A DEVOÇÃO A MARIA SANTÍSSIMA
O
nosso relacionamento, a nossa intimidade com Maria é essencialmente filial. O
vínculo filiação-maternidade “determina sempre – como lembra a Encíclica
Redemptoris Mater – uma relação única e irrepetível entre duas pessoas: da mãe
com o filho e do filho com a mãe” [i]. E a medula desse vínculo, evidentemente, é o amor. Por
isso, só perguntando-nos pelas características que tornam autêntico esse amor é
que descobriremos os traços da verdadeira devoção a Maria Santíssima. Com isso,
perceberemos também melhor o que Deus quis que representasse para nós o imenso
dom que nos fez, dando-nos Maria como Mãe. Comecemos pelos aspectos dessa
devoção que se nos impõem de maneira mais imediata. Um cristão que vive de fé
sabe que Maria o ama e o auxilia com carinho de Mãe. Sabe-a voltada
maternalmente para ele. É natural que, dessa certeza, flua espontaneamente uma
sincera afeição filial. “Nada convida tanto ao amor – comenta São Tomás – como
a consciência de sentir-se amado” [ii].
A
devoção mariana manifesta-se, por isso, em mil expressões, delicadas e
fervorosas, de carinho de filho: no tom afetuoso da oração que dirigimos a Ela,
na alegria de visitá-la nos lugares onde se quis fazer especialmente presente,
nos muitos pormenores íntimos do coração, que o pudor vedaria externar.
Juntamente com esse afeto filial, e impregnando-o intimamente, brota também
espontaneamente um sentimento de profunda confiança. “Nunca se ouviu dizer –
reza uma bela oração atribuída a São Bernardo – que algum daqueles que tivesse
recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência, reclamado o vosso
socorro, fosse por Vós desamparado”. Esta certeira confiança dos fiéis
exprimiu-se num leque multicolorido de invocações marianas, que traduzem a
segura experiência do coração cristão: Mãe de misericórdia, Virgem poderosa,
Auxílio dos cristãos, Consoladora dos aflitos, Onipotência suplicante... Era
essa a confiança que fazia Dante escrever estes preciosos versos: Donna, se'
tanto grande e tanto vali, / che qual vuol grazia e a te non ricorre, / sua
disianza vuol volar sanz'ali; “Senhora, és tão grande e tanto podes, que para
quem quer graça e a ti não recorre, o seu desejo quer voar sem asas” [iii]. Amor e confiança. Trata-se de sentimentos com fortes
raízes no coração. Ora é bem sabido que os afectos do coração possuem muitas
vezes uma sutil ambivalência: são sentimentos que a custo se equilibram na
difícil passarela onde o amor beira sempre o egoísmo. Não é raro que os muito
sentimentais sejam também muito egoístas. Por isso, se a devoção a Maria não
estivesse fundamentada nos alicerces da fé – da doutrina – e da caridade,
poderia deslizar imperceptívelmente para os declives do egoísmo. Tal coisa
aconteceria no caso de uma devoção meramente sentimental – não animada por
desejos de entrega e de amor operante – que, embora cheia de efusões de
ternura, não incidisse fortemente na vida para modificá-la. Mais facilmente
ainda se daria essa deturpação se a devoção mariana se reduzisse a um simples
recurso para alcançar uma “proteção” ou uns “favores” meramente interesseiros.
Esses desvios, contudo, não se darão se o nosso amor filial a Maria entrar,
como deve, em sintonia com o seu amor maternal. Pensemos que o coração da nossa
Mãe, “cheia de graça”, é uma fornalha ardente de caridade, de amor a Deus e aos
homens. Nele se encontra, em medida quase infinita, a caridade derramada pelo
Espírito Santo [iv]. Isto significa que quem se aproximar dEla com um
coração reto e sincero se sentirá necessariamente impelido para o amor a Deus e
ao próximo. Este é o segredo divino da devoção a Maria. Foi de fato para nos
facilitar a entrega a esse duplo amor – o mandamento que resume todos os outros
– que Deus, em sua misericórdia, quis dar-nos Maria como Mãe. É por isso que a
devoção a Maria, bem vivida, é sempre como um sopro – fecundo, cálido e suave –
que acende o amor na alma, inflama a generosidade e move a abraçar sem reservas
a vontade de Deus. “Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus”, diz Mons.
