29/12/2017

Leitura espiritual

MARIA, A MÃE DE JESUS 6


DIMENSÕES DA MATERNIDADE DE MARIA

Tem-se afirmado com muita frequência que o Evangelho mariano por excelência é o de São Lucas. Nele, com efeito, encontramos a maior parte das informações que possuímos sobre a infância e a vida oculta de Cristo. No entanto, parece que não falta razão aos que, sem diminuírem em nada o valor ímpar das passagens marianas de São Lucas, pensam que é o Evangelho de São João que penetra com maior profundidade no mistério de Maria. No Evangelho de João, não encontramos nenhuma referência – a não ser muito indireta – às primeiras etapas da vida de Cristo. Após elevar-se, no prólogo, até às alturas da contemplação do mistério de Deus feito homem, João passa logo em seguida a narrar episódios da vida pública do Senhor. Que nos diz acerca de Maria? Se prestarmos atenção, perceberemos que as contadas referências que João faz à Virgem Santíssima não são, primordialmente, narrações de passagens da “vida de Maria”. João focaliza Maria apenas em alguns momentos de grande significação em que Ela está presente na missão de Jesus. Descreve esses momentos – esses fatos – no estilo sóbrio e objetivo que caracteriza todos os Evangelhos, mas a sua narração, sem dúvida alguma, vai além dos fatos: capta e transmite-nos uma “mensagem”. Percebe-se, nesses textos do seu Evangelho, que João compreendeu – e quer fazer entender aos seus leitores – a importância atribuída por Deus à colaboração de Maria nas etapas mais decisivas da missão salvadora de Cristo. São aqueles três anos em que Jesus se volta – e é da maior relevância atentar para isto – de maneira direta e total para os homens necessitados de salvação: anunciando-lhes que se completou o tempo e o Reino de Deus está próximo [i], atraindo-os para a luz da Verdade e entregando-se na Cruz para o seu resgate. Duas importantes cenas marianas emolduram, como intensos pontos de luz, o começo e o final da vida pública de Cristo no Evangelho de São João: o milagre das bodas de Caná, e as palavras dirigidas por Jesus a Maria e ao discípulo amado do alto da Cruz. Antes de focalizarmos com algum vagar essas cenas, podemos adiantar que é a partir do início da vida pública que vemos desvendar-se com a maior clareza uma especial “dimensão” da maternidade de Maria. Até o fim da vida oculta, essa maternidade concentrava-se primordialmente – quase exclusivamente – no Filho, em Jesus. Mal começa a vida pública, porém, contemplamos essa maternidade alargando-se, abrindo-se para os homens que Jesus veio salvar. Vai-se revelando assim mais plenamente a maternidade espiritual de Nossa Senhora em relação a todos e cada um dos homens [ii].
As duas passagens-chave de São João, antes citadas, projetam esclarecimentos decisivos sobre esta dimensão da maternidade de Nossa Senhora.

