19/01/2018

Leitura espiritual

CAPÍTULO IV

«ELE É O VERDADEIRO DEUS
E A VIDA ETERNA»

Divindade de Cristo e anúncio da eternidade


Escrevendo a um Cardeal do seu tempo, Santa Catarina de Sena dizia que sobre o corpo da santa Igreja deveria bradar-se um “urro”, isto é, um rugido tão forte, que acordasse os filhos mortos que jaziam dentro dela [i].
(A Santa partilhava a crença popular daquela época que o leão tinha o poder de ressuscitar, com o seu potente rugido, os leões nado-mortos).
Não sei qual era a palavra que deveria ser bradada, naquele tempo, sobre o corpo da santa Igreja. Sei, porém, qual é a palavra que deve ser bradada hoje, para acordar os filhos adormecidos.
É a palavra “eternidade”.
É este o grito do despertar cristão, apalavra que, como a relha do arado, pode abrir um sulco para uma nova sementeira da Palavra. Anunciar o Evangelho a homens que tivessem, por hipótese, perdido a própria ideia de eternidade, serias o mesmo que semear sobre rochas.

Neste capítulo proponho-me demonstrar como dogma de Cristo «verdadeiro Deus e verdadeiro homem» nos pode ajudar nesta tarefa, restituindo-nos a coragem e franqueza de fé necessárias para voltarmos a bradar aos homens de hoje: “Eternidade! Eternidade!”.
Veremos, ainda, como somente a fé na divindade de Cristo faz, da palavra “eternidade”, uma possibilidade concreta oferecida aos homens, apropria finalidade da vida, e não, como seria diversamente, uma simples categoria de pensamento ou uma vaga “nostalgia do Totalmente Outro” [ii].

Ao mesmo tempo, isso permitir-nos-á colher uma enorme carga existencial e a actualidade do dogma cristológico. A teoria kerigmática do nosso século transferiu todo o peso da cristologia do “por si”, isto é, daquilo que Cristo é em Si mesmo, par o “para mim”, isto é, aquilo que Ele significa para mim e para a minha salvação. Porém, deixou muitas vezes este “para mim” na incerteza, reduzindo-o a um princípio abstracto e formal, desprovido de um conteúdo real. Se Cristo nasceu para mim, se por mim Se tornou o homem novo, se por mim «Se santificou a Si mesmo» [iii], se morreu pelos meus pecados, quer dizer que estes factos me interpelam directamente, que têm um significado que eu devo acolher e imitar na minha vida.

Deste modo, recuperamos um dos aspectos mais fecundos do pensamento existencial, o qual, tendo sido muito acutilante no seu iniciador, logo foi sendo esquecido pelos Seus seguidores a convicção que o elemento de “seriedade” do cristianismo reside no viver, no fazer, bem mais que no explicar ou relacionar com a verdade cristã esteou aquele sistema filosófico. Por outras palavras, a convicção que o cristianismo necessita de Santos e não de professores, ou, se necessita de professores, é só no sentido forte de pessoas que “professam” o cristianismo, que aceitam humildemente as suas exigências, embora sabendo que jamais poderão cumpri-las perfeitamente. O que verdadeiramente conta – como recorda Kierkegaard com o título de uma obra sua – é o exercício do cristianismo, isto é, vivê-lo, praticá-lo, estar inserido nele. Nada mais conta.
«Sabeis estas coisas» - dizia Jesus - «bem-aventurados sereis se as praticardes» [iv]
A bem-aventurança não é prometida a quem sabe, mas sim a quem pratica.

Desejando, uma vez mais, debruçar-me sobre a síntese entre o “por si” e o “para mim” da cristologia, dividirei esta meditação em duas partes. Na primeira, iremos reflectir sobre o dogma das duas naturezas de Cristo e como esse dogma pode ser levado a efeito e actualizado pelo homem de hoje; na segunda parte, veremos o peso do anúncio que se liberta da renovada apresentação deste dogma e, em particular, como ele dá apoio ao brado:
“Eternidade, eternidade!”

