São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
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O cristão sabe que está
enxertado em Cristo pelo Baptismo; habilitado a lutar por Cristo pela
Confirmação; chamado a actuar no mundo pela participação que tem na função
real, profética e sacerdotal de Cristo; feito uma só coisa com Cristo pela
Eucaristia, Sacramento da unidade e do amor.
Por isso, tal como Cristo,
há-de viver voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada
um dos que o rodeiam, para a Humanidade inteira.
A fé leva-nos a reconhecer
Cristo como Deus, a vê-Lo como nosso Salvador, a identificarmo-nos com Ele,
actuando como Ele actuou.
O Ressuscitado, depois de
arrancar das suas dúvidas o Apóstolo Tomé, mostrando-lhe as chagas, exclama:
Bem-aventurados os que, sem me verem, acreditaram.
Aqui - comenta S. Gregório
Magno - fala-se de nós de um modo particular, porque nós possuímos
espiritualmente Aquele a Quem corporalmente não vimos.
Fala-se de nós, mas com a
condição de que as nossas acções se conformem à nossa fé.
Não crê verdadeiramente
senão quem, no seu actuar, põe em prática o que crê.
Por isso, a propósito
daqueles que da fé não possuem mais do que as palavras, diz S. Paulo: professam
conhecer Deus mas negam-no com as obras.
Não é possível separar em
Cristo o ser de Deus-Homem e a sua função de Redentor.
O Verbo fez-se carne e veio à Terra ut omnes
homines salvi fiant, para salvar todos os homens. Com todas as nossas misérias
e limitações pessoais, nós somos outros Cristos, o próprio Cristo, e somos
também chamados a servir todos os homens.
É necessário que ressoe
uma e outra vez aquele mandamento que continuará a ser novo através dos séculos:
Caríssimos - escreve S. João - não vos escrevo um mandamento novo, mas um
mandamento antigo, que recebestes desde o princípio.
Este mandamento antigo é a
palavra divina que ouvistes.
E, no entanto, falo-vos de
um mandamento novo, que é verdadeiro n'Ele mesmo e em vós porque as trevas já
passaram e já resplandece a verdadeira luz.
Quem diz que está na luz e
aborrece o seu irmão, ainda está nas trevas.
Quem ama o seu irmão
permanece na luz e nele não há ocasião de queda.
Nosso Senhor veio trazer a
paz, a boa nova, a vida a todos os homens.
Não só aos ricos, nem só
aos pobres; não só aos sábios, nem só à gente simples; a todos; aos irmãos,
pois somos irmãos, já que somos filhos de um mesmo Pai, Deus.
Não há, portanto, mais do
que uma raça: a raça dos filhos de Deus. Não há mais que uma cor: a cor dos
filhos de Deus.
E não há senão uma língua:
a que nos fala ao coração e à inteligência, sem ruído de palavras, mas
dando-nos a conhecer Deus e fazendo que nos amemos uns aos outros.
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Contemplação da vida de
Cristo
É esse amor de Cristo que
cada um de nós deve se esforçar por realizar na sua vida.
Mas para ser ipse Christus
é preciso mirar-se Nele. Não basta ter-se uma ideia geral do espírito que Jesus
viveu; é preciso aprender com Ele pormenores e atitudes.
É preciso contemplar a sua
vida, sobretudo para daí tirar força, luz, serenidade, paz.
Quando se ama alguém,
deseja-se conhecer toda a sua vida, o seu carácter, para nos identificarmos com
essa pessoa.
Por isso temos de meditar
na vida de Jesus, desde o Seu nascimento num presépio até à Sua morte e à Sua
Ressurreição.
Nos primeiros anos do meu
labor sacerdotal costumava oferecer exemplares do Evangelho ou livros onde se
narra a vida de Jesus, porque é necessário que a conheçamos bem, que a tenhamos
inteira na mente e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem
necessidade de nenhum livro, cerrando os olhos, possamos contemplá-la como um
filme; de forma que, nas mais diversas situações da nossa vida, acudam à
memória as palavras e os actos do Senhor.
Sentir-nos-emos assim
metidos na sua vida.
Na verdade, não se trata
apenas de pensar em Jesus e de imaginar aqueles episódios; temos de meter-nos
em cheio neles, como actores; temos de seguir Cristo tão de perto como Santa
Maria, sua Mãe; como os primeiros Doze; como as santas mulheres; como aquelas
multidões que se apertavam ao Seu redor.
Se fizermos assim, se não
criarmos obstáculos, as palavras de Cristo penetrarão até ao fundo da nossa
alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva, eficaz e mais
penetrante que uma espada de dois gumes; introduz-se até à divisão da alma e do
espírito, até às junturas e medulas; e discerne os pensamentos e intenções do
coração.