MARIA EM CANÁ DA GALILEIA

Quando Jesus, juntamente com sua Mãe, foi convidado às bodas de Caná, era ainda muito recente a vocação dos Apóstolos. Já começavam a acompanhar o Mestre e, conforme o costume da época, foram convidados também para o casamento [iii].
A cena é conhecida. Num dado momento da ruidosa festa campesina, fica faltando vinho. Ninguém o percebe. Ninguém, a não ser Maria. Com delicada intuição, pressente que a alegria dos esposos pode ficar toldada por uma imprevidência. Maria faz “seu” o problema, assume-o com sensibilidade materna, com um interesse impregnado de coração. E não hesita em falar confiadamente a Jesus: Não têm vinho. As suas palavras não são um simples comentário preocupado, mas encerram um discreto pedido. Assim o entende Jesus, quando lhe responde: Que importa isso a mim e a ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora. A nossa lógica bem-comportada subscreveria as palavras de Jesus. Elas têm a aparência de uma compreensível e amável censura a um pedido saído do coração, mas pouco razoável. Maria, no entanto, não as entende assim. E Ela é quem tem a sintonia mais perfeita com a alma do Filho. Por isso, não duvida em solicitar imediatamente aos que servem: Fazei tudo o que Ele vos disser. Mostra saber que será escutada, sem que para isso possa ser obstáculo a dificuldade muito ponderável mencionada por Jesus: “Não chegou a minha hora”. O atendimento de Jesus ao pedido da Mãe não demora. Sob o olhar sorridente de Maria, Cristo manda aos servidores que encham de água seis grandes recipientes de pedra. Ordena-lhes depois que tirem a água já convertida em vinho e a apresentem ao mestre-sala, que não sai do seu assombro por julgar que os donos da festa tinham deixado o bom vinho guardado até agora. A cena termina com um comentário de João: Este primeiro milagre, fê-lo Jesus em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele [iv].
Falávamos há pouco da “mensagem” encerrada no fato que se acaba de sintetizar. Ela aparece aí de maneira muito clara. É patente que Maria está ativamente presente no começo do ministério público de Cristo, e está presente de uma forma central, não marginal. Prestemos atenção: * É por intercessão dEla que Cristo adianta misteriosamente a “hora” de iniciar os seus milagres, que serão “sinais” [v] da sua divindade e testemunhos visíveis da veracidade da sua doutrina. É por intercessão dEla que este primeiro sinal faz com que os discípulos creiam em Jesus. 
Finalmente, manifesta-se nesse instante a disposição de Jesus de acolher todos os pedidos que, mesmo em coisas pouco relevantes – “não têm vinho” –, cheguem a Ele por intermédio da solicitude da Mãe, que se mostra amorosamente atenta às necessidades espirituais e materiais dos homens, seus filhos. “Maria – comenta a propósito desta cena João Paulo II – põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências, dos seus sofrimentos. Põese de permeio, isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode – ou antes, “tem o direito de” – fazer presentes ao seu Filho as necessidades dos homens (...) E não é tudo: como Mãe, deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e diversas proporções, faz sentir o peso na sua vida”. Contemplando esta passagem do Evangelho, a imaginação evoca algumas das cenas mais simples da piedade popular, que por vezes escandalizam os “sábios”. Como num filme, focalizamos mentalmente os rostos enxutos, requeimados pelo sol do sertão, de um grupo de romeiros que acaba de descer do ônibus na esplanada do Santuário de Aparecida. Os devotos, entrando na basílica, cravam o olhar esperançado no retrato da Mãe, a pequenina imagem de barro escurecido. E, de cada coração, eleva-se uma súplica: pelas necessidades cotidianas, pela saúde, pela volta ao bom caminho do marido, de um filho... “Dai-nos a bênção, ó Mãe querida!” Eles sabem por dentro, têm a certeza, de que – assim como em Caná – a Virgem Santa não deixará de dizer ao Filho: “Não têm...”. E o Filho a atenderá, o Filho lhe “obedecerá”... Não é evidente a sintonia existente entre a sincera devoção popular e o Santo Evangelho? Em Caná, Cristo disse com atos, mais expressivos do que as palavras, que, na realização da sua obra salvadora em favor dos homens, deseja que ocupe um lugar de destaque a mediação maternal de sua Mãe. Não era necessário que fosse assim, mas Deus quis que assim fosse. Maria tem verdadeiramente uma função de mediação materna entre Cristo e os homens. Não é certamente uma função autônoma, nem obscurece o fato incontestável de que Jesus Cristo é o único Mediador propriamente dito entre Deus e os homens [vi]. Mas, mesmo assim, fica em pé a existência de uma autêntica mediação de Maria, subordinada mas entranhadamente unida à mediação de Cristo [vii].
A mediação de Maria está nos desígnios de Deus. Não foi imaginada pela devoção dos cristãos, em épocas mais ou menos tardias. Pelo contrário, foi sendo descoberta pela fé, cada vez com maior profundidade, como um tesouro escondido, o que é muito diferente. Bem entendia esta verdade São Bernardo, o “trovador da Virgem”, quando pregava que Maria é “o aqueduto que, recebendo a plenitude da própria fonte do coração do Pai, no-la faz acessível... Com o mais íntimo, pois, da nossa alma, com todos os afetos do nosso coração e com todos os sentimentos e desejos da nossa vontade, veneremos Maria, porque esta é a vontade daquele Senhor que quis que tudo recebêssemos por Maria” [viii].
Antes de concluirmos o comentário às bodas de Caná, detenhamo-nos por uns instantes a olhar outras riquezas dessa cena. Tem sido observado, e com razão, que nessa passagem de Caná se encontram as únicas palavras dirigidas por Maria aos homens que o Evangelho registra: “Fazei tudo o que Ele vos disser” [ix].
Aí está o sentido da mediação de Maria: levar as almas para Cristo, mover os corações dos homens a aderir à vontade de Cristo e a “fazê-la” de facto: “tudo o que Ele vos disser”. Ao mesmo tempo, aí se compreende qual é o eixo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, e o teste da sua autenticidade. A autêntica devoção a Maria sempre conduz a Cristo. É função do amor maternal de Maria “gerar” constantemente “irmãos” de seu Filho, que se disponham a viver até às últimas consequências a verdade e a vida que Jesus lhes oferece. Por isso, a devoção a Maria Santíssima não só não afasta ou desvia as almas da união com Cristo pela fé e pelo amor – e nisso reside a essência da vida cristã –, mas a facilita sobremaneira, tornando-a mais acessível e mais suave, e também mais eficaz. “A Jesus, sempre se vai e se «volta» por Maria” [x]. “A nossa alma – diz São Luís Maria Grignion de Montfort – só encontrará Deus em Maria... Só Deus habita nela e, longe de reter uma alma para si, Ela – muito ao contrário – a impele para Deus e a une a Ele” [xi].

(cont)

FRANCISCO FAUS. [xii]




[i] Mc 1, 15
[ii] Enc. Redemptoris Mater, n. 21
[iii] cfr. Jo 2, 2
[iv] cfr. Jo 2, 1-11
[v] cfr. Jo 6, 26
[vi] cfr. I Tim 2, 5
[vii] cfr. Const. Lumen Gentium, n. 62
[viii] São Bernardo, Sermo in Nativitate B. V. Mariae; in Migne, Patrologia Latina, 183, 437, ns. 4 e 7
[ix] Jo 2, 5
[x] Josemaría Escrivá, Caminho, 6ª. ed., Quadrante, São Paulo, 1983, n. 495
[xi] Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, Ed. Secrétariat de Marie Médiatrice, 4ª. ed., Lovaina, 1952, cap. I, art. 1
[xii] MARIA, A MÃE DE JESUS QUADRANTE, São Paulo Copyright © 1987 Quadrante, Sociedade de Publicações Culturais

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