SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL
NO MUNDO ACTUAL
Capítulo II
DOIS INIMIGOS SUBTIS DA
SANTIDADE
35. Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas
falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o
pelagianismo. São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do
cristianismo, mas continuam a ser de alarmante actualidade. Ainda hoje os
corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir por estas
propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo antropocêntrico,
disfarçado de verdade católica. [i] Vejamos estas duas
formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem «a um elitismo
narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e
classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as
energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros
interessam verdadeiramente». [ii]
36. O gnosticismo supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde
apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e
conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância,
a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus
sentimentos». [iii]
37. Graças a Deus, ao longo da história da Igreja, ficou bem claro
que aquilo que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a
quantidade de dados e conhecimentos que possam acumular. Os «gnósticos»,
baralhados neste ponto, julgam os outros segundo conseguem, ou não, compreender
a profundidade de certas doutrinas. Concebem uma mente sem encarnação, incapaz
de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de
abstracções. Ao desencarnar o mistério, em última análise preferem «um Deus sem
Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo». [iv]
38. Em suma, trata-se duma vaidosa superficialidade: muito
movimento à superfície da mente, mas não se move nem se comove a profundidade
do pensamento. No entanto, consegue subjugar alguns com o seu fascínio
enganador, porque o equilíbrio gnóstico é formal e supostamente asséptico,
podendo assumir o aspeto duma certa harmonia ou duma ordem que tudo abrange.
39. Mas atenção! Não estou a referir-me aos racionalistas inimigos
da fé cristã. Isto pode acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das
paróquias como naqueles que ensinam filosofia ou teologia em centros de
formação. Com efeito, também é típico dos gnósticos crer que eles, com as suas
explicações, podem tornar perfeitamente compreensível toda a fé e todo o
Evangelho. Absolutizam as suas teorias e obrigam os outros a submeter-se aos
raciocínios que eles usam. Uma coisa é o uso saudável e humilde da razão para
refletir sobre o ensinamento teológico e moral do Evangelho, outra é pretender
reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar
tudo [v].
40. O gnosticismo é uma das piores ideologias, pois, ao mesmo
tempo que exalta indevidamente o conhecimento ou uma determinada experiência,
considera que a sua própria visão da realidade seja a perfeição. Assim, talvez
sem se aperceber, esta ideologia auto-alimenta-se e torna-se ainda mais cega.
Por vezes, torna-se particularmente enganadora, quando se disfarça de
espiritualidade desencarnada. Com efeito, o gnosticismo, «por sua natureza,
quer domesticar o mistério», [vi] tanto o mistério
de Deus e da sua graça, como o mistério da vida dos outros.
41. Quando alguém tem resposta para todas as perguntas, demonstra
que não está no bom caminho e é possível que seja um falso profeta, que usa a
religião para seu benefício, ao serviço das próprias lucubrações psicológicas e
mentais. Deus supera-nos infinitamente, é sempre uma surpresa e não somos nós
que determinamos a circunstância histórica em que O encontramos, já que não
dependem de nós o tempo, nem o lugar, nem a modalidade do encontro. Quem quer
tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus.
42. Nem se pode pretender definir onde Deus não Se encontra,
porque Ele está misteriosamente presente na vida de toda a pessoa, na vida de
cada um como Ele quer, e não o podemos negar com as nossas supostas certezas.
Mesmo quando a vida de alguém tiver sido um desastre, mesmo que o vejamos
destruído pelos vícios ou dependências, Deus está presente na sua vida. Se nos
deixarmos guiar mais pelo Espírito do que pelos nossos raciocínios, podemos e
devemos procurar o Senhor em cada vida humana. Isto faz parte do mistério que
as mentalidades gnósticas acabam por rejeitar, porque não o podem controlar.
43. Só de forma muito pobre, chegamos a compreender a verdade que
recebemos do Senhor. E, ainda com maior dificuldade, conseguimos expressá-la.
