SER BOM
HOMENS
BONS
Uma das impressões mais
gratas e indeléveis da vida é ter conhecido um homem bom.
Quando evocamos a figura de
pessoas que nos marcaram pela sua bondade, sentimos um misto de admiração e
agradecimento. Encontramo-las na vida, talvez tenhamos tido a fortuna de
conviver com elas e, sempre que as recordamos, brota-nos de dentro o impulso de
pensar ou de comentar:
“Esse, sim, era um homem
bom!”
Mas se nos perguntam por que
dizemos de certa pessoa que é “boa”, possivelmente nos será difícil expressá-lo
em poucas palavras. Talvez só consigamos descrever alguns traços dessa bondade
que tanto nos toca, dizendo: é alguém que trata bem a todo o mundo, tem um
coração grande, é compreensivo, prestativo, solícito..., seus sentimentos são
puros e generosos...
Ficaríamos, porém, com a
impressão de não termos sabido exprimir cabalmente o que sentimos, da mesma
maneira que não poderíamos explicar a luz do sol limitando-nos a descrever a
incidência de alguns dos seus raios na folha verde, no azul de uma janela ou no
rosto de uma criança.
Em todo o caso, deixaríamos
clara uma coisa, e é que consideramos boa uma pessoa que, dotada de especiais
qualidades morais, exerceu sobre nós uma influência benfazeja. Pois acontece que
a bondade é captada sobretudo pelos seus efeitos. Talvez não saibamos dizer com
exatidão o que é, mas certamente sabemos que uma pessoa boa nos faz bem.
Com efeito, a bondade,
quando existe, nota-se pela sua irradiação. Este é um ponto essencial para
captarmos o que é e o que significa.
Sempre que há alguma
irradiação – tanto nos seres físicos como nos espirituais –, é porque há “algo”
que projeta o seu influxo. Do nada, nada irradia. Só a matéria incandescente é
fonte de claridade e de calor. Da mesma forma, a ação benfazeja de um coração
sobre o nosso só pode proceder de uma qualidade interior desse coração. O
próprio Cristo fala-nos da bondade como de um tesouro interior do qual podem
ser extraídas riquezas que beneficiam os outros: O homem bom tira boas coisas
do seu bom tesouro; e o mau homem tira más coisas do seu mau tesouro (Mt 12, 35).
O que é, porém, esse tesouro?
Para início de reflexão, e antes de procurarmos uma resposta, muito nos poderá
ajudar delimitarmos previamente as diferenças que separam a bondade aparente –
falsa bondade – da bondade real.
A
BONDADE APARENTE
Todos conhecemos pessoas que
estão cercadas de uma auréola de bondade. Têm fama de bons. Parentes e
conhecidos costumam referir-se a elas dizendo: “É tão bom!”... Mas, não raro, começam
a frase que assim os qualifica com um adjetivo: “Coitado, é tão bom!...”, e
acompanham o comentário com um sorriso de condescendência. Logo adivinhamos o
que se esconde por trás do adjectivo e do sorriso: uma “bondade” que está unida
à falta de firmeza de espírito e de força de caráter. Uma bondade mole e
superficial.
Não é que essa “bondade”
seja uma “pose” ou uma atitude hipócrita. Não se trata, no caso, de uma pessoa
que finja sentir o que não sente. Trata-se de homens ou mulheres que têm bom coração
e uma natural inclinação para facilitar a alegria e o bem-estar dos outros. Mas
a sua bondade é frágil, inconsistente. Não é autêntica porque se apoia sobre
dois pilares falsos: um temperamento complacente e um sentimentalismo brando.
Essas pessoas “bonachonas” –
só “bonachonas”, não “boas” – fogem instintivamente de qualquer tipo de
conflitos ou estridências. Detestam cordialmente brigas e desavenças. Gostam de
agradar a todo o mundo e, por isso, tendem a concordar com tudo, a ceder em
tudo. A sua maior aspiração consiste em estar em paz com todos e gozar do
apreço geral. Sempre nos darão razão – mesmo que não a tenhamos –, contanto que
com isso nos sintamos satisfeitos e não nos criem, nem lhes criemos,
perturbações.
O “bondoso superficial”
parece compreensivo, mas é apenas tolerante. Não é que “compreenda”, isto é,
que entenda profunda e amorosamente os outros, para assim ajudá-los.
Simplesmente, concorda com
tudo para ganhar, com a sua condescendência, a estima alheia.
O “bondoso superficial”, o
“bonachão”, quer ser amável, mas não ama. Não passa de um fraco, que não sabe
dizer “não”. Por isso, os que com ele se relacionam, sabem que, no fundo, não têm
um amigo, nem um pai ou uma mãe que os amem na plena acepção da palavra; têm
somente um cúmplice muito conveniente.
A criança mimada, que diz
“papai é mau” sempre que este a contraria, não se cansa de dizer que a avó é “muito
boazinha”, porque lhe consente todos os caprichos.
