DIMENSÕES DA MATERNIDADE DE MARIA
Tem-se
afirmado com muita frequência que o Evangelho mariano por excelência é o de São
Lucas. Nele, com efeito, encontramos a maior parte das informações que
possuímos sobre a infância e a vida oculta de Cristo. No entanto, parece que
não falta razão aos que, sem diminuírem em nada o valor ímpar das passagens
marianas de São Lucas, pensam que é o Evangelho de São João que penetra com
maior profundidade no mistério de Maria. No Evangelho de João, não encontramos
nenhuma referência – a não ser muito indireta – às primeiras etapas da vida de
Cristo. Após elevar-se, no prólogo, até às alturas da contemplação do mistério
de Deus feito homem, João passa logo em seguida a narrar episódios da vida
pública do Senhor. Que nos diz acerca de Maria? Se prestarmos atenção,
perceberemos que as contadas referências que João faz à Virgem Santíssima não
são, primordialmente, narrações de passagens da “vida de Maria”. João focaliza
Maria apenas em alguns momentos de grande significação em que Ela está presente
na missão de Jesus. Descreve esses momentos – esses fatos – no estilo sóbrio e
objetivo que caracteriza todos os Evangelhos, mas a sua narração, sem dúvida
alguma, vai além dos fatos: capta e transmite-nos uma “mensagem”. Percebe-se,
nesses textos do seu Evangelho, que João compreendeu – e quer fazer entender
aos seus leitores – a importância atribuída por Deus à colaboração de Maria nas
etapas mais decisivas da missão salvadora de Cristo. São aqueles três anos em
que Jesus se volta – e é da maior relevância atentar para isto – de maneira
direta e total para os homens necessitados de salvação: anunciando-lhes que se
completou o tempo e o Reino de Deus está próximo [i], atraindo-os para a luz da Verdade e entregando-se na
Cruz para o seu resgate. Duas importantes cenas marianas emolduram, como
intensos pontos de luz, o começo e o final da vida pública de Cristo no
Evangelho de São João: o milagre das bodas de Caná, e as palavras dirigidas por
Jesus a Maria e ao discípulo amado do alto da Cruz. Antes de focalizarmos com
algum vagar essas cenas, podemos adiantar que é a partir do início da vida
pública que vemos desvendar-se com a maior clareza uma especial “dimensão” da
maternidade de Maria. Até o fim da vida oculta, essa maternidade concentrava-se
primordialmente – quase exclusivamente – no Filho, em Jesus. Mal começa a vida
pública, porém, contemplamos essa maternidade alargando-se, abrindo-se para os
homens que Jesus veio salvar. Vai-se revelando assim mais plenamente a
maternidade espiritual de Nossa Senhora em relação a todos e cada um dos homens
[ii].
As
duas passagens-chave de São João, antes citadas, projetam esclarecimentos
decisivos sobre esta dimensão da maternidade de Nossa Senhora.
MARIA EM CANÁ DA GALILEIA
Quando
Jesus, juntamente com sua Mãe, foi convidado às bodas de Caná, era ainda muito
recente a vocação dos Apóstolos. Já começavam a acompanhar o Mestre e, conforme
o costume da época, foram convidados também para o casamento [iii].
A
cena é conhecida. Num dado momento da ruidosa festa campesina, fica faltando
vinho. Ninguém o percebe. Ninguém, a não ser Maria. Com delicada intuição,
pressente que a alegria dos esposos pode ficar toldada por uma imprevidência.
Maria faz “seu” o problema, assume-o com sensibilidade materna, com um
interesse impregnado de coração. E não hesita em falar confiadamente a Jesus:
Não têm vinho. As suas palavras não são um simples comentário preocupado, mas
encerram um discreto pedido. Assim o entende Jesus, quando lhe responde: Que
importa isso a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora. A nossa
lógica bem-comportada subscreveria as palavras de Jesus. Elas têm a aparência
de uma compreensível e amável censura a um pedido saído do coração, mas pouco
razoável. Maria, no entanto, não as entende assim. E Ela é quem tem a sintonia
mais perfeita com a alma do Filho. Por isso, não duvida em solicitar imediatamente
aos que servem: Fazei tudo o que Ele vos disser. Mostra saber que será
escutada, sem que para isso possa ser obstáculo a dificuldade muito ponderável
mencionada por Jesus: “Não chegou a minha hora”. O atendimento de Jesus ao
pedido da Mãe não demora. Sob o olhar sorridente de Maria, Cristo manda aos
servidores que encham de água seis grandes recipientes de pedra. Ordena-lhes
depois que tirem a água já convertida em vinho e a apresentem ao mestre-sala,
que não sai do seu assombro por julgar que os donos da festa tinham deixado o
bom vinho guardado até agora. A cena termina com um comentário de João: Este
primeiro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória, e
os seus discípulos creram nele [iv].
Falávamos
há pouco da “mensagem” encerrada no fato que se acaba de sintetizar. Ela
aparece aí de maneira muito clara. É patente que Maria está ativamente presente
no começo do ministério público de Cristo, e está presente de uma forma
central, não marginal. Prestemos atenção: * É por intercessão dEla que Cristo
adianta misteriosamente a “hora” de iniciar os seus milagres, que serão
“sinais” [v] da sua divindade e testemunhos visíveis da veracidade da
sua doutrina. É por intercessão dEla que este primeiro sinal faz com que os
discípulos creiam em Jesus.
