EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
O mundo das emoções.
Desejos, sentimentos,
emoções (os clássicos chamavam-lhes «paixões») ocupam um lugar importante no
matrimónio. Geram-se quando «outro» se torna presente e intervém na minha vida.
É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência
reveste-se sempre de sinais afectivos basilares: prazer ou sofrimento, alegria
ou tristeza, ternura ou receio. São o pressuposto da actividade psicológica
mais elementar. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca
está carregado de paixões.
Verdadeiro homem, Jesus
vivia as coisas com grande emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de
Jerusalém[i] e, por esta situação, chorou.[ii]
Compadecia-Se também à
vista da multidão atribulada. Vendo os outros a chorar[iii], comovia-Se e turbava-Se,[iv] e Ele
mesmo chorou pela morte dum amigo.[v]
Estas manifestações da sua
sensibilidade mostram até que ponto estava aberto aos outros o seu coração
humano.
Experimentar uma emoção
não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem mau. Começar a sentir desejo ou
repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom ou mau é o acto que
a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos
são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más acções, o mal
está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem. Na mesma linha,
sentir atracção por alguém não é, de por si, um bem. Se esta atracção me leva a
procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço
do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque «provamos sentimentos», é um tremendo engano.
Há pessoas que se sentem
capazes dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não
conseguem lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios
desejos. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um
egocentrismo que torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode manifestar a
profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida
emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum.
A maturidade chega a uma
família, quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa
sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas
segue a sua liberdade,[vi] brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais
harmoniosa para bem de todos. Deus ama a alegria dos seus filhos. Isto requer
um caminho pedagógico, um processo que inclui renúncias: é uma convicção da
Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mundo como se fosse inimiga da
felicidade humana.
Bento XVI regista esta
crítica com muita clareza: «Com os seus
mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais
bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a
alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos
faz pressentir algo do Divino?» Mas ele responde que, embora não tenham
faltado exageros ou ascetismos extraviados no cristianismo, a doutrina oficial
da Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora,
porque a falsa divinização do eros (…) priva-o da sua dignidade, desumaniza-o».
É necessária a educação da
emotividade e do instinto e, para isso, às vezes torna-se indispensável
impormo-nos algum limite.[vii] O excesso, o descontrole, a obsessão por um único tipo
de prazeres acabam por debilitar e combalir o próprio prazer, e prejudicam a
vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as paixões, o
que significa orientá-las cada vez mais num projecto de auto-doação e plena
realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da família.
Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer, mas assumi-los de
certo modo entrelaçados com outros momentos de dedicação generosa, espera
paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal.
A vida em família é tudo
isto e merece ser vivida inteiramente.. Algumas correntes espirituais insistem
em eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama
a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo «para nosso usufruto».[viii]
Deixemos brotar a alegria
à vista da sua ternura, quando nos propõe: «Meu
filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade
presente».[ix]
Também um casal de esposos
corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: «No dia da felicidade, sê alegre».[x]
A questão é ter a
liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos
sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo.[xi]
Neste sentido, pode-se
aceitar a proposta de alguns mestres orientais que insistem em ampliar a
consciência, para não ficar presos numa experiência muito limitada que nos fecharia
as perspectivas. Esta ampliação da consciência não é a negação ou a destruição
do desejo, mas a sua dilatação e aperfeiçoamento. A dimensão erótica do amor.
Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade,
que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita
o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se produza o «depauperamento de um valor autêntico».
São João Paulo II rejeitou
a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «uma
negação do valor do sexo humano» ou que o tolere simplesmente «pela necessidade da procriação».
A necessidade sexual dos
esposos não é objecto de menosprezo, e «não
se trata de modo algum de pôr em questão aquela necessidade».
A quantos receiam que, com
a educação das paixões e da sexualidade, se prejudique a espontaneidade do amor
sexual,[xii] São João Paulo II respondia que o ser humano «é também chamado à plena e matura
espontaneidade das rela ções», que «é
o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração». É algo
que se conquista, pois todo o ser humano «deve,
perseverante e coerentemente, aprender o que é o significado do corpo».
A sexualidade não é um
recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal
onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável. Assim, «o coração humano torna-se participante, por
assim dizer, de outra espontaneidade». Neste contexto, o erotismo aparece
como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. Nele pode-se
encontrar o «significado esponsal do
corpo e a autêntica dignidade do dom».1
Nas suas catequeses sobre
a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que a corporeidade sexuada
«é não só fonte de fecundidade e de
procriação», mas possui «a capacidade
de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom».
O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a
admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.[xiii]
Assim, não podemos, de maneira alguma,
entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável
para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos
esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade
do outro, torna-se uma «afirmação amorosa
plena e cristalina», mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração
humano, e assim, por um momento, «sente-se
que a existência humana foi um sucesso».
(cont)
(revisão da versão
portuguesa por AMA)
[vii] Cf. ibid., I-II, q.
59, art. 5. 142
Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3: AAS 98 (2006),
219-220. 143 Ibid., 4: o. c., 220.
[xi] Cf. Tomás de Aquino,
Summa theologiae, I-II, q. 32, art. 7. 145 Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad
2: «Abundantia delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato,
non contrariatur medio virtutis».
[xii] João Paulo II, Catequese
(22 de Outubro de 1980), 5: Insegnamenti 3/2 (1980), 951; L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 26/X/1980), 12. 147 Ibid., 3. 148 Idem, Catequese
(24 de Setembro de 1980), 4: Insegnamenti 3/2 (1980), 719; L’Osservatore Romano
(ed. semanal portuguesa de 28/IX/1980), 12.
[xiii] Catequese (12 de Novembro
de 1980), 2: Insegnamenti 3/2 (1980), 1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 16/XI/1980), 12. 150 Ibid., 4. 151 Ibid., 5. 152 Ibid., 1. 153
Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1 (1980), 151;
L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 20/I/1980), 12.
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