Se queremos levar os
outros homens ao Senhor, é necessário abrir o Evangelho e contemplar o amor de
Cristo.
Podíamos fixar as
cenas-cume da Paixão, porque, como Ele mesmo disse, ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Mas também podemos considerar o
resto da sua vida, o seu modo habitual de tratar com quem se cruzava com Ele.
Cristo, perfeito Deus e
perfeito Homem, procedeu de um modo humano e divino para fazer chegar aos
homens a Sua doutrina de salvação e para lhes manifestar o amor de Deus.
Deus condescende com o
homem, assume a nossa natureza sem reservas, excepto no pecado.
Dá-me uma grande alegria
considerar que Cristo quis ser plenamente homem, com carne como a nossa.
Emociona-me contemplar a
maravilha de um Deus que ama com coração de homem.
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Entre tantas cenas narradas
pelos Evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas, começando pelos relatos
do convívio de Jesus com os Doze.
O Apóstolo João, que verte
no seu Evangelho a experiência de uma vida inteira, narra a primeira conversa
com o encanto daquilo que nunca mais se pode esquecer: - Mestre, onde moras?
Disse-lhe Jesus: Vinde e
vede. Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele aquele dia.
Diálogo divino e humano,
que transformou a vida de João e de André, de Pedro, de Tiago e de tantos
outros; que preparou os seus corações para escutarem a palavra imperiosa que
Jesus lhes dirigiu junto ao mar da Galileia: Caminhando Jesus junto ao mar da
Galileia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando
as redes ao mar, porque eram pescadores.
E disse-lhes: Segui-Me, e
Eu farei de vós pescadores de homens. Deixando as redes, imediatamente O
seguiram.
Nos três anos seguintes
Jesus convive com os seus discípulos, conhece-os, responde às suas perguntas,
resolve as suas dúvidas.
Sim, é o Rabi, o Mestre
que fala com autoridade, o Messias enviado por Deus; mas, ao mesmo tempo, é
acessível, próximo.
Um dia Jesus retira-se
para orar.
Os discípulos estavam
perto, olhando talvez para Ele e tentando adivinhar as suas palavras.
Quando regressa, um deles
roga-Lhe: - Domine, doce nos orare, sicut docuit et Ioannes discipulos suos;
ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos.
E Jesus responde-lhes:
Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o Teu nome...
Também com autoridade de
Deus e com carinho humano recebe o Senhor os Apóstolos, quando, assombrados
pelos frutos da sua primeira missão, Lhe comentavam as primícias do seu
apostolado: Vinde, retiremo-nos a um lugar deserto e repousai um pouco.
Uma cena muito similar se
repete quase no final da vida de Jesus na Terra, pouco antes da Ascensão: Ao
surgir a manhã, apresentou-Se Jesus na praia, mas os discípulos não sabiam que
era Ele.
Disse-lhes então Jesus:
Rapazes, tendes alguma coisa de comer? Aquele que tinha perguntado como homem,
fala depois como Deus: Lançai a rede à direita do barco e encontrareis.
Lançaram-na, pois, e mal a
podiam arrastar., devido à grande quantidade de peixe.
Então o discípulo
predilecto de Jesus disse a Pedro: É o Senhor.
E Deus espera-os na
margem: Logo que saltaram para terra viram ali umas brasas com peixe em cima, e
pão.
Disse-lhes Jesus: Trazei
dos peixes que apanhastes agora. Simão Pedro subiu à barca e puxou a rede para
terra, cheia de cento e cinquenta e três grandes peixe; e, sendo tantos, não se
rompeu a rede. Disse-lhes, Jesus: Vinde comer.
E nenhum dos discípulos se
atrevia a perguntar-Lhe: Quem és Tu?, sabendo que era o Senhor.
Então Jesus aproximou-Se,
tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe.
Esta delicadeza e carinho,
manifesta-os Jesus, não só com um pequeno grupo de discípulos, mas com todos:
com as santas mulheres, com representantes do Sinédrio, com Nicodemos e com
publicamos, como Zaqueu, com doentes e com sãos, com doutores da Lei e com
pagãos, com pessoas, individualmente, e com multidões inteiras.
Narram-nos os Evangelhos
que Jesus não tinha onde reclinar a cabeça, mas contam-nos também que tinha
amigos queridos e de confiança, ansiosos por recebê-Lo em sua casa.
E falam-nos da sua
compaixão pelos enfermos, da sua mágoa pelos que ignoram e erram, da sua
indignação perante a hipocrisia.
Jesus chora pela morte de
Lázaro, ira-se com os mercadores que profanam o Templo, deixa que se enterneça
o seu coração com a dor da viúva de Naim.
(cont)