EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS
FAMÍLIAS.
A situação actual da família
45.
«Há muitos filhos nascidos fora do
matrimónio, especialmente nalguns países, e muitos são os que, em seguida,
crescem com um só dos progenitores e num contexto familiar alargado ou
reconstituído. (...) Por outro lado, a exploração sexual da infância constitui
uma das realidades mais escandalosas e perversas da sociedade actual. Além
disso, nas sociedades feridas pela violência da guerra, do terrorismo ou da
presença do crime organizado, acabam deterioradas as situações familiares,
sobretudo nas grandes metrópoles, e nas suas periferias cresce o chamado
fenómeno dos meninos da rua»[i]. O abuso sexual das crianças torna-se ainda mais
escandaloso, quando se verifica em ambientes onde deveriam ser protegidas,
particularmente nas famílias e nas comunidades e instituições cristãs[ii].
46.
As migrações «constituem outro sinal dos
tempos, que deve ser enfrentado e compreendido com todo o seu peso de
consequências sobre a vida familiar».[iii] O último Sínodo atribuiu grande importância a esta
problemática ao reconhecer que, «sob
modalidades diferentes, atinge populações inteiras em várias partes do mundo. A
Igreja desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A necessidade de
manter e desenvolver este testemunho evangélico[iv] aparece hoje mais
urgente do que nunca. (...) A mobilidade humana, que corresponde ao movimento
histórico-natural dos povos, pode revelar-se uma verdadeira riqueza tanto para
a família que emigra como para o país que a recebe. Caso diferente é a migração
forçada das famílias, em consequência de situações de guerra, perseguição,
pobreza, injustiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem que, muitas vezes,
põe em perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as famílias. O
acompanhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida tanto às
famílias que emigram como aos membros dos núcleos familiares que ficaram nos
lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas culturas, a formação
religiosa e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos seus ritos e
tradições, inclusive através dum cuidado pastoral específico. (...) As
migrações revelam-se particularmente dramáticas e devastadoras tanto para as
famílias como para as pessoas, quando têm lugar à margem da legalidade e são
sustentadas por circuitos internacionais do tráfico de pessoas. O mesmo se pode
dizer quando envolvem mulheres ou crianças não acompanhadas, forçadas a
estadias prolongadas nos locais de passagem entre um país e outro, nos campos
de refugiados, onde não é possível iniciar um percurso de integração. A
pobreza extrema e outras situações de desintegração induzem, por vezes, as
famílias até mesmo a vender os próprios filhos para a prostituição ou o tráfico
de órgãos».[v] «As perseguições
dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em várias partes do
mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande prova: não só para
a Igreja mas também para toda a comunidade internacional. Devem ser apoiados
todos os esforços para favorecer a permanência das famílias e das comunidades
cristãs nas suas terras de origem».[vi] Os Padres dedicaram
especial atenção também «às famílias das
pessoas com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um
desafio profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os desejos, as expectativas.
(...) Merecem grande admiração as famílias que aceitam, com amor, a prova
difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à sociedade um valioso testemunho
de fidelidade ao dom da vida. A família poderá descobrir, juntamente com a
comunidade cristã, novos gestos e linguagens, formas de compreensão e
identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do mistério da fragilidade. As
pessoas com deficiência são, para a família, um dom e uma oportunidade para crescer
no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família que aceita, com os
olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência poderá reconhecer e garantir
a qualidade e o valor de cada vida, com as suas necessidades, os seus direitos
e as suas oportunidades. Tal família providenciará assistência e cuidados e
promoverá companhia e carinho em cada fase da vida»[vii]. Quero sublinhar que a atenção prestada tanto aos
migrantes como às pessoas com deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as
situações são paradigmáticas: põem especialmente em questão o modo como se
vive, hoje, a lógica do acolhimento misericordioso e da integração das pessoas
frágeis. «A maioria das famílias respeita
os idosos, rodeia-os de carinho e considera-os uma bênção. Um agradecimento
especial deve ser dirigido às associações e movimentos familiares que trabalham
a favor dos idosos, sob o aspecto espiritual e social (...). Nas sociedades
altamente industrializadas, onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui
a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por
outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus
entes queridos».[viii] «A valorização
da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade
actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da passagem.
Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente exploradas por
mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é possível enfrentar
os últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização e integração de
toda a existência no mistério pascal. Um grande número de idosos é acolhido em
estruturas da Igreja, onde podem viver num ambiente sereno e familiar a nível
material e espiritual. A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças
para as famílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em muitos Estados. A
Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de
ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes».[ix]
49.
Quero assinalar a situação das famílias caídas na miséria, penalizadas de
tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de forma
lancinante. Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito pobre, tornam-se
mais duras[x]. Por exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho
sozinha, devido a uma separação ou por outras causas, e tem de ir trabalhar sem
a possibilidade de o deixar com outra pessoa, o filho cresce num abandono que o
expõe a todos os tipos de risco e fica comprometido o seu amadurecimento
pessoal. Nas situações difíceis em que vivem as pessoas mais necessitadas, a
Igreja deve pôr um cuidado especial em compreender, consolar e integrar,
evitando impor-lhes um conjunto de normas como se fossem uma rocha, tendo como
resultado fazê-las sentir-se julgadas e abandonadas precisamente por aquela Mãe
que é chamada a levar-lhes a misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a
força sanadora da graça e da luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evangelho,
transformá-lo em «pedras mortas para as
jogar contra os outros».[xi]
Alguns desafios
50.
As respostas recebidas nas duas consultas, efectuadas no caminho sinodal,
mencionaram as mais diversas situações que colocam novos desafios. Além das
situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba
dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a casa cansados e sem
vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comerem
juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distracção, para além da
dependência da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de pais para
filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma enorme
ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que
por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão cultural, vê-se agravado
por um futuro profissional incerto, pela insegurança económica ou pelo medo
quanto ao futuro dos filhos.
51.
Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do nosso tempo que
faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante
acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências. A família
poderia ser o lugar da prevenção e das boas regras, mas a sociedade e a
política não chegam a perceber que uma família em risco «perde a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...).
Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos
desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e
jovens desorientados e sem regras».[xii] Como apontaram os bispos do México, há tristes
situações de violência familiar que são terreno fértil para novas formas de
agressividade social, porque «as relações
familiares explicam também a predisposição para uma personalidade violenta. As
famílias que influem nesta direcção são aquelas em que há uma comunicação
deficiente; aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os seus membros
não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que favoreçam a
participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam ser
conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por
atitudes hostis. A violência no seio da família é escola de ressentimento e
ódio nas relações humanas básicas».[xiii]
52.
Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural
fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo
contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores comunitários
e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já não se adverte
claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher
realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar
possível a fecundidade. Devemos reconhecer
a
grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de
vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não
podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou
fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem
se preocupa hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que
os ameaçam, acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da
união conjugal?
53.
«Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da poligamia; noutros contextos,
permanece a prática dos matrimónios combinados. (...) Em muitos contextos, e
não apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da convivência
que precede o matrimónio e também a prática de convivências não orientadas
para assumir a forma dum vínculo institucional» [xiv]. Em vários países, a legislação facilita o avanço de
várias alternativas, de modo que um matrimónio com as características de
exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais
uma proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma
desconstrução jurídica da família, que tende a adoptar formas baseadas quase
exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e
justo rejeitar velhas formas de família «tradicional», caracterizadas pelo
autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar ao
desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua
renovação. A força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar
e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre
crescer a partir do amor» [xv].
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[v] Relatio Finalis
2015, 23; cf. Mensagem para o Dia Mundial do Emigrante e do Refugiado em 17 de
Janeiro de 2016 (12 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 08/X/2015), 18-19.
[xi] Francisco, Discurso
no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de
Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015),
9.
[xiii] Conferência
Episcopal Mexicana, Que en Cristo Nuestra Paz México tenga vida digna (15 de
Fevereiro de 2009), 67.
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