» [iii].
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A Igreja põe-se concretamente ao serviço do Reino de Deus, antes de mais nada,
anunciando e comunicando o Evangelho da salvação e constituindo novas
comunidades cristãs. Ela, ademais, «serve o Reino, difundindo pelo mundo os
“valores evangélicos”, que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a
acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se
pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na
medida em que ela viva os “valores evangélicos” e se abra à acção do Espírito
que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar,
logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto
não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para
a plenitude escatológica» [iv].
Donde deriva, em particular, que a Igreja não
se confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema
político [v].
A
comunidade política e a Igreja, no próprio campo, são efectivamente
independentes e autónomas uma em relação à outra, e estão ambas, embora a
diferentes títulos, «ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens» [vi].
Pode,
antes, afirmar-se que a distinção entre religião e política e o princípio da
liberdade religiosa constituem uma aquisição específica do cristianismo, de
grande relevo no plano histórico e cultural.
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À identidade e à missão da Igreja no mundo, segundo o projecto de Deus
realizado em Cristo, corresponde «uma finalidade salvífica e escatológica, que
só pode ser plenamente alcançada no século futuro» [vii].
Justamente
por isso, a Igreja oferece um contributo original e insubstituível à comunidade
humana com a solicitude que a impele a tornar mais humana a família dos homens
e a sua história, e a pôr-se como baluarte contra qualquer tentação
totalitarista, indicando ao homem a sua vocação integral e definitiva [viii].
Com
a pregação do Evangelho, a graça dos sacramentos e a experiência da comunhão
fraterna, a Igreja sana e eleva a dignidade da pessoa humana, «firmando a
coesão da sociedade e dando à actividade diária dos homens um sentido e um
significado mais profundos» [ix].
No
plano das dinâmicas históricas concretas, não se pode compreender o advento do
Reino de Deus na perspectiva de uma organização social, económica e política
definida e definitiva.
Ele
é antes testemunhado pelo progresso de uma sociabilidade humana que é para os
homens fermento de realização integral, de justiça e de solidariedade, na
abertura ao Transcendente como termo referencial para a própria definitiva e
plena realização pessoal.
b) Igreja, Reino de Deus e
renovação das relações sociais
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Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações
sociais entre os homens. Como ensina o apóstolo Paulo, a vida em Cristo faz vir
à tona de modo pleno e novo a identidade e a sociabilidade da pessoa humana,
com as suas concretas consequências no plano histórico e social: «Todos sois
filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes baptizados em
Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem
livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gal
3, 26-28).
Nesta
perspectiva, as comunidade eclesiais, convocadas pela mensagem de Jesus Cristo
e reunidas no Espírito Santo ao redor do Ressuscitado (cf. Mt 18, 20; 28,
19-20; Lc 24, 46-49), se propõem como lugar de comunhão, de testemunho e
de missão e como fermento de redenção e de transformação das relações sociais.
A
pregação do Evangelho de Jesus induz os discípulos a antecipar o futuro
renovando as relações recíprocas.
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A transformação social que responde às exigências do Reino de Deus não está
estabelecida nas suas determinações concretas uma vez por todas. Trata-se antes
de uma tarefa confiada à comunidade cristã, que a deve elaborar e realizar
através da reflexão e da praxe inspiradas no Evangelho.
É
o próprio Espírito do Senhor que conduz o povo de Deus e, concomitantemente,
preenche o universo [x],
inspirando, de tempos em tempos, soluções novas e actuais à criatividade
responsável dos homens [xi],
à comunidade dos cristãos inserida nos dinamismos do mundo e da história e, por
isso mesmo, aberta ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade, na procura
comum dos germes de verdade e de liberdade disseminados no vasto campo da
humanidade [xii].
A
dinâmica de uma tal renovação deve estar ancorada nos princípios imutáveis da
lei natural, impressa por Deus Criador na Sua criatura (cf. Rm 2, 14-15)
e iluminada escatologicamente mediante Jesus Cristo.
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Jesus Cristo revela-nos que «Deus é amor» (1 Jo 4, 8) e ensina-nos
que «a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do
mundo, é o mandamento novo do amor. Destarte, aos que creem no amor divino
dá-lhes a certeza de que abrir o caminho do amor a todos os homens e instaurar
a fraternidade universal não são coisas vãs» [xiii].
Esta
lei è chamada a tornar-se a medida e a norma última de todas as dinâmicas nas
quais se desdobram as relações humanas.
Em
síntese, é o próprio mistério de Deus, o Amor trinitário, que funda o
significado e o valor da pessoa, da sociabilidade e do agir do homem no mundo,
na medida em que foi revelado e participado à humanidade, por meio de Cristo,
no Seu Espírito.
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A transformação do mundo se apresenta como uma instância fundamental também do
nosso tempo.
A
esta exigência o Magistério social da Igreja entende oferecer as respostas que
os sinais dos tempos invocam, indicando primeiramente no amor recíproco entre
os homens, sob o olhar de Deus, o instrumento mais potente de mudança, no plano
pessoal assim como no social.
O
amor recíproco, com efeito, na participação no amor infinito de Deus é o
autêntico fim, histórico e transcendente, da humanidade. Portanto, «ainda que
haja que distinguir cuidadosamente progresso terreno e crescimento do Reino de
Cristo, contudo este progresso tem muita importância para o Reino de Deus, na
medida em que pode contribuir para uma melhor organização da sociedade humana»[xiv].
[v] Cf. CONCÍLIO
VATICANO II, const. past. Gaudium et Spes, n.º 76, AAS 58, 1966, p. 1099;
Catecismo da Igreja Católica, n.º 2245.
[xii]
Cf. JOÃO PAULO
II, carta encícl. Redemptor Hominis, n.º 11, AAS 71, 1979, p. 276: «Os Padres
da Igreja viam justamente nas diversas religiões como que outros tantos
reflexos de uma única verdade, como que “germes do Verbo”, os quais testemunham
que, embora por caminhos diferentes, está voltada para a mesma direcção a mais
profunda aspiração do espírito humano».
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