É claro que tais bonachões
não são bons. E não o são precisamente porque não nos fazem bem. A bondade, ou
comunica um bem – um valor que aumenta a nossa qualidade moral –, ou não é
bondade.
AS
TRAIÇÕES SENTIMENTAIS
Os falsos bons, na
realidade, passam a vida alimentando com ramos odoríferos a caldeira do nosso
egoísmo, sem reparar que, querendo deixar-nos felizes com a sua brandura, nos
fazem deslizar cada vez mais para o abismo da nossa infelicidade. É um fato que
só o amor e a verdade nos realizam, e o egoísmo nos destrói.
Por sua vez, o bondoso
sentimental é ele próprio um egoísta. A sua máxima aspiração é “ficar bem”,
“ser agradável”, “ser simpático”. E, em troca de granjear o nosso apreço, não hesita
em abençoar a mentira e acobertar o mal.
O filho ou um amigo estão à
beira de desmanchar o casamento por motivos fúteis? Jamais passará pela mente
do “bonachão” estender-lhes a mão com sacrifício, ajudá-los a reagir, passar um
mau bocado para tentar que reconsiderem o mau passo que estão prestes a dar e
enfrentem o dever.
Preferirá observar tudo “sem
interferir”, e achará por bem comentar docemente: “Deixa, ele tem o direito de
ser feliz”. Uma vez consumada a catástrofe, que pode ter consequências irreversíveis
– especialmente para os inocentes, para os filhos –, o nosso homem “bom”
limitar-se-á a sacudir a cabeça e a comentar: “Vamos torcer para que dê tudo
certo”.
É o mesmo que, enganando
miseravelmente a sua consciência, deixará passivamente que a filha se envolva
com amizades bem pouco recomendáveis, porque não quer atritos e – além do mais –
é muito incómodo carregar a etiqueta de “pai antiquado e tirânico”. Por isso,
não será nem tirano – no que fará bem – nem pai – no que fará pessimamente. E
quando estourarem as consequências lamentáveis da sua omissão, chorará lágrimas
mansas e se consolará dizendo: “A juventude actual é difícil, é diferente da
juventude dos meus tempos”. Mas a filha já estará moralmente aniquilada.
Os bons sentimentais e
vazios são os protagonistas constantes do que poderíamos chamar a “anti-parábola”
do bom samaritano.
Na parábola evangélica
relatada por São Lucas (Lc 10, 25-37), o bom samaritano encontra estendido na
estrada um judeu que acaba de ser assaltado por ladrões e que está ferido e
meio morto. Que fazer? O judeu é seu inimigo – pois, como é sabido, judeus e
samaritanos se odiavam –, e portanto o problema não parece ser da sua conta.
Vencendo, contudo, essas barreiras, decide-se a atendê-lo. E faz tudo para
assisti-lo e curá-lo. Primeiro, limpa-lhe as feridas, suavizando-as com óleo e
purificando-as com vinho; depois, carrega-o na sua montaria e instala-o numa
estalagem, adiantando o dinheiro necessário para que tratem dele. As suas
ocupações obrigam-no a afastar-se por umas horas, mas logo volta à hospedaria
para certificar-se de que não faltou ao enfermo nenhuma assistência. Cuidou
dele em tudo, resume Cristo. Por isso, o bom samaritano fica no Evangelho como
a imagem perfeita da bondade movida pelo amor.
Pois bem. Imaginemos –
caricaturizando a cena – o que teria feito um samaritano “bonachão”. Não é
difícil descrever a “anti-parábola”, pensando em tantos homens “bons” que infelizmente
andam pelo mundo. Chega ao pé do ferido e sente-se impressionado. “Coitado!”, exclama,
e acrescenta: “Neste mundo acontece cada coisa!” Acocora-se junto dele,
dirige-lhe um olhar terno e limita-se a “consolá-lo”: “Dói muito? Vai ver, não
há de ser nada”. Nem cogita de intervir no caso: se pegar nele para cuidá-lo,
pode “machucá-lo” ou pode “comprometer-se”.
Limita-se, por isso, a
dar-lhe uma afetuosa palmadinha, a colocar-lhe um pano bem almofadado debaixo
da cabeça e a afastar-se comovido com os seus próprios sentimentos, ao mesmo
tempo que murmura baixinho: “Acho que assim vai sentir-se melhor”. Naturalmente
o ferido, envolto em tanta “bondade”, morrerá poucas horas depois. É possível
que o “bondoso” deixe ainda alguma esmolinha para o enterro.
Ironias à parte, qualquer
pessoa lúcida é capaz de compreender que isto é o que fazem connosco os
bonachões de que estamos falando.
Francisco
Faus [i]
[i]
Francisco Faus é licenciado em Direito pela
Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São
Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde
exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários
e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas,
já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os títulos O valor das
dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a
mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.
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