TEMA 6 A Criação
1.
O acto criador
«Por
quem tudo foi feito»
A literatura sapiencial do
Antigo Testamento apresenta o mundo como fruto da sabedoria de Deus [ii].
«O mundo não é fruto duma
qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso» [iii],
mas tem uma inteligibilidade que a razão humana, participando na luz do
Entendimento divino, pode captar, não sem esforço e num espírito de humildade e
de respeito perante o Criador e a Sua obra [iv].
Este desenvolvimento chega à
sua expressão plena no Novo Testamento; ao identificar o Filho, Jesus Cristo,
com o Logos [v],
afirma que a sabedoria de Deus é uma Pessoa, o Verbo encarnado, por quem tudo
foi feito [vi].
São Paulo formula esta
relação do criado com Cristo, esclarecendo que todas as coisas foram criadas
n’Ele, por Ele e para Ele [vii].
O cristianismo tem desde o
início uma grande confiança na capacidade da razão humana para conhecer e uma
enorme segurança em que jamais a razão – científica, filosófica, etc. – poderá
chegar a conclusões contrárias à fé, pois ambas provêm de uma mesma origem.
Não é infrequente
encontrarem-se pessoas que colocam falsas disjuntivas, como por exemplo, entre
criação e evolução.
Na realidade, uma adequada
epistemologia não só distingue os âmbitos próprios das ciências naturais e da
fé, mas, além disso, reconhece na filosofia um elemento necessário de mediação,
pois as ciências, com o seu método e objecto próprios, não cobrem a totalidade
do âmbito da razão humana e a fé, que se refere ao próprio mundo de que falam
as ciências; necessita de categorias filosóficas [x]
para se formular e entrar em diálogo com a racionalidade humana.
É, pois, lógico que desde o
início, a Igreja procurasse o diálogo com a razão, uma razão consciente do seu
carácter criado, pois não se deu a si própria a existência, nem dispõe,
completamente, do seu futuro; uma razão aberta ao que a transcende, ou seja, à
Razão originária.
Paradoxalmente, uma razão fechada sobre si,
que crê poder encontrar dentro de si a resposta às suas questões mais
profundas, acaba por afirmar o sem-sentido da existência e por não reconhecer a
inteligibilidade do real (niilismo, irracionalismo, etc.).
«Senhor
que dá a vida»
«Acreditamos que ele [o
mundo] procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas
participantes do Seu Ser, da Sua sabedoria e da Sua bondade: “porque Vós
criastes todas as coisas e, pela vossa vontade, elas receberam a existência e
foram criadas” [xi]
[...].
Como consequência, «saída da
bondade divina, a criação partilha dessa bondade (“E Deus viu que isto era bom [...] muito bom”: [xiv].
Porque a criação é querida
por Deus como um dom orientado para o homem, como herança que lhe é destinada e
confiada» [xv].
Este carácter de bondade e
de dom livre permite descobrir na criação a actuação do Espírito - que «pairava sobre as águas» [xvi] - a
Pessoa Dom na Trindade, Amor subsistente entre o Pai e o Filho.
A Igreja confessa a sua fé
na obra criadora do Espírito Santo, dador de vida e fonte de todo o bem [xvii].
A afirmação cristã da
liberdade divina criadora permite superar as estreitezas de outras visões que,
pondo uma necessidade em Deus, acabam por defender o fatalismo ou determinismo.
Não há nada, nem “dentro”
nem “fora” de Deus, que o obrigue a criar.
Qual é, então, o fim que O
move?
Que pretendeu ao criar-nos?
O Concílio Vaticano I [xx]
afirma que «na sua bondade e pela sua força omnipotente, não para aumentar a
sua felicidade, nem para adquirir a sua perfeição, mas para a manifestar pelos
bens que concede às suas criaturas, Deus, no Seu libérrimo desígnio, criou do
nada, simultaneamente, e desde o princípio do tempo uma e outra criatura – a
espiritual e a corporal» [xxi].
«A glória de Deus está em
que se realize esta manifestação e esta comunicação da sua bondade, em ordem às
quais o mundo foi criado. Fazer de nós “filhos adoptivos por Jesus Cristo.
Longe de uma dialéctica de
princípios contrapostos – como ocorre no dualismo de traço maniqueu e, também,
no idealismo monista hegeliano – afirmar a glória de Deus como fim da criação
não implica uma negação do homem, mas um pressuposto indispensável para a sua
realização.
O optimismo cristão mergulha
as suas raízes na exaltação conjunta de Deus e do homem: «o homem é grande só
se Deus é grande» [xxv].
Trata-se de um optimismo e
de uma lógica que afirmam a absoluta prioridade do bem, mas que, nem por isso,
são cegos perante a presença do mal no mundo e na história.
1.3.
Conservação e providência. O mal
A criação não se reduz aos
começos.
