São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
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Após este protesto de
amor, é necessário comportarmo-nos como amigos de Deus.
In omnibus exhibeamus
nosmetipsos sicut Dei ministros; comportemo-nos em tudo como servidores do
Senhor.
Se te dás como Ele quer, a
acção divina manifestar-se-á na tua conduta profissional, no trabalho, num
empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo
Amor todas adquirem uma nova dimensão.
Mas nesta Quaresma não
podemos esquecer que querer ser servidores de Deus não é fácil.
Continuemos a seguir o
texto de S. Paulo que a Epístola deste Domingo recolhe, para recordarmos as
dificuldades: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo - com muita
paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos
cárceres, nas sedições, no trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com
doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade
sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus.
Nos mais diferentes
momentos da vida, em todas as situações., havemos de comportarmo-nos como
servidores de Deus, sabendo que o Senhor está connosco, que somos seus filhos.
É preciso sermos
conscientes dessa raiz divina, que está enxertada na nossa vida, e actuar em
conformidade.
Estas palavras do Apóstolo
deve encher-vos de alegria, porque são como que uma canonização da vossa
vocação de cristãos correntes, vivendo no meio do mundo, compartilhando com os
demais homens, vossos iguais, ideais, trabalhos e alegrias. Tudo isso é caminho
divino.
O que o Senhor vos pede é
que a todo o momento actueis como filhos e servidores seus.
Mas estas circunstâncias
ordinárias da vida só serão caminho divino se realmente nos convertermos, se
nos entregarmos.
S. Paulo, na verdade, usa
uma linguagem dura.
Promete ao cristão uma
vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se tem desfigurado o
Cristianismo quando se tem pretendido fazer dele um caminho cómodo!
Mas também é uma
desfiguração da verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece
vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de
opressão ou de medo.
O cristão é realista, de
um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e
a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a
generosidade e a tendência para o egoísmo...
O cristão conhece tudo e
com tudo se enfrenta, cheio de inteireza humana e de fortaleza recebida de
Deus.
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As tentações de Cristo
A Quaresma comemora os
quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para os anos de
pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa.
Quarenta dias de oração e
de penitência, no fim dos quais teve lugar o episódio que a liturgia de hoje
oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.
É uma cena cheia de
mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que Se submete à
tentação, que deixa actuar o Maligno... - mas que pode ser meditada, pedindo ao
Senhor que nos faça compreender a lição nela contida.
Jesus Cristo tentado!
A Tradição esclarece este
episódio considerando que Nosso Senhor quis sofrer a tentação para nos dar
exemplo em tudo.
Assim é, porque Cristo foi
perfeito homem, igual a nós, salvo no pecado.
Após quarenta dias de
jejum, com o simples alimento, possivelmente, de ervas e de raízes e de um
pouco de água, Jesus sente fome - fome autêntica, como a de qualquer criatura.
E quando o Demónio lhe
propõe que transforme em pão as pedras, Nosso Senhor não só rejeita o alimento
que o corpo lhe pedia, mas afasta de Si uma incitação maior: a de usar o poder
divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.
Tereis notado isso ao
longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em proveito próprio.
Converte a água em vinho
para os noivos de Caná; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma
multidão faminta; mas Ele ganha o seu pão, durante muitos anos, com o seu
próprio trabalho.
E mais tarde, durante o
tempo em que peregrina por terras de Israel, vive com a ajuda daqueles que O
seguem
Relata S. João que, depois
de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, manda os seus
discípulos à cidade para comprarem alimentos; e ao ver aproximar-se a
Samaritana pede-lhe água, porque Ele não tinha com que tirá-la.
O seu corpo fatigado pela
longa caminhada sofre o cansaço e, outras vezes, para refazer energias, recorre
ao sono.
Generosidade do Senhor que
Se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não Se serve do seu
poder divino para fugir das dificuldades ou do esforço!
E assim nos ensina a ser
fortes, a amar o trabalho, a nobreza humana e divina de saborear as
consequências da entrega, da doação.
Na segunda investida,
quando o Demónio Lhe propõe que Se lance do pináculo do Templo, Jesus rejeita
de novo a tentação de querer servir-Se do seu poder divino.