1.   Dos dois “tempos” às duas “naturezas” de Cristo.

Como é que se formou o dogma das duas naturezas de Cristo «verdadeiro homem e verdadeiro Deus?»
De início, logo depois da Páscoa, o esquema com que se procurava exprimir o mistério de Jesus não era o das duas naturezas, ou das Suas substâncias, divindade e humanidade, mas sim, o esquema dos dois tempos, ou fases, da Sua história: a fase anterior à ressurreição, vivida nas condições do homem comum – o crescimento, a passibilidade, a morte – e a fase inaugurada pela Sua ressurreição da morte, assinalada por caracteres completamente diferentes.
À primeira fase chamou-se: “vida segundo a carne”, e à segunda: “vida segundo o Espírito”.
É assim que se exprime o texto da Carta aos Romanos [v].
Cristo que, por força do Seu nascimento humano da estirpe de David, tinha a Sua existência segundo a carne, a partir da Sua ressurreição dos mortos vive segundo o Espírito e manifesta-Se em todo o Seu poder de Filho de Deus.
Era um esquema histórico; a sucessão: carne-espírito, de facto corresponde, de perto, à de tempo-eternidade.
Mais que a “natureza” de Cristo, o que interessa, nesta perspectiva, é a “condição” de Cristo, o Seu “modo de existir”: primeiramente no tempo e depois fora do tempo.
Mais que a essência, diríamos nós hoje, interessa-nos a existência.

A partir desta compreensão inicial do mistério de Cristo, começa um processo de aprofundamento, em que a fé da Igreja se esforça por escalar cada vez mais até ao cume, ou, o que é o mesmo, escavar sempre cada vez mais em profundidade, à descoberta da verdadeira identidade de Cristo.

Um primeiro, e enorme, passo nesta direcção consiste na inversão do esquema. Assim, não colocaremos em primeiro lugar a carne e depois o Espírito, nem primeiro o tempo e depois a eternidade, mas, pelo contrário, colocaremos antes a eternidade só depois o tempo.
A inversão do sistema começa com o próprio S. Paulo.
Na sua carta aos Filipenses [vi], ele fala de Jesus como d’Aquele que, possuindo em primeiro lugar a “natureza divina”, assume em certo momento da história a “condição de servo”, isto é, a condição humana.
Tudo se torna ainda mais claro com S. João, quando fala do Verbo, que “no princípio estava com Deus” e que depois “Se fez carne” [vii].

Alguns textos dos Padre Apostólicos, permitem-nos ver em acto esta passagem de uma perspectiva para a outra.
Santo Inácio de Antioquia, uma vez, comentando o texto [viii], diz que Jesus é “carnal e espiritual, de Maria e de Deus”, que “nasceu da estirpe de David e do Espírito Santo [ix]; mas, de outra vez, segue já o novo esquema e fala de Jesus que, sendo primeiramente “intemporal, invisível e impassível”, Se torna, depois, “visível e passível” [x].
No primeiro caso, o momento da passagem ainda é a ressurreição de Cristo; no segundo, o momento da passagem é já a Encarnação.
A ordem, no primeiro caso, é: carne-espírito; no segundo, é: Espírito-carne.
Esta nova ordem é a que se observa já claramente num outro escrito apostólico, onde se lê que Cristo “sendo primeiramente Espírito, Se fez carne” [xi].

Um segundo passo nesta evolução diz respeito não só já à ordem, mas ao significado dos termos Espírito-carne, ou – o que corresponde a esses termos na linguagem joanina -Verbo-carne.
Eles não indicam já somente duas condições diferentes, ou modos de existir de Cristo, mas duas realidades, duas substâncias ou naturezas.
Basta o seguinte texto de Tertuliano para nos fazer medir todo o caminho percorrido pela fé em pouco mais de século e meio. Comentando o texto de romanos 1,3-4, escreve:
“O Apóstolo indica aqui as duas substâncias de Cristo.Com as palavras “nascido da estirpe de David segundo a carne”, ele designa o Homem e o Filho do Homem; com as palavras “manifestado Filho de Deus, segundo o Espírito”, indica Deus, o Verbo Filho de Deus. Vemos nele, então, duas substâncias” [xii].
Um outro autor, de época pouco posterior, escreve também:
“Confessamos que Cristo é verdadeiramente Deus segundo o Espírito e verdadeiramente homem segundo a carne” [xiii].
A doutrina do Cristo “segundo a carne e segundo o Espírito”, ou dos dois tempos, ficou determinada como doutrina do Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, isto é, das duas naturezas.

