São Josemaria Escrivá
Cristo que passa 65 a 67
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Que estranha capacidade
tem o homem de esquecer as coisas mais maravilhosas e de se acostumar ao
mistério!
Reparemos de novo, nesta
Quaresma, que o cristão não pode ser superficial.
Estando plenamente metido
no seu trabalho habitual, entre os demais homens, seus iguais, atarefado,
ocupado, em tensão, o cristão tem de estar, ao mesmo tempo, imerso totalmente
em Deus, porque é filho de Deus.
A filiação divina é uma
feliz verdade, um mistério consolador. A filiação divina enche a nossa vida
espiritual, porque nos ensina a conviver intimamente com o nosso Pai do Céu, a
conhecê-Lo, a amá-Lo, e assim enche de esperança a nossa luta interior e dá-nos
a simplicidade confiante dos filhos pequenos.
Mais ainda: precisamente
por sermos filhos de Deus, essa realidade leva-nos também a contemplar com amor
e com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai, Criador.
E deste modo somos
contemplativos no meio o mundo, amando o mundo.
Na Quaresma, a Liturgia
considera as consequências do pecado de Adão na vida do homem.
Adão não quis ser um bom
filho de Deus e revoltou-se.
Mas também se faz ouvir
continuamente o eco dessa felix culpa - culpa feliz, ditosa - que a Igreja
inteira cantará, cheia de alegria, na vigília do Domingo de Ressurreição.
Deus Pai, chegada a
plenitude dos tempos, enviou ao mundo o seu Filho unigénito para que
restabelecesse a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem
filiorum reciperemus, fôssemos constituídos filhos de Deus, libertos do jugo do
pecado, capazes de participar na intimidade divina da Trindade.
E assim se tomou possível
a este homem novo, a esta nova enxertia dos filhos de Deus libertar a Criação
inteira da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo, que nos reconciliou
com Deus.
É tempo de penitência,
pois.
Mas, como vimos, não se
trata de uma tarefa negativa.
A Quaresma deve ser vivida
com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que vive na nossa alma.
O Senhor chama-nos para
que nos acerquemos d'Ele, desejando ser como Ele: Sede imitadores de Deus, como
filhos muito amados, colaborando humildemente, mas fervorosamente, no divino
propósito de unir o que está quebrado, de salvar o que está perdido, de ordenar
o que o homem pecador desordenou, de conduzir ao seu fim o que está
desencaminhado, de restabelecer a divina concórdia de todas as criaturas.
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A liturgia da Quaresma
toma por vezes acentos trágicos, fruto da consideração do que significa para o
homem afastar-se de Deus.
Mas esta consideração não
é a última palavra.
A última palavra pertence
a Deus, é a palavra do seu amor salvador e misericordioso e, portanto, a
palavra da nossa filiação divina.
Por isso vos repito com S.
João: vede que amor teve por nós o Pai, querendo que nos chamássemos filhos de
Deus e que o fôssemos na verdade! Filhos de Deus, irmãos do Verbo feito carne,
d'Aquele de Quem foi dito: n'Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens!
Filhos da Luz, irmãos da Luz - isso é o que somos!
Portadores da única chama
capaz de iluminar os corações feitos de carne!
Calando-me eu agora e
continuando a Santa Missa, cada um de vós deve pensar no que lhe pede o Senhor;
que propósitos, que decisões a acção da graça quer provocar dentro de si.
E, ao reconhecer essas
exigências sobrenaturais e humanas de entrega e de luta, lembrai-vos de que o
nosso modelo é Jesus Cristo, e que Jesus, sendo Deus, permitiu que O tentassem,
para que assim nos enchêssemos de ânimo e ficássemos certos da vitória.
Porque Ele não perde batalhas;
estando unidos a Ele, nunca seremos vencidos, mas poderemos chamar-nos e ser
realmente vencedores - bons filhos de Deus.
Vivamos contentes.
Eu estou contente.
Não o deveria estar
olhando para a minha vida, fazendo esse exame pessoal de consciência que este
tempo litúrgico da Quaresma nos pede...
Mas sinto-me contente,
porque vejo que o Senhor me procura uma vez mais, que o Senhor continua a ser
meu Pai.
Sei que vós e eu,
decididamente, com o resplendor e a ajuda da graça, veremos que coisas há que
queimar, e queimá-las-emos; que coisas há que entregar, e entregá-las-emos!