Por isso, não podemos pretender que o nosso modo de a entender nos autorize a
exercer um controlo rigoroso sobre a vida dos outros. Quero lembrar que, na
Igreja, convivem legitimamente diferentes maneiras de interpretar muitos
aspetos da doutrina e da vida cristã, que, na sua variedade, «ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. [Certamente,] a quantos
sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá
parecer uma dispersão imperfeita». [vii] Por isso mesmo,
algumas correntes gnósticas desprezaram a simplicidade tão concreta do
Evangelho e tentaram substituir o Deus trinitário e encarnado por uma Unidade
superior onde desaparecia a rica multiplicidade da nossa história.
44. Na realidade, a doutrina, ou melhor, a nossa compreensão e
expressão dela, «não é um sistema fechado, privado de dinâmicas próprias
capazes de gerar perguntas, dúvidas, questões (…); e as perguntas do nosso
povo, as suas angústias, batalhas, sonhos e preocupações possuem um valor
hermenêutico que não podemos ignorar, se quisermos deveras levar a sério o
princípio da encarnação. As suas perguntas ajudam-nos a questionar-nos, as suas
questões interrogam-nos». [viii]
45. Com frequência, verifica-se uma perigosa confusão: julgar que,
por sabermos algo ou podermos explicá-lo com uma certa lógica, já somos santos,
perfeitos, melhores do que a «massa ignorante». São João Paulo II advertia, a
quantos na Igreja têm a possibilidade de uma formação mais elevada, contra a
tentação de cultivarem «um certo sentimento de superioridade relativamente aos
outros fiéis». [ix] Na
realidade, porém, aquilo que julgamos saber sempre deveria ser uma motivação
para responder melhor ao amor de Deus, porque «se aprende para viver: teologia
e santidade são um binómio inseparável». [x]
46. São Francisco de Assis, ao ver que alguns dos seus discípulos
ensinavam a doutrina, quis evitar a tentação do gnosticismo. Então escreveu
assim a Santo António de Lisboa: «Apraz-me que interpreteis aos demais frades a
sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa
oração e devoção». [xi] Reconhecia a
tentação de transformar a experiência cristã num conjunto de especulações
mentais, que acabam por nos afastar do frescor do Evangelho. São Boaventura,
por sua vez, advertia que a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da
misericórdia para com o próximo: «A maior sabedoria que pode existir consiste
em dispensar frutuosamente o que se possui e que lhe foi dado precisamente para
o distribuir (...). Por isso, como a misericórdia é amiga da sabedoria, assim a
avareza é sua inimiga». [xii] «Há actividades,
como as obras de misericórdia e de piedade, que, unindo-se à contemplação, não
a impedem, antes favorecem-na». [xiii]
47. O gnosticismo deu lugar a outra heresia antiga, que está
presente também hoje. Com o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que
não é o conhecimento que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos.
O problema é que isto foi subtilmente degenerando, de modo que o mesmo erro dos
gnósticos foi simplesmente transformado, mas não superado.
48. Com efeito, o poder que os gnósticos atribuíam à inteligência,
alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram,
assim, os pelagianos e os semipelagianos. Já não era a inteligência que ocupava
o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. Esquecia-se que «isto não
depende daquele que quer nem daquele que se esfoça por alcançá-lo, mas de Deus
que é misericordioso» (Rm 9, 16) e que Ele «nos amou primeiro» (1
Jo 4, 19).
49. Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou
semipelagiana, embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, «no
fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por
cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo
católico». [xiv] Quando alguns
deles se dirigem aos frágeis, dizendo-lhes que se pode tudo com a graça de
Deus, basicamente costumam transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade
humana, como se esta fosse algo puro, perfeito, omnipotente, a que se
acrescenta a graça. Pretende-se ignorar que «nem todos podem tudo», [xv] e que, nesta vida,
as fragilidades humanas não são curadas, completamente e duma vez por todas,
pela graça. [xvi] Em todo o caso,
como ensinava Santo Agostinho, Deus convida-te a fazer o que podes e «a pedir o
que não podes»; [xvii] ou então a dizer
humildemente ao Senhor: «dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que
quiserdes». [xviii]
50. No fundo, a falta dum reconhecimento sincero, pesaroso e
orante dos nossos limites é que impede a graça de actuar melhor em nós, pois
não lhe deixa espaço para provocar aquele bem possível que se integra num
caminho sincero e real de crescimento. [xix] A graça,
precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente
super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Neste caso,
por trás da ortodoxia, as nossas atitudes podem não corresponder ao que
afirmamos sobre a necessidade da graça e, na prática, acabamos por confiar
pouco nela. Com efeito, se não reconhecemos a nossa realidade concreta e
limitada, não poderemos ver os passos reais e possíveis que o Senhor nos pede
em cada momento, depois de nos ter atraído e tornado idóneos com o seu dom. A
graça atua historicamente e, em geral, toma-nos e transforma-nos de forma
progressiva. [xx] Por isso, se
recusarmos esta modalidade histórica e progressiva, de facto podemos chegar a
negá-la e bloqueá-la, embora a exaltemos com as nossas palavras.
(cont)
Revisão
da versão portuguesa por AMA)
[i] «Quer o
individualismo neopelagiano quer o desprezo neognóstico do corpo descaraterizam
a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal» [Congr. para a Doutrina
da Fé, Carta sobre alguns aspetos da salvação cristã Placuit Deo (22 de
fevereiro de 2018), 4: L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 08/III/2018),
8]. Neste documento, encontram-se as bases doutrinais para compreender a
salvação face às derivas neognósticas e neopelagianas atuais.
[iv] Francisco, Homilia da Missa na Casa de Santa Marta (11
de novembro de 2016): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
17/XI/2016), 11.
[v] Como ensina São
Boaventura, «é necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o
ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus.
(…) Dado que, para se obter isto, nada pode a natureza e pouco pode a ciência,
é preciso dar pouca importância à indagação, muita à unção espiritual; pouca à
língua e muita à alegria interior; pouca à palavra e aos livros e toda ao dom
de Deus, isto é, ao Espírito Santo; pouca ou nenhuma à criatura e toda ao
Criador: ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo» [Itinerarium mentis in Deo,
VII, 4-5: Opere di San Bonaventura (Roma 1993), 577].
[vi] Francisco, Carta ao Grão-Chanceler da
Pontifícia Universidade Católica Argentina no centenário da Faculdade de
Teologia (3 de março de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12/III/2015), 11.
[viii] Francisco, Mensagem-vídeo ao congresso internacional de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica Argentina (1-3 de setembro de
2015): AAS 107 (2015), 980.
[x] Francisco, Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina no
centenário da Faculdade de Teologia (3 de março de
2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/III/2015),
11.
[xi] Carta a Frei
António, 2: Fonti Francescane, 251.
[xii] De septem Donis, 9, 15.
[xiii] Idem, In IV Sent. 37, 1, 3, ad 6.
[xv] «Non omnes omnia
possunt» (São Boaventura, De sex alis Seraphim 3, 8). Há
que entender a afirmação na linha do Catecismo
da Igreja Católica,
n. 1735.
[xvi] «Agora, porém, a graça é de certo modo imperfeita,
pois – como se disse – não cura o homem totalmente» (São Tomás de Aquino, Summa
Theologiae I-II, q. 109, a. 9, ad 1).
[xvii] De natura et
gratia, XLIII, 50: PL 44, 271.
[xviii] Idem, Confissões, X, 29, 40: PL 32,
796.
[xix] Cf. Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24
de novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038.
[xx] Na compreensão da fé cristã, a graça é preveniente,
concomitante e subsequente a todo o nosso agir. Cf. Conc. Ecum. de Trento,
Sess.VI, Decretum de iustificatione, cap. 5: DzS 1525.
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