«ELE É O VERDADEIRO DEUS
E A VIDA ETERNA»
Divindade de Cristo e anúncio da
eternidade
3. Passar
do dogma para a vida
Como
continua actual e preciosa esta “joia” da cristologia bíblica que está
desabrochando, sob os nossos olhos, no tronco do dogma tradicional!
De
repente, o dogma entra no âmbito da vida de cada homem.
Todavia,
nem todos são ainda capazes nem estão preparados para notar a importância de se
tornarem «participantes da natureza divina» [i].
Quem
é que hoje em dia se exalta ainda, como acontecia no tempo de S. Gregório
Nazianzeno, ao pensar que se tornará «por assim dizer, Deus?» [ii]
Porém,
logo que reflectem nisso, todos sentem o dramatismo do tempo que passa e a
precaridade da vida humana.
E
observam como são verdadeiras para todos, indistintamente, as palavras com que
um poeta descrevia a situação e o estado de espírito dos soldados
entrincheirados, na frente, na primeira guerra mundial:
Estamos aqui
Como as folhas
Nas árvores no Outono.
(G.
Ungaretti)
Portanto, se hoje em dia nem
todos estão sensibilizados para a perspectiva de se tornarem «participantes da
natureza divina», pelo contrário, estão sensibilizados para a perspectiva de se
tornarem (assim parafraseava S. Máximo, Confessor, a expressão de 2Pd1,4)
«participantes da eternidade divina» [iii]
A um amigo que lhe censurava
o seu ardente anseio pela eternidade, como se isso fosse uma forma de orgulho e
de presunção, M.de Unamuno respondeu certa vez:
«Não digo que nós merecemos
um além, nem que a lógica no-lo demonstra; digo só que temos necessidade dele,
quer o mereçamos ou não, e isso basta. Digo que aquilo que passa não me
satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo me é indiferente.
Tenho sede, muita sede de eternidade! Sem ela não tenho alegria de viver, nada
mais tem interesse. É muito fácil afirmar: ‘O que é preciso é viver, temos que
nos contentar com a vida’. E aqueles que não estão contentes com ela?» [iv]
Não é quem deseja a
eternidade que denota desprezar o mundo e a vida terrena, mas sim quem não a
deseja:
«Gosto tanto de viver –
escreveu o mesmo autor – que perder a vida me parece o pior dos males. Aqueles
que gozam a vida, dia a dia, sem se importarem com o facto de terem que a
perder um dia, não gostam verdadeiramente dela» [v]
«Para que serve – dizia
também Stº Agostinho – viver bem se não é possível viver sempre?»
Mas como passar, então, do
dogma para a vida, do amor “por si” ao “amor por mim” de Cristo?
Como fazer brotar o grito e
a promessa: «Eternidade, eternidade!» daquilo que já meditámos sobre Cristo?
Trata-se de aplicar ao
conceito de eternidade aquilo que os Padres afirmavam de divindade de Cristo,
com a doutrina da “permuta”.
Eles gostavam de repetir
frequentemente: «Deus fez-Se homem para que o homem se tornasse Deus» [vi].
Nós podemos dizer: a
eternidade entrou no tempo para que o tempo pudesse obter a eternidade, não só
para no-la mostrar em Si; tal como veio para nos dar a vida divina e não só
para no-la mostrar em Si.
O salto da eternidade para o
tempo torna possível o salto do tempo para a eternidade.
A esperança da nossa
eternidade, é, por isso, parte integrante do dogma cristológico, e brota dele
como sua finalidade e seu fruto.
A esperança da eternidade é
o triunfo da fé na encarnação.
O Iluminismo tinha posto a
célebre questão de como seria possível alcançar a eternidade, quando se está no
tempo, e como seria possível dar um ponto de partida histórico para uma
consciência eterna [vii].
Noutras palavras: como seria
possível justificar a posição da fé cristã que promete uma vida eterna e ameaça
com uma pena também eterna, por actos praticados no tempo.
A única resposta válida para
este problema, chamado “nó górdio da fé cristã”, é a que se fundamenta na fé na
encarnação de Deus.
Em Cristo, o eterno apareceu
no tempo; Ele mereceu para o homem uma salvação eterna.
Perante Ele, portanto, mas somente perante Ele – é possível colocar
um acto que, embora praticado no tempo, determina a eternidade [viii].
Tal acto consiste, na
prática, em crer na divindade de Cristo:
«Estas coisas que vos escrevo
dizia o evangelista João – para que saibais que tendes a vida eterna, vós que credes
no nome do Filho de Deus» [ix]; e
ainda:
A fé na divindade de Cristo
abre a porta da vida eterna, permite dar o salto infinito.
Perante Jesus Cristo,
precisamente porque Ele é homem e Deus ao mesmo tempo, é possível tomar uma
decisão que tem repercussões eternas.
4. Eternidade, eternidade!
Eis-nos chegados, agora ao
momento em que é preciso colher finalmente o fruto de todo o caminho
percorrido: a eternidade.
Vamos deter aqui a nossa
reflexão. Iremos acercar-nos desta palavra, até a fazermos reviver. Iremos
aquecê-la, por assim dizer, com o nosso hálito, a fim de que ela seja
reanimada.
Porque eternidade é uma palavra
morta; deixámo-la morrer, como se deixa morrer uma criança abandonada e que já
não é amamentada.
Do mesmo modo que na
caravela em busca de novos mundos, quando já não havia esperança alguma de
chegar a uma meta, ressoou, de improviso, o brado do vigia: “Terra, terra!”, e
assim é preciso que na Igreja ressoe também o brado: “Eternidade, eternidade!”.
Que terá sucedido a esta
palavra que era antigamente o motor secreto, ou a vela que fazia mover a Igreja
no tempo, que era o pólo de atracção do pensamento dos crentes, a “massa” que
fazia erguer os corações, como a lua cheia faz levantar as águas na maré alta?
A lâmpada foi
silenciosamente colocada sob o alqueire, e a bandeira dobrada, como num
exército em retirada.
«O além tornou-se um
gracejo, uma exigência tão incerta que não só já ninguém a respeita, como até
já ninguém a põe em perspectiva, ao ponto que até nos diverte pensar que houve
uma época em que esta ideia transformava toda a existência» [xi].
Este
fenómeno tem um nome bem preciso. Definido em relação ao tempo, chama-se secularismo ou temporalismo; definido em
relação ao espaço, chama-se imanentismo.
Este
é, hoje, o momento em que a fé, depois de ter recebido uma cultura peculiar,
deve mostrar também saber contestá-la desde o seu íntimo, levando-a a superar
as suas barreiras arbitrárias e as suas incoerências.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
[i]
2Pd 1,4
[ii]
Cfr. S Gregório Nazianzeno, Oratio, 1,5
(Pg 35,398); 7,23 (PG 15,485 B), S. Basilio, De Spir, S., 9,23 (PG 90, 109 C).
[iii]
S. Máximo, Confessor, Capita, I, 42
(PG 90, 1193).
[iv]
M. Unamuno, «Cartas a J. Bundain».
[v]
Ibidem, p. 150
[vi]
Cfr. Stº Ireneu, Adv. Aher., III,
19,1, V, praef.; S.Máximo, Confessor. , Cap.
Theol., 2,25 (PG90), 1136 B)
[vii] G. E. Lessing, Uber
den Beweis des geistes und der kraft, ed. Lachmann, X, p. 36
[viii]
Cfr. C. Fabro, Introd. Às obras de
Kierkegard, op. Cit. P. XLVI.
[ix]
1Jo 5,13
[x]
Jo 11,26
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