17/04/2019

Leitura espiritual


Cruzando o umbral da esperança

CHAMAM-NA
«HISTÓRIA DA SALVAÇÃO»

Pergunta:

Aproveitando a cordial liberdade que quis conceder-me, permita-me continuar expondo-lhe perguntas que ainda que possa parecer-lhe peculiares, talvez exponho, como Vossa Santidade mesmo observou, em nome de não pouco dos nossos contemporâneos, os quais, ante o anúncio evangélico proposto pela Igreja, parecem perguntar-se:
Porquê esta «história da salvação», como os cristãos a chamam, se apresenta de uma forma tão complicada? Para nos perdoar, para nos salvar, um Deus-Pai tinha verdadeiramente necessidade do sacrifício cruento do Seu próprio Filho?

Resposta:

A sua pergunta respeitante à história da salvação toca o que é o significado mais profundo da salvação redentora. Comecemos lançando um olhar à história do pensamento europeu depois de Descartes.
Porque ponho também aqui Descartes em primeiro plano? Não só porque ele marca o início de uma nova época na história do pensamento europeu, mas também porque este filósofo, que certamente esta entre os maiores que a França deu ao mundo, inaugura a grande mudança antropocêntrica na filosofia. «Penso, logo existo», como antes recordamos, é o tema do racionalismo moderno.

Todo o racionalismo dos últimos tempos – tanto na sua expressão anglo-saxónica como na continental com o kantismo, o hegelianismo e a filosofia alemã dos séculos IX e XX até Husserl e Heidegger pode considerar-se uma continuação e um desenvolvimento das posições cartesianas O autor de Meditações de prima filosofia, com a sua prova ontológica, afastou-nos da filosofia da existência, e também das vias tradicionais de São Tomás. Tais vias levam a Deus, «existência autónoma», Ipsum esse subsistens («o próprio Ser subsistente»). Descartes, com a absolutização da consciência subjectiva, conduz antes para a pura consciência do Absoluto, que é o puro pensar; um tal Absoluto que não é a existência autónoma, mas de certo modo o pensar autónomo: somente faz sentido o que se refere ao pensamento humano; não importa tanto a verdade objectiva deste pensamento como próprio facto de que algo esteja presente no conhecimento humano.

Encontramo-nos no umbral do imanentismo e do subjectivismo modernos. Descartes representa o início do desenvolvimento tanto das ciências exactas e naturais como das ciências humanas segundo esta nova expressão. Com tal voltam-se as costas à metafísica e centra-se o foco de interesse na filosofia do conhecimento. Kant é o maior representante desta corrente.

Se não é possível atribuir ao pai do racionalismo moderno o afastamento do cristianismo, é difícil não reconhecer que ele criou o clima, no qual, na época moderna, tal afastamento pode realizar-se. Não se realizou de modo imediato, mas sim gradualmente.

Com efeito, uns cento e cinquenta anos depois de Descartes, comprovamos como o que era essencialmente cristão na tradição do pensamento europeu, já se colocou entre parêntesis. Estamos nos tempos em que em França o protagonista é o iluminismo uma doutrina com a qual se leva a cabo a afirmação definitiva do racionalismo puro. A Revolução francesa durante o Terror, derrubou os altares dedicados a Cristo, derrubou os crucifixos dos caminhos, e no seu lugar introduziu a deusa Razão, sob cuja base foram proclamadas a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Deste modo, o património espiritual, e em concreto o moral, do cristianismo foi arrancado do seu fundamento evangélico, ao qual é necessário devolvê-lo para que se reencontre a sua plena vitalidade.

Todavia, o processo do afastamento do Deus dos Padres, do Deus de Jesus Cristo, do Evangelho e da Eucaristia não trouxe consigo a ruptura com um Deus existente mais para além do mundo. De facto, o Deus dos deístas esteve sempre presente nos enciclopedistas franceses, nas obras de Voltaire e Jean Jacques Rousseau, e mais ainda nos Philosophiae naturalis prinsipia mathematica de Isaac Newton, que marcam o o início da física moderna.



Este Deus, todavia, é decididamente um Deus fora do mundo. Um Deus presente no mundo aparecia como inútil para o conhecimento moderno, para a moderna ciência do homem, do que examina os seus mecanismos conscientes e subconscientes. O racionalismo iluminista pôs entre parêntesis o verdadeiro Deus e, em particular, o Deus Redentor.

Isto que consequências trouxe? Que o homem tinha que viver deixando-se guiar exclusivamente pela razão própria, como se Deus não existisse. Não só tinha de prescindir de Deus no conhecimento objectivo do mundo – devido a que a premissa da existência do Criador ou da Providência não tinha qualquer utilidade para a ciência, mas que tinha, de actuar como se Deus não existisse, quer dizer, como se Deus não se interessasse pelo mundo. O racionalismo iluminista podia aceitar um Deus fora do mundo, sobretudo porque esta era uma hipótese não comprovável. Era imprescindível, todavia, que esse Deus se colocasse fora do mundo.




(Cfr entrevista de Vittorio Messori a São João Paulo II, CRUZANDO EL UMBRAL DE LA ESPERANZA, Outubro de 1994)
(Tradução do castelhano por AMA)


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