«ELE É O VERDADEIRO DEUS
E A VIDA ETERNA»
Divindade de Cristo e anúncio da
eternidade
Escrevendo a um Cardeal do
seu tempo, Santa Catarina de Sena dizia que sobre o corpo da santa Igreja
deveria bradar-se um “urro”, isto é, um rugido tão forte, que acordasse os
filhos mortos que jaziam dentro dela [i].
(A Santa partilhava a crença
popular daquela época que o leão tinha o poder de ressuscitar, com o seu
potente rugido, os leões nado-mortos).
Não sei qual era a palavra
que deveria ser bradada, naquele tempo, sobre o corpo da santa Igreja. Sei,
porém, qual é a palavra que deve ser bradada hoje, para acordar os filhos
adormecidos.
É a palavra “eternidade”.
É este o grito do despertar
cristão, apalavra que, como a relha do arado, pode abrir um sulco para uma nova
sementeira da Palavra. Anunciar o Evangelho a homens que tivessem, por
hipótese, perdido a própria ideia de eternidade, serias o mesmo que semear
sobre rochas.
Neste capítulo proponho-me
demonstrar como dogma de Cristo «verdadeiro Deus e verdadeiro homem» nos pode
ajudar nesta tarefa, restituindo-nos a coragem e franqueza de fé necessárias
para voltarmos a bradar aos homens de hoje: “Eternidade! Eternidade!”.
Veremos, ainda, como somente
a fé na divindade de Cristo faz, da palavra “eternidade”, uma possibilidade
concreta oferecida aos homens, apropria finalidade da vida, e não, como seria
diversamente, uma simples categoria de pensamento ou uma vaga “nostalgia do Totalmente
Outro” [ii].
Ao mesmo tempo, isso
permitir-nos-á colher uma enorme carga existencial e a actualidade do dogma
cristológico. A teoria kerigmática do nosso século transferiu todo o peso da
cristologia do “por si”, isto é, daquilo que Cristo é em Si mesmo, par o “para
mim”, isto é, aquilo que Ele significa para mim e para a minha salvação. Porém,
deixou muitas vezes este “para mim” na incerteza, reduzindo-o a um princípio
abstracto e formal, desprovido de um conteúdo real. Se Cristo nasceu para mim,
se por mim Se tornou o homem novo, se por mim «Se santificou a Si mesmo» [iii], se
morreu pelos meus pecados, quer dizer que estes factos me interpelam
directamente, que têm um significado que eu devo acolher e imitar na minha
vida.
Deste modo, recuperamos um
dos aspectos mais fecundos do pensamento existencial, o qual, tendo sido muito
acutilante no seu iniciador, logo foi sendo esquecido pelos Seus seguidores a
convicção que o elemento de “seriedade” do cristianismo reside no viver, no
fazer, bem mais que no explicar ou relacionar com a verdade cristã esteou
aquele sistema filosófico. Por outras palavras, a convicção que o cristianismo
necessita de Santos e não de professores, ou, se necessita de professores, é só
no sentido forte de pessoas que “professam” o cristianismo, que aceitam
humildemente as suas exigências, embora sabendo que jamais poderão cumpri-las
perfeitamente. O que verdadeiramente conta – como recorda Kierkegaard com o
título de uma obra sua – é o exercício do cristianismo, isto é, vivê-lo, praticá-lo,
estar inserido nele. Nada mais conta.
A bem-aventurança não é
prometida a quem sabe, mas sim a quem pratica.
Desejando, uma vez mais,
debruçar-me sobre a síntese entre o “por si” e o “para mim” da cristologia,
dividirei esta meditação em duas partes. Na primeira, iremos reflectir sobre o
dogma das duas naturezas de Cristo e como esse dogma pode ser levado a efeito e
actualizado pelo homem de hoje; na segunda parte, veremos o peso do anúncio que
se liberta da renovada apresentação deste dogma e, em particular, como ele dá
apoio ao brado:
“Eternidade, eternidade!”
1.
Dos
dois “tempos” às duas “naturezas” de Cristo.
Como é que se formou o dogma
das duas naturezas de Cristo «verdadeiro homem e verdadeiro Deus?»
De início, logo depois da
Páscoa, o esquema com que se procurava exprimir o mistério de Jesus não era o
das duas naturezas, ou das Suas
substâncias, divindade e humanidade, mas sim, o esquema dos dois tempos, ou
fases, da Sua história: a fase anterior à ressurreição, vivida nas condições do
homem comum – o crescimento, a passibilidade, a morte – e a fase inaugurada
pela Sua ressurreição da morte, assinalada por caracteres completamente
diferentes.
À primeira fase chamou-se:
“vida segundo a carne”, e à segunda: “vida segundo o Espírito”.
Cristo que, por força do Seu
nascimento humano da estirpe de David, tinha a Sua existência segundo a carne,
a partir da Sua ressurreição dos mortos vive segundo o Espírito e manifesta-Se
em todo o Seu poder de Filho de Deus.
Era um esquema histórico; a
sucessão: carne-espírito, de facto corresponde, de perto, à de
tempo-eternidade.
Mais que a “natureza” de
Cristo, o que interessa, nesta perspectiva, é a “condição” de Cristo, o Seu
“modo de existir”: primeiramente no tempo e depois fora do tempo.
Mais que a essência,
diríamos nós hoje, interessa-nos a existência.
A partir desta compreensão
inicial do mistério de Cristo, começa um processo de aprofundamento, em que a
fé da Igreja se esforça por escalar cada vez mais até ao cume, ou, o que é o
mesmo, escavar sempre cada vez mais em profundidade, à descoberta da verdadeira
identidade de Cristo.