Escrivá, fazendo-se eco da tradição cristã [v].
No
fundo de tudo o que a Virgem Santíssima sugere ao coração dos homens, sempre
pulsam as suas palavras em Caná: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. A
verdadeira devoção é, por isso, radicalmente “cristocêntrica” – conduz a Cristo
–, é “teocêntrica”. Nossa Senhora vive e faz viver em função de Jesus. Não pode
haver aí nem sombra de “idolatria”. Ao mesmo tempo, é claro que, se Maria nos
leva a Jesus, indefectívelmente nos aproxima também dos nossos irmãos, que são
irmãos de seu Filho e filhos dEla. Ela é a Mãe comum que nos faz sentir
fraternalmente vinculados em Cristo, membros da família de Deus [vi], e nos desperta na alma ânsias de doação e de serviço
aos outros. O Coração de Maria infunde calor e força ao amor dos irmãos. Como
vemos, se a Virgem Santíssima nos auxilia – e esta é a sua missão maternal –, é
única e exclusivamente para nos colocar mais plenamente em face das exigências
da nossa vocação cristã. É com este fim que Ela intercede por nós junto de Deus
e distribui as graças que o Senhor colocou em suas mãos. Mesmo os favores
maternos que Ela nos obtém em pequenas coisas – como em Caná – são incentivos
de carinho que nos ajudam a agradecer e a retribuir a Deus as suas bondades. Em
qualquer caso, Ela estende a sua mão para nos elevar – suave e fortemente – até
à meta da nossa vocação cristã, que é a santidade. Com razão se pode afirmar,
por isso, que o amor de Maria por seus filhos é simultaneamente doce e
exigente. “Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os
seus filhos em face de suas precisas responsabilidades. Aos que dEla se
aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar
até a Cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse
confronto em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa
conduta culmine com uma reconciliação do irmão menor – tu e eu – com o Filho
primogênito do Pai” [vii]. A Jesus “se vai” por Maria, e a Jesus “se volta” por
Ela, diz Caminho [viii].
Quando,
ao rezar a Ave-Maria, nós lhe pedimos “rogai por nós, pecadores”, fazemo-lo com
a consciência de que demasiadas vezes nos afastamos de Deus e, como o filho pródigo,
precisamos voltar para a casa do Pai. Maria torna suave, também, e esperançado
esse retorno. Não é verdade que, perto da Mãe, nos tornamos a sentir crianças?
Despojamo-nos da nossa triste armadura de adultos, forjada pelo orgulho, pela
vergonha ou pela decepção. E então o fardo das nossas misérias já não nos
esmaga. Com Maria, sentimo-nos crianças reanimadas pela ternura da Mãe, alegres
por descobrir que, para um filho pequeno, sempre é possível levantar-se, sempre
é possível recomeçar, sempre é hora de esperar. Ela é a porta perpetuamente
aberta na Casa do Pai. A Estrela da manhã, a Estrela do mar, a nossa Mãe,
guia-nos por toda a estrada da vida, passo a passo, na bonança e na tormenta,
nos avanços e nas quedas, até alcançarmos o repouso definitivo no coração do
Pai. Nunca percamos de vista que “foi Deus quem nos deu Maria: não temos o
direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com amor e
com alegria de filhos” [ix].
Há um antigo adágio teológico que diz: De Maria numquam satis, isto é, “nunca
diremos o bastante de Maria”. Nestas páginas, tentamos aproximar-nos do
esplendor do mistério de Maria. Pudemos captar apenas alguns dos seus fulgores.
Mas, para alcançarmos uma luz mais plena, devemos imitar a Santíssima Virgem,
procurando como Ela “guardar, meditando-as no coração” [x], todas as coisas que Deus nos quis dizer acerca de
Maria. Então compreenderemos cada vez melhor por que a Igreja aplica a Nossa
Senhora estas palavras do livro dos Provérbios: Aquele que me achar encontrará
a Vida e alcançará do Senhor a salvação [xi].
FRANCISCO
FAUS.
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