22/01/2018

Leitura espiritual

CAPÍTULO IV

«ELE É O VERDADEIRO DEUS
                          E A VIDA ETERNA»            

Divindade de Cristo e anúncio da eternidade

3. Passar do dogma para a vida

Como continua actual e preciosa esta “joia” da cristologia bíblica que está desabrochando, sob os nossos olhos, no tronco do dogma tradicional!
De repente, o dogma entra no âmbito da vida de cada homem.
Todavia, nem todos são ainda capazes nem estão preparados para notar a importância de se tornarem «participantes da natureza divina» [i].
Quem é que hoje em dia se exalta ainda, como acontecia no tempo de S. Gregório Nazianzeno, ao pensar que se tornará «por assim dizer, Deus?» [ii]

Porém, logo que reflectem nisso, todos sentem o dramatismo do tempo que passa e a precaridade da vida humana.
E observam como são verdadeiras para todos, indistintamente, as palavras com que um poeta descrevia a situação e o estado de espírito dos soldados entrincheirados, na frente, na primeira guerra mundial:

Estamos aqui
Como as folhas
Nas árvores no Outono.
                                     (G. Ungaretti)

Portanto, se hoje em dia nem todos estão sensibilizados para a perspectiva de se tornarem «participantes da natureza divina», pelo contrário, estão sensibilizados para a perspectiva de se tornarem (assim parafraseava S. Máximo, Confessor, a expressão de 2Pd1,4) «participantes da eternidade divina» [iii]

A um amigo que lhe censurava o seu ardente anseio pela eternidade, como se isso fosse uma forma de orgulho e de presunção, M.de Unamuno respondeu certa vez:
«Não digo que nós merecemos um além, nem que a lógica no-lo demonstra; digo só que temos necessidade dele, quer o mereçamos ou não, e isso basta. Digo que aquilo que passa não me satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo me é indiferente. Tenho sede, muita sede de eternidade! Sem ela não tenho alegria de viver, nada mais tem interesse. É muito fácil afirmar: ‘O que é preciso é viver, temos que nos contentar com a vida’. E aqueles que não estão contentes com ela?» [iv]
Não é quem deseja a eternidade que denota desprezar o mundo e a vida terrena, mas sim quem não a deseja:
«Gosto tanto de viver – escreveu o mesmo autor – que perder a vida me parece o pior dos males. Aqueles que gozam a vida, dia a dia, sem se importarem com o facto de terem que a perder um dia, não gostam verdadeiramente dela» [v]

«Para que serve – dizia também Stº Agostinho – viver bem se não é possível viver sempre?»
Mas como passar, então, do dogma para a vida, do amor “por si” ao “amor por mim” de Cristo?
Como fazer brotar o grito e a promessa: «Eternidade, eternidade!» daquilo que já meditámos sobre Cristo?
Trata-se de aplicar ao conceito de eternidade aquilo que os Padres afirmavam de divindade de Cristo, com a doutrina da “permuta”.
Eles gostavam de repetir frequentemente: «Deus fez-Se homem para que o homem se tornasse Deus» [vi].

Nós podemos dizer: a eternidade entrou no tempo para que o tempo pudesse obter a eternidade, não só para no-la mostrar em Si; tal como veio para nos dar a vida divina e não só para no-la mostrar em Si.
O salto da eternidade para o tempo torna possível o salto do tempo para a eternidade.
A esperança da nossa eternidade, é, por isso, parte integrante do dogma cristológico, e brota dele como sua finalidade e seu fruto.
A esperança da eternidade é o triunfo da fé na encarnação.

O Iluminismo tinha posto a célebre questão de como seria possível alcançar a eternidade, quando se está no tempo, e como seria possível dar um ponto de partida histórico para uma consciência eterna [vii].
Noutras palavras: como seria possível justificar a posição da fé cristã que promete uma vida eterna e ameaça com uma pena também eterna, por actos praticados no tempo.
A única resposta válida para este problema, chamado “nó górdio da fé cristã”, é a que se fundamenta na fé na encarnação de Deus.
Em Cristo, o eterno apareceu no tempo; Ele mereceu para o homem uma salvação eterna.
Perante Ele, portanto,  mas somente perante Ele – é possível colocar um acto que, embora praticado no tempo, determina a eternidade [viii].

Tal acto consiste, na prática, em crer na divindade de Cristo:
«Estas coisas que vos escrevo dizia o evangelista João – para que saibais que tendes a vida eterna, vós que credes no nome do Filho de Deus» [ix]; e ainda:
«Todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá eternamente» [x].
A fé na divindade de Cristo abre a porta da vida eterna, permite dar o salto infinito.
Perante Jesus Cristo, precisamente porque Ele é homem e Deus ao mesmo tempo, é possível tomar uma decisão que tem repercussões eternas.

4. Eternidade, eternidade!

Eis-nos chegados, agora ao momento em que é preciso colher finalmente o fruto de todo o caminho percorrido: a eternidade.
Vamos deter aqui a nossa reflexão. Iremos acercar-nos desta palavra, até a fazermos reviver. Iremos aquecê-la, por assim dizer, com o nosso hálito, a fim de que ela seja reanimada.
Porque eternidade é uma palavra morta; deixámo-la morrer, como se deixa morrer uma criança abandonada e que já não é amamentada.
Do mesmo modo que na caravela em busca de novos mundos, quando já não havia esperança alguma de chegar a uma meta, ressoou, de improviso, o brado do vigia: “Terra, terra!”, e assim é preciso que na Igreja ressoe também o brado: “Eternidade, eternidade!”.

Que terá sucedido a esta palavra que era antigamente o motor secreto, ou a vela que fazia mover a Igreja no tempo, que era o pólo de atracção do pensamento dos crentes, a “massa” que fazia erguer os corações, como a lua cheia faz levantar as águas na maré alta?
A lâmpada foi silenciosamente colocada sob o alqueire, e a bandeira dobrada, como num exército em retirada.
«O além tornou-se um gracejo, uma exigência tão incerta que não só já ninguém a respeita, como até já ninguém a põe em perspectiva, ao ponto que até nos diverte pensar que houve uma época em que esta ideia transformava toda a existência» [xi].

Este fenómeno tem um nome bem preciso. Definido em relação ao tempo, chama-se secularismo ou temporalismo; definido em relação ao espaço, chama-se imanentismo.
Este é, hoje, o momento em que a fé, depois de ter recebido uma cultura peculiar, deve mostrar também saber contestá-la desde o seu íntimo, levando-a a superar as suas barreiras arbitrárias e as suas incoerências.

(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] 2Pd 1,4
[ii] Cfr. S Gregório Nazianzeno, Oratio, 1,5 (Pg 35,398); 7,23 (PG 15,485 B), S. Basilio, De Spir, S., 9,23 (PG 90, 109 C).
[iii] S. Máximo, Confessor, Capita, I, 42 (PG 90, 1193).
[iv] M. Unamuno, «Cartas a J. Bundain».
[v] Ibidem, p. 150
[vi] Cfr. Stº Ireneu, Adv. Aher., III, 19,1, V, praef.; S.Máximo, Confessor. , Cap. Theol., 2,25 (PG90), 1136 B)
[vii] G. E. Lessing, Uber den Beweis des geistes und der kraft, ed. Lachmann, X, p. 36
[viii] Cfr. C. Fabro, Introd. Às obras de Kierkegard, op. Cit. P. XLVI.
[ix] 1Jo 5,13
[x] Jo 11,26
[xi] S. Kierkegaard, «Postilla conclusiva», 4, in Obras, op. cit., p.458

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