Um primeiro, e enorme, passo
nesta direcção consiste na inversão do esquema. Assim, não colocaremos em
primeiro lugar a carne e depois o Espírito, nem primeiro o tempo e depois a
eternidade, mas, pelo contrário, colocaremos antes a eternidade só depois o
tempo.
A inversão do sistema começa
com o próprio S. Paulo.
Na sua carta aos Filipenses [vi],
ele fala de Jesus como d’Aquele que, possuindo em primeiro lugar a “natureza
divina”, assume em certo momento da história a “condição de servo”, isto é, a
condição humana.
Tudo se torna ainda mais
claro com S. João, quando fala do Verbo, que “no princípio estava com Deus” e
que depois “Se fez carne” [vii].
Alguns textos dos Padre
Apostólicos, permitem-nos ver em acto esta passagem de uma perspectiva para a
outra.
Santo Inácio de Antioquia,
uma vez, comentando o texto [viii],
diz que Jesus é “carnal e espiritual, de Maria e de Deus”, que “nasceu da
estirpe de David e do Espírito Santo [ix];
mas, de outra vez, segue já o novo esquema e fala de Jesus que, sendo
primeiramente “intemporal, invisível e impassível”, Se torna, depois, “visível
e passível” [x].
No primeiro caso, o momento
da passagem ainda é a ressurreição de Cristo; no segundo, o momento da passagem
é já a Encarnação.
A ordem, no primeiro caso,
é: carne-espírito; no segundo, é: Espírito-carne.
Esta nova ordem é a que se
observa já claramente num outro escrito apostólico, onde se lê que Cristo
“sendo primeiramente Espírito, Se fez carne” [xi].
Um segundo passo nesta
evolução diz respeito não só já à ordem,
mas ao significado dos termos
Espírito-carne, ou – o que corresponde a esses termos na linguagem joanina -Verbo-carne.
Eles não indicam já somente
duas condições diferentes, ou modos de existir de Cristo, mas duas realidades,
duas substâncias ou naturezas.
Basta o seguinte texto de
Tertuliano para nos fazer medir todo o caminho percorrido pela fé em pouco mais
de século e meio. Comentando o texto de romanos 1,3-4, escreve:
“O Apóstolo indica aqui as
duas substâncias de Cristo.Com as palavras “nascido
da estirpe de David segundo a carne”, ele designa o Homem e o Filho do
Homem; com as palavras “manifestado Filho
de Deus, segundo o Espírito”, indica Deus, o Verbo Filho de Deus. Vemos
nele, então, duas substâncias” [xii].
Um outro autor, de época
pouco posterior, escreve também:
“Confessamos que Cristo é
verdadeiramente Deus segundo o Espírito e verdadeiramente homem segundo a
carne” [xiii].
A doutrina do Cristo
“segundo a carne e segundo o Espírito”, ou dos dois tempos, ficou determinada
como doutrina do Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, isto é, das duas
naturezas.
O Concílio de Calcedónia não
faz mais que sancionar esta nova compreensão da fé, falando de Cristo,
“perfeito em divindade e perfeito em humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem… gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a divindade e por Maria nos últimos
dias, segundo a humanidade; um só e idêntico Cristo Filho de Deus, que
reconhecemos nas duas naturezas, sem confusão e sem divisão” [xiv].
O motivo desta evolução é o
mesmo que já tratamos mais atrás quando falámos da humanidade de Cristo
Estamos perante um primeiro
e exemplar caso de inculturação da fé.
Pelo mesmo motivo que se
passa de Cristo “homem novo” (que diz respeito ao tempo e à história) para o
Cristo comum “verdadeiro” ou “completo” (que diz respeito à essência), passa-se
agora das duas fases ou modos de existir de Cristo para as Suas duas naturezas,
Isto deve-se ao facto de que o Evangelho teve de entranhar-se numa cultura para
a qual aquilo que verdadeiramente conta é o ser, ou a essência imutável das
coisas, muito mais que o seu devir e a sua história.
Pela mesma razão, a dimensão
espiritual e eterna de Cristo antepõe-se agora à dimensão temporal e histórica.
De facto, é impossível que a
eternidade possa brotar do tempo, como uma criação sua, mas, pelo contrário, é
o tempo que brota da eternidade que “segue” a eternidade, se é que se pode
falar de uma precedência ou sequência em relação áquilo que não tem um antes
nem um depois.
Foi a certeza de
preexistência do Verbo que induziu a inverter a ordem entre Cristo segundo a
carne e Cristo segundo o Espírito.
Afastámo-nos, então, da
Bíblia para nos aproximarmos dos gregos? Helenizámos o cristianismo e o próprio
Jesus Cristo? Não, porque vimos que aquilo que se afirma já estava presente na
Palavra de Deus, em São Paulo e em São João. A exigência pastoral do anúncio
contribuiu só para manifestar um aspecto fundamental do dado revelado que, de
outra forma, teria ficado para sempre na sombra.
Mas, com isto,
estabeleceu-se logo um princípio que, de modo diferente, nos interpela também a
nós. O caminho da fé não se deteve com a definição de Calcedónia. Do mesmo modo
que os padres souberam descortinar com segurança o aspecto da mensagem que
melhor poderia servir para estabelecer uma ponte com a cultura do seu tempo,
também nós devemos saber descobrir nele o aspecto que está mais apto para falar
aos homens de hoje, submetendo, se necessário for, esta mesma cultura hodierna
ao juízo da Palavra de Deus e ajudando-a a superar os seus limites e as suas
lacunas, como fizeram os Padres com a cultura grega do seu tempo.
(cont)
rainiero cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia.
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