EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
A
lógica do amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e
precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de «quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo».[i]
Na
vida familiar, não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem
a competição para ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica
acaba com o amor. Vale também para a família o seguinte conselho: «Revesti-vos todos de humildade no trato uns
com os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça aos
humildes».[ii]
Amabilidade.
Amar
é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo asjemonéi. Significa que o amor não age rudemente, não actua de
forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos, as suas
palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta
fazer sofrer os outros. A cortesia «é uma escola de sensibilidade e altruísmo»,
que exige que a pessoa «cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda a
ouvir, a falar e, em certos momentos, a calar».
Ser
amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das
exigências irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser humano está obrigado a
ser afável com aqueles que o rodeiam».
Diariamente
«entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência, exige a
delicadeza duma atitude não invasiva, que renova a confiança e o respeito.
(...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito
pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro abra a porta do seu
coração».
A
fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro, requer-se um olhar
amável pousado nele. Isto não é possível quando reina um pessimismo que põe em evidência
os defeitos e erros alheios, talvez para compensar os próprios complexos.[iii]
Um
olhar amável faz com que nos detenhamos menos nos limites do outro, podendo
assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto comum, apesar de sermos diferentes. O
amor amável gera vínculos, cultiva laços, cria novas redes de integração,
constrói um tecido social firme. Deste modo, uma pessoa protege-se a si mesma,
pois, sem sentido de pertença, não se pode sustentar uma entrega aos outros,
acabando cada um por buscar apenas as próprias conveniências, e a convivência
torna-se impossível.
Uma
pessoa anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades
e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço
para a amabilidade do amor e a sua linguagem.
A
pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam,
fortalecem, consolam, estimulam.
Vejamos,
por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas:
«Levanta-te!».[vi]
Não
são palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso
aprender esta linguagem amável de Jesus.
Desprendimento.
Como
se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro amar-se a si
mesmo.
Todavia
este hino à caridade afirma que o amor «não procura o seu próprio interesse»,
ou «não procura o que é seu». Esta expressão aparece ainda noutro texto:
«Não tenha cada um em vista os próprios
interesses, mas todos e cada um exactamente os interesses dos outros».[ix]
Perante
uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar de dar
prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos
outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como
condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma sente
dificuldade em amar os outros: «Para quem
será bom aquele que é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo».[x]
Mas
o próprio Tomás de Aquino explicou «ser
mais próprio da caridade querer amar do que querer ser amado», e que de facto «as mães, que são as que mais
amam, procuram mais amar do que ser amadas».
Por
isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamente «sem nada esperar em troca»,[xi] até chegar ao amor maior que é «dar a vida» pelos outros.[xii]
Mas
será possível um desprendimento assim, que permite dar gratuitamente e dar até
ao fim?
Sem violência interior.
Se
a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, que evita reagir
bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros, agora aparece outra
palavra – paroxýnetai – que diz
respeito a uma reacção interior de indignação provocada por algo exterior.
Trata-se
de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante
os outros, como se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta
agressividade íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar,
acabando por nos isolar. A indignação é saudável, quando nos leva a reagir
perante uma grave injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas
as nossas atitudes para com os outros.
O
Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista,[xv] e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante
da Palavra de Deus para não se alimentar a ira: «Não te deixes vencer pelo mal»;[xvi] «não nos cansemos
de fazer o bem».[xvii]
Uma
coisa é sentir a força da agressividade que irrompe, e outra é consentir nela,
deixar que se torne uma atitude permanente: «Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento».[xviii] Por isso, nunca se deve terminar o dia sem fazer as
pazes na família. «E como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me? Não! Para
restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente
uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais que o dia em família termine sem
fazer as pazes».
A
reacção interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser,
antes de mais nada, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus
que o liberte e cure. «Respondei com
palavras de bênção, pois a isto fostes chamados: a herdar uma bênção».[xix] Se tivermos de lutar contra um mal, façamo-lo; mas sempre
digamos «não» à violência interior.
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[ii] (1 Ped 5, 5)
[iii] Octavio Paz, La llama
doble (Barcelona 1993), 35. 108 Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 114,
art. 2, ad 1. 109 Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.