A tarefa não é fácil.
Mas contamos com uma
orientação clara, com uma realidade de que não devemos nem podemos prescindir:
somos amados por Deus e deixaremos que o Espírito Santo actue em nós e nos
purifique, para podermos abraçar-nos assim ao Filho de Deus na Cruz,
ressuscitando depois com Ele, porque a alegria da Ressurreição está enraizada
na Cruz.
Maria, nossa Mãe, auxilium
christianorum, refugium peccatorum, intercede junto de teu Filho para que nos
envie o Espírito Santo, que desperte em nossos corações a decisão de
caminharmos com passo firme e seguro, fazendo soar no mais fundo da nossa alma
o chamamento que encheu de paz o martírio de um dos primeiros cristãos: veni ad
Patrem - vem, volta ao teu Pai, que te espera!
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Lemos na Santa Missa um
texto do Evangelho segundo S. João, que nos relata a cena da cura milagrosa do
cego de nascença. Suponho que todos nos comovemos uma vez mais perante o poder
e a misericórdia de Deus, que não olha com indiferença para a desgraça humana.
Mas preferia agora
centrar-me sobre outros aspectos, para que vejamos, em concreto, que quando há
amor de Deus, o cristão não pode ficar indiferente perante a sorte dos outros
homens e deve tratar toda a gente com respeito; e que, além disso, que quando
esse amor diminui, surge o perigo de se invadir, fanática e impiedosamente, a
consciência alheia.
E, passando Jesus, - diz o
Santo Evangelho - viu um homem cego de nascença. Jesus, que passa...
Entusiasma-me com
frequência esta forma simples de narrar a clemência divina. Jesus passa e
apercebe-se imediatamente da dor. Reparai, em contrapartida, como eram
diferentes os pensamentos dos discípulos.
Perguntam-lhe: Mestre,
quem pecou: este ou os seus pais, para que nascesse cego?
Os falsos juízos
Não deve causar estranheza
que muitas pessoas, mesmo das que se têm por cristãs, se comportem de forma
semelhante.
Antes de mais nada, pensam
mal dos outros.
Sem prova alguma, partem
desse princípio.
E não só o pensam, como
até se atrevem a exprimi-lo em juízos temerários diante de toda a gente.
Com um pouco de
benevolência, a conduta dos discípulos poderia considerar-se leviana.
Naquela sociedade, como
hoje - nisto pouco se mudou - havia outros, os fariseus, que faziam dessa
atitude uma norma.
Recordai como Jesus os
denuncia: Veio João, que não comia nem bebia, e dizem: Ele tem demónio. Veio o
Filho do homem, que come e bebe, e dizem: Eis um glutão e bebedor de vinho,
amigo dos publicamos, e dos pecadores.
Ataque sistemático à fama,
denegrição de condutas irrepreensíveis. Esta crítica mordaz, cruel, sofreu-a
Jesus Cristo e não é raro que alguns reservem o mesmo tratamento para aqueles
que, conscientes das suas lógicas e naturais misérias e dos seus erros
pessoais, pequenos e inevitáveis - acrescentaria - dada a fraqueza humana,
desejam seguir o Mestre.
Mas a verificação dessas
realidades não deve levar-nos a justificar tais pecados e delitos - ou
"tagarelices", como se lhes chama com suspeita compreensão - contra o
bom nome de quem quer seja. Jesus anuncia que, se apodaram ao pai de família de
Belzebu, não é de esperar que tratem melhor com os da sua casa; mas esclarece
também que o que chamar louco ao seu irmão, será condenado ao fogo da geena.
Como nascerá esta
apreciação injusta dos outros?
Dir-se-ia que algumas
pessoas usam continuamente uma espécie de lentes que lhes altera a visão.
Não acreditam, por
princípio, que seja possível a rectidão ou, pelo menos, a luta constante por se
portar bem.
Tudo recebem, como reza o
antigo adágio filosófico, de acordo com o recipiente: com a sua própria
deformação.
Para eles, até o que há de
mais recto reflecte, apesar de tudo, uma intenção retorcida que procura
hipocritamente uma aparência de bondade.
Quando descobrem
claramente o bem, escreve S. Gregório, esquadrinham tudo para examinar se há,
para além disso, algum mal oculto.
(continua)