Cristo não busca a
vangloria, o aparato, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de
fundo da nossa própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai
sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, percorrendo passo a
passo a dura senda dos homens, o amável caminho da cruz.
Algo muito parecido vemos
na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória.
O Demónio pretende
estender a ambições humanas uma atitude que se deve reservar só a Deus: promete
uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos.
Nosso Senhor reconduz a
adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus - e reafirma a sua vontade de
servir: Afasta-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e
só a Ele servirás.
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Aprendamos desta atitude
de Jesus: durante a sua vida na Terra, não quis sequer a glória que Lhe
pertencia, pois, tendo direito a ser tratado como Deus, assumiu a forma de
servo, de escravo.
O cristão sabe, portanto,
que toda a glória é para Deus e que não pode servir-se da sublimidade e
grandeza do Evangelho como instrumento de interesses e de ambições humanas.
Aprendamos de Jesus: a sua
atitude, ao opor-se a toda a glória humana, está em perfeita correlação com a
grandeza de uma única missão - a de Filho predilecto de Deus, que encarna para
salvar os homens.
Missão que o amor do Pai
rodeou cheia de ternura: Filius meus es, ego hodie genui te. Postula a me et
dabo tibi gentes hereditatem tuam. - Tu és meu filho, Eu hoje Te gerei. Pede-Me
e Eu Te darei as nações em herança...
O cristão que, seguindo
Cristo, vive nessa atitude de completa adoração do Pai, recebe também do Senhor
palavras de amoroso desvelo: Porque espera em Mim, Eu o livrarei;
protegê-lo-ei, porque conhece o meu nome.
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Jesus disse que não ao
Demónio, ao príncipe das trevas.
E imediatamente se
manifesta a luz: Então o Diabo deixou-O e chegaram os Anjos e serviram-no.
Jesus suportou a prova,
uma prova verdadeira, porque, comenta Santo Ambrósio, não procedeu como Deus,
usando do seu poder (se não, de que nos serviria o seu exemplo?) mas, como
homem, serviu-Se dos auxílios que tem em comum connosco.
O Demónio, com retorcida
intenção, citou o Antigo Testamento: Deus enviará os seus Anjos para que
protejam o Justo em todos os seus caminhos.
Mas Jesus, recusando-se a
tentar seu Pai, devolve a essa passagem bíblica o seu verdadeiro sentido.
E, como prémio da sua
fidelidade, chegado o tempo, apresentam-se os mensageiros de Deus Pai para O
servirem.
Vale a pena reparar no
modo de proceder de Satanás com Jesus Cristo: argumenta com textos dos Livros
Sagrados, retorcendo, desfigurando de forma blasfema o seu sentido.
Mas Jesus não se deixa
enganar: o Verbo feito carne bem conhece a Palavra divina, escrita para
salvação dos homens e não para confusão e condenação.
Quem está unido a Jesus
Cristo pelo Amor - tal é a conclusão que devemos tirar - nunca se deixará
enganar por manejos fraudulentos da Sagrada Escritura, porque sabe que é obra
típica do Demónio procurar confundir a consciência cristã utilizando com dolo
os mesmos termos usados pela eterna Sabedoria, tentando fazer da luz trevas.
Contemplemos um pouco esta
intervenção dos Anjos na vida de Jesus, pois assim entenderemos melhor o seu
papel - a missão angélica - em toda a vida humana.
A tradição cristã
apresenta os Anjos da Guarda como grandes amigos, colocados por Deus junto de
cada homem para o acompanharem nos seus caminhos.
E por isso convida-nos a
ganhar intimidade com eles e a recorrer a eles.
A Igreja, fazendo-nos
meditar nestas passagens da vida de Cristo, recorda-nos que, em tempo de
Quaresma, em que nos reconhecemos pecadores, cheios de misérias, necessitados
de purificação, também tem cabimento a alegria.
É que a Quaresma é
simultaneamente um tempo de fortaleza e de júbilo: devemos encher-nos de ânimo,
visto que a graça do Senhor não nos faltará, pois Deus estará a nosso lado e
enviar-nos-á os seus Anjos, para que sejam nossos companheiros de viagem,
nossos prudentes conselheiros ao longo do caminho, nossos colaboradores em
todos os empreendimentos.
