08/04/2018

Leitura espiritual

Fortaleza

Ser fortes de espírito ajuda a ultrapassar as dificuldades e a superar os nossos limites. Para os cristãos, Cristo é o exemplo para viver uma virtude que abre a porta a muitas outras.
1. “Per aspera ad astra!” “Pelas dificuldades às estrelas”.
Esta conhecida frase de Séneca exprime, de modo gráfico, a experiência humana de que, para conseguir o melhor, é preciso esforçar-se, de que “o que tem valor, custa”, de que é preciso lutar para vencer os obstáculos e asperezas que nunca deixam de se apresentar ao longo da vida, para poder alcançar os bens mais elevados.

Muitas peças literárias de diversas culturas enaltecem a figura do herói, que encarna, de algum modo, aquelas palavras da sabedoria latina, que qualquer pessoa desejaria também para si: nil difficile volenti, nada é difícil para aquele que quer.

Assim, pois, a nível humano, a fortaleza é valorizada e admirada. Esta virtude, que vai a par com a capacidade de se sacrificar, tinha já entre os antigos um perfil bem definido.
O pensamento grego considerava a “andreia” como uma das virtudes cardeais [1], que modera os sentimentos de contenda próprios do apetite irascível e dá, assim, vigor ao homem para procurar o bem sem que o medo o detenha, mesmo que seja difícil e árduo.

2. “Quia tu es fortitudo mea(Sal 31, 5)

Pertence também à experiência humana a constatação da debilidade da nossa condição, que constitui, em certo sentido, a outra face da moeda da virtude da fortaleza.
Muitas vezes temos de reconhecer que não fomos capazes de realizar tarefas que teoricamente estavam ao nosso alcance.

Dentro de nós encontramos a tendência para desmoronar, para ser brandos connosco próprios, para renunciar ao que dá trabalho devido ao esforço que comporta.
Por outras palavras, a natureza humana, criada por Deus para o mais elevado, mas ferida pelo pecado, é capaz de grandes sacrifícios e também de grandes claudicações.

A Revelação cristã oferece uma resposta plena de sentido a essa condição paradoxal em que versa a nossa existência.
Com efeito, por um lado, assume os valores próprios da virtude humana da fortaleza, que é enaltecida em numerosas ocasiões na Bíblia.
Já a literatura sapiencial se fazia eco disso, ao dar a entender, sob a forma de uma pergunta retórica no livro de Job, que a vida do homem sobre a terra é milícia [2].

Com uma frase, em certo sentido misteriosa, Jesus, falando do Reino de Deus, diz que o alcançam os violentos: violenti rapiunt [3].
Esta ideia ficou reflectida na iconografia medieval, como sucede por exemplo na Capela de Todos os Santos de Ratisbona, onde a imagem que representa a fortaleza luta contra um leão.

Simultaneamente, são numerosos os textos da Escritura que sublinham como as diversas manifestações de um comportamento forte (paciência, perseverança, magnanimidade, audácia, firmeza, franqueza e, inclusive, a disposição para dar a vida) provêm e só podem ser mantidas se estiverem ancoradas em Deus: quia tu es fortitudo mea, porque Tu és a minha fortaleza (Sal 31, 5) [4].
Por outras palavras, a experiência cristã ensina que “toda a nossa fortaleza é emprestada” [5].

São Paulo exprime de modo certeiro este paradoxo, em que se entrelaçam os aspectos humanos e sobrenaturais da virtude: “quando sou fraco, então é que sou forte”, já que, como lhe assegurou o Senhor: “sufficit tibi gratia mea, nam virtus in infirmitate perficitur, basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que o Meu poder se manifesta por completo” [6].

3. “Sem Mim nada podeis fazer(Jo 15, 5)

O modelo e fonte de fortaleza para o cristão é, portanto, o próprio Cristo, que não só oferece com as Suas acções um exemplo constante que chega ao extremo de dar a própria vida por amor aos homens [7], mas que, além disso, afirma: “sem Mim nada podeis fazer[8].

Assim, a fortaleza cristã torna possível o seguimento de Cristo, um dia e outro, sem que o temor, o prolongamento do esforço, os sofrimentos físicos ou morais, os perigos, obscureçam no cristão a percepção de que a verdadeira felicidade está em seguir a vontade de Deus, ou o afastem dela.
A advertência de Jesus Cristo é clara: “Expulsar-vos-ão das sinagogas. Virá tempo em que todo aquele que vos matar julgará prestar culto a Deus” [9].

4. “Beata quae sine morte meruit martyrii palmam”: o martírio da vida quotidiana

Desde o início que os cristãos consideraram uma honra sofrer o martírio, pois reconheciam que conduzia a uma plena identificação com Cristo.
A Igreja manteve ao longo da história uma tradição de particular veneração pelos mártires que, por especial disposição da Providência, derramaram o seu sangue para proclamar a sua adesão a Jesus, oferecendo, assim, o exemplo máximo não só de fortaleza, mas também de testemunho cristão [10].

Embora não tenham faltado em cada época histórica – a nossa incluída – esses testemunhos do Evangelho, o certo é que, na vida corrente em que se encontram a maior parte dos cristãos, dificilmente chegaremos a essas condições. 

