24/03/2019

Leitura espiritual


EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO V

O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO

Amor de mãe e de pai.

Aprecio o feminismo, quando não pretende a uniformidade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza das mulheres implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade humana inalienável, mas também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As suas capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade – conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de todos.[i]

De facto, «as mães são o antídoto mais forte contra o propagar-se do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham a beleza da vida».
Sem dúvida, «uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral. As mães transmitem, muitas vezes, também o sentido mais profundo da prática religiosa: nas primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção que uma criança aprende (...). Sem as mães, não somente não haveria novos fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e profundo. (...) Queridas mães, obrigado, obrigado por aquilo que sois na família e pelo que dais à Igreja e ao mundo».
A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e compaixão, ajuda a despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece a capacidade de intimidade e a empatia.

Por sua vez, a figura do pai ajuda a perceber os limites da realidade, caracterizando-se mais pela orientação, pela saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos.[ii]

Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o amadurecimento da criança.
Diz-se que a nossa sociedade é uma «sociedade sem pais». Na cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente, distorcida, desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão. Verificou-se uma compreensível confusão, já que, «num primeiro momento, isto foi sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia casas em que no passado reinava o autoritarismo, em certos casos até a prepotência”. Mas, «como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos».[iii]

A presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade são afectadas também pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e à tecnologia da distracção. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios abandonam as certezas e, por isso, não dão orientações seguras e bem fundamentadas aos seus filhos. Não é saudável que sejam invertidas as funções entre pais e filhos: prejudica o processo adequado de amadurecimento que as crianças precisam de fazer e nega-lhes um amor capaz de as orientar e que as ajude a maturar.

Deus coloca o pai na família, para que, com as características preciosas da sua masculinidade, «esteja próximo da esposa, para compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam, quando estão descontraídos e quando se sentem angustiados, quando se exprimem e quando permanecem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo errado e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar presente não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os filhos».

Alguns pais sentem-se inúteis ou desnecessários, mas a verdade é que «os filhos têm necessidade de encontrar um pai que os espera quando voltam dos seus fracassos. Farão de tudo para não o admitir, para não o revelar, mas precisam dele».[iv]
Não é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes do tempo.

Fecundidade alargada.

Àqueles que não podem ter filhos, lembramos que «o matrimónio não foi instituído só em ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida».
Além disso, «a maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas expressa-se de diversas maneiras».

A adopção é um caminho para realizar a maternidade e a paternidade de uma forma muito generosa, e desejo encorajar aqueles que não podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para receber quem está privado de um ambiente familiar adequado. Nunca se arrependerão de ter sido generosos. Adoptar é o acto de amor que oferece uma família a quem não a tem.
É importante insistir para que a legislação possa facilitar o processo de adopção, sobretudo nos casos de filhos não desejados, evitando assim o aborto ou o abandono.[v] Aqueles que assumem o desafio de adoptar e acolhem uma pessoa de maneira incondicional e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz: «Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria».[vi]

«A opção da adopção e do acolhimento exprime uma fecundidade particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos de esposos com problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em que o filho é desejado a todo o custo, como um direito ao próprio completamento, a adopção e o acolhimento, rectamente compreendidos, mostram um aspecto importante da paternidade e da filiação ajudando a reconhecer que os filhos, quer naturais quer adoptivos ou acolhidos, são em si mesmos outro sujeito e é preciso recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas trazê-los ao mundo. O interesse prevalecente da criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a adopção e o acolhimento».

Por outro lado, «deve impedir-se o tráfico de crianças entre países e continentes, por meio de oportunas medidas legislativas e controle estatal».
Convém lembrar-nos também de que a procriação e a adopção não são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor.[vii] Mesmo a família com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está inserida, desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de extensão do amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam que «a fé não nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um de nós cabe um papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus».
A família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade. Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num ponto de união entre o público e o privado. Os cônjuges precisam de adquirir consciência clara e convicta dos seus deveres sociais. Quando isto acontece, não diminui o carinho que os une; antes, enche-se de nova luz, como está expresso nos seguintes versos: «As tuas mãos são a minha carícia, o meu despertar diário amo-te porque tuas mãos trabalham pela justiça. Se te amo, é porque és o meu amor, o meu cúmplice e tudo e na rua, lado a lado, somos muito mais que dois».[viii]

Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado diferente ou «separada». Para evitar este risco, lembremo-nos que a família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma família «estranha», como um lar alheado e distante da gente. Por isso mesmo as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus e diziam: «De onde é que isto lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria»?[ix]. «Não é Ele o filho do carpinteiro?».[x]

Isto confirma que era uma família simples, próxima de todos, integrada normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se na família alargada, onde encontrava os parentes e os amigos. Isto explica por que, quando regressavam de Jerusalém, os seus pais admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos vagar pela caravana um dia inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as preocupações de todos: «Pensando que Ele Se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem».[xi]

(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)


[i] João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 2: Insegnamenti 3/1 (1980), 542; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 16/III/1980), 12. 191 Cf. Idem, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988), 30-31: AAS 80 (1988), 1726-1729.
[ii] Francisco, Catequese (7 de Janeiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 8/I/2015), 12.
[iii] Catequese (28 de Janeiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/I/2015), 16.
[iv] Cf. Relatio Finalis 2015, 28. 197 Francisco, Catequese (4 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 5/II/2015), 16.
[v] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50. 200 V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de 2007), 457.
[vi] (cf. Is 49, 15).
[vii] Relatio Finalis 2015, 65.
[viii] Francisco, Discurso no encontro com as famílias, em Manila (16 de Janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 178. 204 Mário Benedetti, «Te quiero», in Poemas de otros (Buenos Aires 1993), 316.
[ix]  (Mc 6, 2.3)
[x] (Mt 13, 55)
[xi] (Lc 2, 44)

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