07/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO II
A REALIDADE E OS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS.

A situação actual da família

37. Durante muito tempo pensámos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, conso­lidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.

38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro. Por isso, aprecia-se que a Igreja ofereça espaços de apoio e aconselhamento sobre questões relacionadas com o crescimento do amor, a superação dos conflitos e a educação dos filhos. Muitos estimam a força da graça que experimentam na Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que lhes permite enfrentar os desafios do matrimónio e da família. Nalguns países, especialmente em várias partes da África, o secularismo não conseguiu enfraquecer alguns valores tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma forte união entre duas famílias alargadas, onde se conserva ainda um sistema bem definido de gestão de conflitos e dificuldades. No mundo actual, aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projecto comum e conservam o afecto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na defensiva e gastámos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera.

39. Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural que não promove o amor e a doação. As consultações que antecederam os dois últimos Sínodos trouxeram à luz vários sintomas da «cultura do provisório». Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam duma relação afectiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum compromisso permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos e benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para re­mediar a solidão, ter protecção ou receber algum serviço. Transpõe-se para as relações afectivas o que acontece com os objectos e o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa e joga fora, gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo torna as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. Faz impressão ver que as rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos já de meia-idade que buscam uma espécie de «autonomia» e rejeitam o ideal de envelhecer juntos cuidando-se e apoiando-se.

40. «Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos de possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família».[i] Nalguns países, muitos jovens «são frequentemente levados a adiar o matrimónio por problemas de tipo económico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o matrimónio e a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios económicos derivados da convivência, uma concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e burocrático»[ii]. Precisamos de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio de matrimónio.

41. Os Padres sinodais aludiram a certas «tendências culturais que parecem impor uma afectividade sem qualquer limitação, (…) uma afectividade narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior maturidade». Preocupa a «difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet» e pela «situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Neste contexto, por vezes os casais sentem-se inseguros, indecisos, cus­tando-lhes encontrar as formas para crescer. Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estádios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais»[iii]. As crises conjugais são «enfrentadas muitas vezes de modo apressado e sem a coragem da paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas e problemáticas para a opção cristã»[iv].

42. «A própria queda demográfica, causada por uma mentalidade anti natalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa de estar garantida, mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O avanço das biotecnologias também teve um forte impacto sobre a natalidade»[v]. Podem juntar-se outros factores, como «a industrialização, a revolução sexual, o temor da superpopulação, os problemas económicos (...). A sociedade de consumo também pode dissuadir as pessoas de ter filhos, só para manter a sua liberdade e estilo de vida»[vi]. É verdade que a consciência recta dos esposos, quando foram muito generosos na transmissão da vida, pode orientá-los para a decisão de limitar o número dos filhos por razões suficientemente sérias; e também «por amor desta dignidade da consciência, a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções coercitivas do Estado a favor da contracepção, da esterilização e até mesmo do aborto»[vii]. Estas medidas são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é notável que os políticos as incentivem também nalguns países que sofrem o drama duma taxa de natalidade muito baixa. Como assinalaram os bispos da Coreia, isto é «agir de forma contraditória e negligenciando o próprio dever»[viii].

43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa, nalgumas sociedades, afecta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades. Os Padres disseram que «uma das maiores pobrezas da cultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à realidade socio­económica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias. (...) Frequentemente as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a pouca atenção das instituições. As consequências negativas sob o ponto de vista da organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades educativas, da fadiga em acolher a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até à difusão dum mal-estar afectivo que às vezes chega à violência. O Estado tem a responsabilidade de criar as condições legislativas e laborais para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família»[ix].

44. A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a formalização duma relação. É preciso lembrar que «a família tem direito a uma habitação condigna, apropriada para a vida familiar e proporcional ao número dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que proporcione os serviços básicos para a vida da família e da comunidade».[x] Uma família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente. Este exemplo mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa de ser protegida[xi]. A defesa destes direitos é «um apelo profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão»[xii], sobretudo no contexto actual em que habitualmente ocupa pouco espaço nos projectos políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de «poder contar com uma adequada política familiar por parte das autoridades públicas no campo jurídico, económico, social e fiscal» [xiii]. Às vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas, quando têm de enfrentar a doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. «As coerções económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida social activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão social. As famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao trabalho. As possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é muito selectiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes, agravadas pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a encontrar-se entre si e com os filhos, para alimentar diaria­mente as suas relações»[xiv].

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] Francisco, Discurso ao Congresso dos Estados Unidos da América (24 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 01/X/2015), 9.
[ii] Relatio Finalis 2015, 29.
[iii] Relatio Synodi 2014, 10.
[iv] III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Mensagem (18 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 23/X/2014), 7.
[v] Relatio Synodi 2014, 10.
[vi] Relatio Finalis 2015, 7.
[vii] Ibid., 63.
[viii] 21 Conferência dos Bispos católicos da Coreia, Towards a culture of life! (15 de Março de 2007).
[ix] Relatio Synodi 2014, 6.
[x] Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da família (22 de Outubro de 1983), 11.
[xi] Cf. Relatio Finalis 2015, 11-12.
[xii] Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da família (22 de Outubro de 1983), introdução.
[xiii] Ibid., 9.
[xiv] Relatio Finalis 2015, 14.

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