COMPÊNDIO
DA DOUTRINA SOCIAL
DA IGREJA
CAPÍTULO
II
MISSÃO
DA IGREJA E DOUTRINA SOCIAL
II. A NATUREZA DA DOUTRINA
SOCIAL
a)
Um saber iluminado pela fé
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A doutrina social da Igreja não foi pensada desde o princípio como um sistema
orgânico; mas foi se formando pouco a pouco, com progressivos pronunciamentos
do Magistério sobre os temas sociais. Tal génese torna compreensível o facto
que tenham podido intervir algumas oscilações acerca da natureza, do método e
da estrutura epistemológica da doutrina social da Igreja. Precedido por um
significativo aceno na «Laborem exercens»[i],
um esclarecimento decisivo nesse sentido está contido na Encíclica «Sollicitudo
rei socialis»: a doutrina social da Igreja pertence, não ao campo da ideologia,
mas ao «da teologia e precisamente da teologia moral»[ii].
Ela não é definível segundo parâmetros sócio-económicos. Não é um sistema
ideológico ou pragmático, que visa definir e compor as relações económicas,
políticas e sociais, mas uma categoria a se. É «a formulação acurada dos
resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência
do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição
eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando
a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho
sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente;
visa, pois, orientar o comportamento cristão»[iii].
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A doutrina social, portanto, é de natureza teológica e especificamente
teológico-moral, «tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o
comportamento das pessoas»[iv]:
«Ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do
mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e
sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação
na história»[v].
Efectivamente,
a doutrina social reflete os três níveis do ensinamento teológico-moral: o
nível fundante das motivações; o diretivo das normas do viver social; o
deliberativo das consciências, chamadas a mediar as normas objectivas e gerais
nas situações sociais concretas e particulares. Estes três níveis definem
implicitamente também o método próprio e a específica estrutura epistemológica
da doutrina social da Igreja.
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A doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na
Tradição da Igreja. Neste manancial, que vem do alto, ela haure a inspiração e
a luz para compreender, julgar e orientar a experiência humana e a história.
Antes e acima de tudo está o projeto de Deus sobre a criação e, em particular,
sobre a vida e o destino do homem, chamado à comunhão trinitária.
A
fé, que acolhe a palavra divina e a põe em prática, interage eficazmente com a
razão. A inteligência da fé, em particular da fé orientada à práxis, é
estruturada pela razão e vale-se de todos os contributos que esta lhe oferece.
Também a doutrina social, enquanto saber aplicado à contingência e à
historicidade da praxe, conjuga juntas «fides
et ratio»[vi] e
é expressão eloquente da sua fecunda relação.
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A fé e a razão constituem as duas vias cognoscitivas da doutrina social, em
sendo duas as fontes nas quais esta haure: a Revelação e a natureza humana. O
conhecer da fé compreende e dirige a vida do homem à luz do mistério
histórico-salvífico, do revelar-se e doar-se de Deus em Cristo por nós homens.
Esta inteligência da fé inclui a razão, mediante a qual esta explica e
compreende a verdade revelada e a integra com a verdade da natureza humana, hauridas
no projecto divino expresso pela criação[vii],
ou seja, a verdade integral da pessoa humana enquanto ser espiritual e
corpóreo, em relação com Deus, com os outros seres humanos e com todas as
demais criaturas[viii].
O
centrar-se sobre o mistério de Cristo, portanto, não enfraquece ou exclui o
papel da razão e, por isso, não priva a doutrina social de plausibilidade
racional e, portanto, da sua destinação universal. Dado que o mistério de
Cristo ilumina o mistério do homem, a doutrina social confere plenitude de
sentido à compreensão da dignidade humana e das exigências morais que a
tutelam. A doutrina social da Igreja é um conhecer iluminado pela fé, que —
precisamente por isso — expressa a sua maior capacidade de conhecimento. Ela dá
razão a todos das verdades que afirma e dos deveres que comporta: pode
encontrar acolhimento e aceitação por parte de todos.
b)
Em diálogo cordial com todo o saber
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A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos,
qualquer que seja o saber donde provenham, e tem uma importante dimensão
interdisciplinar: «Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, económicos
e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas
disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em se os contributos que delas
provêm»[ix].
A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e
igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.
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Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se
evocar a natureza humana qual fonte e a razão qual via cognoscitiva da mesma
fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria
lógica interna, ou seja no argumentar que lhe é próprio.
Afirmar
que a doutrina social deve ser adscrita antes à teologia que à filosofia não
significa desconhecer o menosprezar o papel e o aporte filosófico. A filosofia
é, efectivamente, instrumento apto e indispensável para uma correta compreensão
de conceitos basilares da doutrina social — como a pessoa, a sociedade, a
liberdade, a consciência, a ética, o direito, a justiça, o bem comum, a
solidariedade, a subsidiariedade, o Estado —, compreensão tal que inspire uma
convivência social harmoniosa. É a filosofia ainda a ressaltar a plausibilidade
racional da luz que o Evangelho projecta sobre a sociedade e a exigir de cada
inteligência e consciência a abertura e o assentimento à verdade.
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Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências
humanas e sociais[x]:
pela parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A Igreja
reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre
mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do
facto de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a
teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia
faz referência.
A
abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja
adquira competência, concretude e actualidade. Graças a elas, a Igreja pode
para compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, de falar aos homens
do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa
de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra
de Deus e a fé, da qual a doutrina social «parte»[xi].
Este
diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de
significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e «a
abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada
na plenitude da sua vocação»[xii].
[i]
João Paulo II,
Mensagem ao Secretário Geral das Nações
Unidas por ocasião do Encontro Mundial sobre as Crianças (22 de Setembro de
1990): L’Osservatore Romano, ed. em Português, 14 de Outubro de 1990, p. 13.
[ii]
Cf. João Paulo
II, Mensagem para a celebração do Dia
Mundial da Paz 2001, 13: AAS 93 (2001) 241; Pontifício Conselho Cor Unum –
Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Os refugiados, um desafio à solidariedade,
6: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1992, p. 8.
[iv]
Cf. Santa
Sede, Carta dos direitos da família,
art.12: Tipografia Poliglota Vaticana, Cidade do Vaticano 1983, 14; João Paulo
II, Exort. apost. Familiaris consortio,
77: AAS 74 (1982) 175-178.
[v]
Cf. Concílio
Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes,
66: AAS 58 (1966) 1087-1088; João Paulo II, Mensagem
para a celebração do Dia Mundial da Paz 1993, 3: AAS 85 (1993)
[viii]
Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Para uma melhor
distribuição da terra. O desafio da reforma agrária (23 de Novembro de
1997), 13: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1997, p. 15.
[ix]
Cf. Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Para uma melhor
distribuição da terra. O desafio da reforma agrária (23 de Novembro de
1997), 35: Libreria Editrice Vaticana, Cidade do Vaticano 1997, p. 30-31.
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