Não obstante, como recordava Bento XVI, há também um “martírio da vida quotidiana”, de cujo testemunho o mundo de hoje está especialmente necessitado: “o testemunho silencioso e heróico de tantos cristãos que vivem o Evangelho sem transigir, cumprindo o seu dever e dedicando-se generosamente ao serviço dos pobres” [11].

Neste sentido, o olhar dirige-se para Santa Maria, pois Ela esteve ao pé da Cruz do seu Filho, dando exemplo de extraordinária fortaleza sem padecer a morte física, de modo que pode dizer-se que foi mártir sem morrer, como o afirma uma antiga oração litúrgica [12].
“Admira a firmeza de Santa Maria:
ao pé da Cruz, com a maior dor humana – não há dor como a sua dor – cheia de fortaleza. E pede-lhe dessa firmeza, para que saibas também estar junto da Cruz” [13].

5. “Omnia sustineo propter electos(2Tm 2, 10)

A Virgem dolorosa é testemunha fiel do amor de Deus, e ilustra muito bem o acto mais próprio da virtude da fortaleza, que consiste em resistir (sustinere) [14] ao adverso, ao desagradável, ao duro.
Certamente, que se trata de um resistir no bem, porque sem o bem não há felicidade.
Para o cristão a felicidade identifica-se com a contemplação da Trindade no Céu. 

Em Santa Maria cumprem-se as palavras do Salmo: si consistant adversum me castra, non timebit cor meum... se se levantarem exércitos contra mim, o meu coração não temerá [15].
Também São Paulo, antes de chegar ao supremo testemunho de Cristo, se exercitou durante a sua vida neste ato característico da fortaleza, até poder afirmar: “tudo suporto por amor dos escolhidos[16].

Para expressar este aspecto da virtude (resistência), a Sagrada Escritura costuma referir-se à imagem da rocha.
Jesus numa das suas parábolas alude à necessidade de construir sobre rocha, quer dizer, não só ouvir a Sua palavra, mas esforçar-se por pô-la em prática [17].
Entende-se que, em última instância, a rocha é Deus, como não cessa de repetir o Antigo Testamento [18]:
“Minha rocha e meu baluarte, meu libertador, meu Deus, a rocha em que me amparo, meu escudo e força da minha salvação” [19].
Não surpreende então que São Paulo chegue a afirmar que a rocha é o próprio Cristo [20], que é “força de Deus[21].

A fortaleza para resistir nas dificuldades provém, pois, da união com Cristo pela fé, como indica São Pedro:
resistite fortes in fide!, resisti-lhes fortes na fé [22].

Deste modo, pode dizer-se que, em certo sentido, o cristão se converte, como Pedro, na rocha em que Cristo se apoia para construir e manter a sua Igreja [23].

© ISSRA, 2009
Notas:

[1] Cfr. Ángel Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. III. Morale speciale, EDUSC, Roma 2008, pp. 284 e 289.
[2] Cfr. Jb 7, 1.
[3] Mt 11, 12.
[4] Cfr. Ex 15, 2, Esd 8, 10; Is 25,1; Sal 31,4; 46, 2; 71,3; 91,2; 1Tm 1,12; 2Tm 1, 7; Col 1, 11; Flp 4, 1; Ro 5, 3-5.
[5] São Josemaria, Caminho, n. 728.
[6] 2Co 12, 9-10.
[7] Cfr. Jo 13, 15 e 15, 13.
[8] Jo 15, 5.
[9] Jo 16, 2.
[10] Cfr. Catecismo de la Iglesia Católica, n. 2473. Como se sabe, a palavra latina martyr deriva do grego mártys, que significa testemunha.
[11] Bento XVI, Angelus, 28 de outubro de 2007. São Josemaria descrevia este martírio incruento em Caminho, n. 848.
[12] “Bem-aventurada Virgem Maria, que mereceu, sem morrer, a palma do martírio junto da Cruz do Senhor”. Trata-se do Communio da festa da Virgem Dolorosa no antigo Missal de São Pio V, que, com um ligeiro retoque, passou a ser, na forma corrente do rito latino, a antífona do aleluia da lição evangélica nº 11 do Comum da Santíssima Virgem: “Beata est Maria Virgo, quae sine morte meruit martyrii palmam sub cruce Domini” (cfr. Pedro Rodríguez, n. 622 de Camino, edición crítico-histórica, Rialp, Madrid 2004).
[13] São Josemaria, Caminho, n. 508.
[14] Cfr. Ángel Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. III. Morale speciale, EDUSC, Roma 2008, p. 291.
[15] Sal 27, 3.
[16] 2Tm 2, 10.
[17] Cfr. Lc 6, 47-49.
[18] Cfr. 1 Sam 2,2; 2 Sam 22, 47; Dt 32,4; Hab 1,12; Is 26,4; Sal 19,15; Sal 28,1; Sal 31,3-4; Sal 62,3.7-8; Sal 89,2; Sal 94,22; Sal 144,1; etc.
[19] 2S 22, 2-3; cfr. Sal 18, 3.
[20] 1Co 10, 4.
[21] 1Co 1, 24.
[22] 1P 5, 9.

[23] Cfr. Mt 16, 18.

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