In manibus portabunt te,
ne forte offendas ad lapidem pedem tuum, diz o salmo: Os Anjos levar-te-ão nas
suas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra.
É preciso saber tratar com
intimidade os anjos.
Recorre a eles agora, diz
ao teu Anjo da Guarda que estas águas sobrenaturais da Quaresma não deslizaram
em vão sobre a tua alma, mas nela penetraram até ao fundo, porque tens um
coração contrito. Pede-lhes que levem ao Senhor a boa vontade que a graça fez
germinar na nossa miséria, como um lírio nascido numa esterqueira. Sancti
Angeli Custodes nostri: defendite nos in proelio, ut non pereamus in tremendo
judicio - Santos Anjos da Guarda: defendei-nos na batalha, para que não
pereçamos no terrível juízo.
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Como se explica esta
oração confiante, esta certeza de que não pereceremos na batalha?
É um convencimento que
parte de uma realidade que nunca me cansarei de admirar: a nossa filiação
divina.
O Senhor, que nesta
Quaresma pede a nossa conversão, não é um dominador tirânico, nem um juiz
rígido e implacável; é nosso Pai. Fala-nos dos nossos pecados, dos nossos
erros, da nossa falta de generosidade, mas é para nos livrar deles e nos
prometer a sua amizade e o seu amor.
A consciência da nossa
filiação divina dá alegria à nossa conversão; diz-nos que estamos a voltar à
casa do Pai.
A filiação divina é o
fundamento do espírito do Opus Dei.
Todos os homens são filhos
de Deus, mas um filho pode reagir de muitos modos diante do seu pai.
Temos de esforçar-nos por
ser filhos que procuram lembrar-se de que o Senhor, querendo-nos como filhos,
fez com que vivamos em sua casa no meio deste mundo; que sejamos da sua
família; que o que é seu seja nosso e o nosso seu; que tenhamos com Ele a mesma
familiaridade e confiança com que um menino é capaz de pedir a própria Lua!
Um filho de Deus trata o
Senhor como Pai.
Não servilmente, nem com
uma reverência formal, de mera cortesia, mas cheio de sinceridade e de confiança.
Deus não se escandaliza
com os homens.
Deus não Se cansa das
nossas infidelidades.
O nosso Pai do Céu perdoa
qualquer ofensa quando o filho volta de novo até Ele, quando se arrepende e
pede perdão.
Nosso Senhor é tão
verdadeiramente pai, que prevê os nossos desejos de sermos perdoados e se
adianta com a sua graça, abrindo-nos amorosamente os braços.
Reparai que não estou a
inventar nada.
Recordai a parábola que o
Filho de Deus nos contou para que entendêssemos o amor do Pai que está nos
Céus: a parábola do filho pródigo.
Ainda estava longe - diz a
Escritura - quando o pai o viu e, enchendo-se de compaixão, correu a
lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Estas são as palavras do
livro sagrado: cobrindo-o de beijos!
Pode falar-se mais humanamente?
Pode descrever-se com mais
viveza o amor paternal de Deus para com os homens?
Perante um Deus que corre
para nós, não podemos calar-nos e dir-Lhe-emos com S. Paulo: Abba, Pater! Pai!
Meu Pai!
Pois, sendo Ele o criador
do universo, não dá importância a títulos altissonantes, nem sente falta da
justa confissão do seu poderio. Quer que Lhe chamemos Pai, que saboreemos essa
palavra, enchendo a alma de alegria.
De certo modo, a vida
humana é um constante voltar à casa do nosso Pai, um regresso mediante a
contrição, a conversão do coração que significa o desejo de mudar, a decisão
firme de melhorar a nossa vida e que, portanto, se manifesta em obras de
sacrifício e de doação; regresso a casa do Pai, por meio do sacramento do
perdão, em que, ao confessar os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos
tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus.
Deus espera-nos como o pai
da parábola, estendendo para nós os braços, embora não o mereçamos.
Não importa o que lhe
devemos.
Como no caso do filho
pródigo, o que é preciso é que lhe abramos o coração, que tenhamos saudades do
lar paterno, que nos maravilhemos e nos alegremos perante o dom que Deus nos
faz de nos podermos chamar e sermos realmente, apesar de tanta falta de
correspondência da nossa parte, seus filhos.
(cont)