Finalmente,
manifesta-se nesse instante a disposição de Jesus de acolher todos os pedidos
que, mesmo em coisas pouco relevantes – “não têm vinho” –, cheguem a Ele por
intermédio da solicitude da Mãe, que se mostra amorosamente atenta às
necessidades espirituais e materiais dos homens, seus filhos. “Maria – comenta
a propósito desta cena João Paulo II – põe-se de permeio entre o seu Filho e os
homens na realidade das suas privações, das suas indigências, dos seus
sofrimentos. Põese de permeio, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha,
mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode – ou antes, “tem o
direito de” – fazer presentes ao seu Filho as necessidades dos homens (...) E
não é tudo: como Mãe, deseja também que se manifeste o poder messiânico do
Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras
humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e diversas
proporções, faz sentir o peso na sua vida”. Contemplando esta passagem do
Evangelho, a imaginação evoca algumas das cenas mais simples da piedade
popular, que por vezes escandalizam os “sábios”. Como num filme, focalizamos
mentalmente os rostos enxutos, requeimados pelo sol do sertão, de um grupo de
romeiros que acaba de descer do ônibus na esplanada do Santuário de Aparecida.
Os devotos, entrando na basílica, cravam o olhar esperançado no retrato da Mãe,
a pequenina imagem de barro escurecido. E, de cada coração, eleva-se uma
súplica: pelas necessidades cotidianas, pela saúde, pela volta ao bom caminho
do marido, de um filho... “Dai-nos a bênção, ó Mãe querida!” Eles sabem por
dentro, têm a certeza, de que – assim como em Caná – a Virgem Santa não deixará
de dizer ao Filho: “Não têm...”. E o Filho a atenderá, o Filho lhe
“obedecerá”... Não é evidente a sintonia existente entre a sincera devoção
popular e o Santo Evangelho? Em Caná, Cristo disse com atos, mais expressivos
do que as palavras, que, na realização da sua obra salvadora em favor dos
homens, deseja que ocupe um lugar de destaque a mediação maternal de sua Mãe.
Não era necessário que fosse assim, mas Deus quis que assim fosse. Maria tem
verdadeiramente uma função de mediação materna entre Cristo e os homens. Não é
certamente uma função autônoma, nem obscurece o fato incontestável de que Jesus
Cristo é o único Mediador propriamente dito entre Deus e os homens [vi]. Mas, mesmo assim, fica em pé a existência de uma
autêntica mediação de Maria, subordinada mas entranhadamente unida à mediação
de Cristo [vii].
A
mediação de Maria está nos desígnios de Deus. Não foi imaginada pela devoção
dos cristãos, em épocas mais ou menos tardias. Pelo contrário, foi sendo
descoberta pela fé, cada vez com maior profundidade, como um tesouro escondido,
o que é muito diferente. Bem entendia esta verdade São Bernardo, o “trovador da
Virgem”, quando pregava que Maria é “o aqueduto que, recebendo a plenitude da
própria fonte do coração do Pai, no-la faz acessível... Com o mais íntimo,
pois, da nossa alma, com todos os afetos do nosso coração e com todos os
sentimentos e desejos da nossa vontade, veneremos Maria, porque esta é a
vontade daquele Senhor que quis que tudo recebêssemos por Maria” [viii].
Antes
de concluirmos o comentário às bodas de Caná, detenhamo-nos por uns instantes a
olhar outras riquezas dessa cena. Tem sido observado, e com razão, que nessa
passagem de Caná se encontram as únicas palavras dirigidas por Maria aos homens
que o Evangelho registra: “Fazei tudo o que Ele vos disser” [ix].
Aí
está o sentido da mediação de Maria: levar as almas para Cristo, mover os
corações dos homens a aderir à vontade de Cristo e a “fazê-la” de facto: “tudo
o que Ele vos disser”. Ao mesmo tempo, aí se compreende qual é o eixo da
verdadeira devoção a Nossa Senhora, e o teste da sua autenticidade. A autêntica
devoção a Maria sempre conduz a Cristo. É função do amor maternal de Maria
“gerar” constantemente “irmãos” de seu Filho, que se disponham a viver até às
últimas consequências a verdade e a vida que Jesus lhes oferece. Por isso, a
devoção a Maria Santíssima não só não afasta ou desvia as almas da união com
Cristo pela fé e pelo amor – e nisso reside a essência da vida cristã –, mas a
facilita sobremaneira, tornando-a mais acessível e mais suave, e também mais
eficaz. “A Jesus, sempre se vai e se «volta» por Maria” [x]. “A nossa alma – diz São Luís Maria Grignion de Montfort
– só encontrará Deus em Maria... Só Deus habita nela e, longe de reter uma alma
para si, Ela – muito ao contrário – a impele para Deus e a une a Ele” [xi].
(cont)
FRANCISCO
FAUS. [xii]
[viii]
São
Bernardo, Sermo in Nativitate B. V. Mariae; in Migne, Patrologia Latina, 183,
437, ns. 4 e 7
[xi] Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, Ed. Secrétariat de Marie
Médiatrice, 4ª. ed., Lovaina, 1952, cap. I, art. 1
[xii]
MARIA,
A MÃE DE JESUS
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Culturais
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