O Concílio de Calcedónia não faz mais que sancionar esta nova compreensão da fé, falando de Cristo, “perfeito em divindade e perfeito em humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem… gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a divindade e por Maria nos últimos dias, segundo a humanidade; um só e idêntico Cristo Filho de Deus, que reconhecemos nas duas naturezas, sem confusão e sem divisão” [xiv].

O motivo desta evolução é o mesmo que já tratamos mais atrás quando falámos da humanidade de Cristo
Estamos perante um primeiro e exemplar caso de inculturação da fé.
Pelo mesmo motivo que se passa de Cristo “homem novo” (que diz respeito ao tempo e à história) para o Cristo comum “verdadeiro” ou “completo” (que diz respeito à essência), passa-se agora das duas fases ou modos de existir de Cristo para as Suas duas naturezas, Isto deve-se ao facto de que o Evangelho teve de entranhar-se numa cultura para a qual aquilo que verdadeiramente conta é o ser, ou a essência imutável das coisas, muito mais que o seu devir e a sua história.
Pela mesma razão, a dimensão espiritual e eterna de Cristo antepõe-se agora à dimensão temporal e histórica.
De facto, é impossível que a eternidade possa brotar do tempo, como uma criação sua, mas, pelo contrário, é o tempo que brota da eternidade que “segue” a eternidade, se é que se pode falar de uma precedência ou sequência em relação áquilo que não tem um antes nem um depois.
Foi a certeza de preexistência do Verbo que induziu a inverter a ordem entre Cristo segundo a carne e Cristo segundo o Espírito.

Afastámo-nos, então, da Bíblia para nos aproximarmos dos gregos? Helenizámos o cristianismo e o próprio Jesus Cristo? Não, porque vimos que aquilo que se afirma já estava presente na Palavra de Deus, em São Paulo e em São João. A exigência pastoral do anúncio contribuiu só para manifestar um aspecto fundamental do dado revelado que, de outra forma, teria ficado para sempre na sombra.

Mas, com isto, estabeleceu-se logo um princípio que, de modo diferente, nos interpela também a nós. O caminho da fé não se deteve com a definição de Calcedónia. Do mesmo modo que os padres souberam descortinar com segurança o aspecto da mensagem que melhor poderia servir para estabelecer uma ponte com a cultura do seu tempo, também nós devemos saber descobrir nele o aspecto que está mais apto para falar aos homens de hoje, submetendo, se necessário for, esta mesma cultura hodierna ao juízo da Palavra de Deus e ajudando-a a superar os seus limites e as suas lacunas, como fizeram os Padres com a cultura grega do seu tempo.


(cont)

rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.





[i] Santa Catarina de Sena, Carta 177 ao Card. Pietro Corsini
[ii] Cfr. M. Horkheimer, A Nostalgia do Totalmente Outro, Brescia, 1973
[iii] Cfr. Jo 17, 19
[iv] Jo 13, 17
[v] Cfr. Rm 1,3-4
[vi] 2,6-9
[vii] Cfr. Jo 1,1-4
[viii] Rom 1,3-4
[ix] Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Efésios,7,2;20,2
[x] Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo, 3,2
[xi] Segunda carta de Clemente, 9,5
[xii] Tertuliano, Adversus Praxean, 27,11
[xiii] Adanatius, De Recta Fide, 5,11
[xiv] Dezinger, Schonmtzer, 301-302

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