«Depois da criação, Deus não
abandona a criatura a si mesma. Não só lhe dá o ser e o existir, mas a cada
instante a mantém no ser, lhe dá o agir e a conduz ao seu termo» [xxvi].
A literatura sapiencial
explicita a acção de Deus que mantém na existência as suas criaturas.
«E como poderia subsistir
algo se não o quisésseis ou conservar-se aquilo que Vós não tivésseis chamado?»
[xxviii].
São Paulo vai mais longe e
atribui esta acção conservadora a Cristo: «Ele
é antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por Ele» [xxix].
O Deus cristão não é um
relojoeiro ou um arquitecto que, após ter realizado a sua obra, se
desinteressasse dela.
Estas imagens são próprias
duma concepção deísta, segundo a qual Deus não se imiscui nos assuntos deste
mundo.
Mas isto supõe uma distorção
do autêntico Deus criador, pois separam drasticamente a criação da conservação
e do governo divino do mundo [xxx].
A noção de conservação “faz
de ponte” entre a acção criadora e o governo divino do mundo (providência).
Deus não só cria o mundo e o
mantém na existência, mas além disso «conduz as suas criaturas para a perfeição
última, à qual Ele as chamou» [xxxi].
A Sagrada Escritura
apresenta a soberania absoluta de Deus e testemunha constantemente o seu
cuidado paterno, tanto nas coisas mais pequenas como nos grandes acontecimentos
da história [xxxii].
Neste contexto, Jesus
revela-Se como a providência “encarnada” de Deus, que atende, como Bom Pastor,
as necessidades materiais e espirituais dos homens [xxxiii] e
ensina-nos a abandonarmo-nos ao seu cuidado [xxxiv].
Se Deus cria, mantém e
dirige tudo com bondade, donde provém o mal?
«A esta questão, tão
premente quanto inevitável, tão dolorosa como misteriosa, não é possível dar
uma resposta rápida e satisfatória. É o conjunto da fé cristã que constitui a
resposta a esta questão [...]. Não há nenhum pormenor da mensagem cristã que
não seja, em parte, resposta ao problema do mal» [xxxv].
A criação não ficou acabada
no princípio, mas Deus fê-la in statu
viae, ou seja, dirigida a uma perfeição última ainda por alcançar.
Para a realização dos Seus
desígnios, Deus serve-se do concurso das criaturas e concede aos homens uma
participação na sua providência, respeitando a sua liberdade mesmo que façam o
mal [xxxvi].
O realmente surpreendente é
que Deus «na sua omnipotente providência pode tirar um bem das consequências de
um mal» [xxxvii].
É misteriosa, mas é uma
enorme verdade que «todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a
Deus» [xxxviii], [xxxix].
A experiência do mal parece
manifestar uma tensão entre a omnipotência e a bondade divinas na sua actuação
na história. Aquela recebe resposta, certamente misteriosa, no evento da Cruz
de Cristo, que revela o “modo de ser” de Deus e é, portanto, fonte de sabedoria
para o homem (sapientia crucis).
(cont)
Santiago
Sanz
Notas:
[ix] Este ponto aparece com frequência nos
ensinamentos de Bento XVI, por exemplo, Homilia em Regensburg, 12-IX-2006;
Discurso em Verona, 19-X-2006; Encontro com o clero da diocese de Roma,
22-II-2007; etc
[x] Tanto o racionalismo cientificista
como o fideísmo acientífico necessitam de uma correcção da filosofia. Além
disso, há-de evitar-se também a falsa apologética de quem vê forçadas
concordâncias, procurando nos dados que a ciência traz uma verificação empírica
ou uma demonstração das verdades de fé, quando, na realidade, como dissemos, se
trata de dados que pertencem a métodos e disciplinas distintas.
[xxx] O deísmo implica um erro na noção
metafísica de criação, pois esta, enquanto doação de ser, leva consigo uma
dependência ontológica por parte da criatura, que não é separável da sua
continuação no tempo. Ambas constituem um mesmo acto, mesmo quando possamos
distingui-las conceptualmente: «a conservação das coisas por Deus não se dá por
alguma acção nova, mas pela continuação da acção que dá o ser, que é certamente
uma acção sem movimento e sem tempo» (São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 104,
a. 1, ad 3).
[xxxix] Em continuidade com a experiência de
tantos santos da história da Igreja, esta expressão paulina encontrava-se
frequentemente nos lábios de São Josemaria, que vivia e animava assim a viver
numa gozosa aceitação da vontade divina (cf. São Josemaria, Sulco, 127; Via
Sacra, IX, 4; Amigos de Deus, 119). Por outro lado, o último livro de João
Paulo II, Memória e Identidade, constitui uma profunda reflexão sobre a
actuação da providência divina na história dos homens, segundo aquela outra
asserção de São Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o
bem» (Rm 12, 21).
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