PERDOAR DE TODO O CORAÇÃO
“Certo – pode dizer alguém
–, eu perdoo, gostaria de perdoar, mas não consigo esquecer. Portanto, o meu
perdão não vale nada, pois Cristo manda perdoar de todo o coração”.
Quantos não sofrem,
angustiados, por essa incapacidade que têm de esquecer mágoas e ofensas! “Eu
tento – dizem –, eu quereria esquecer, eu me esforço, mas continuo lembrando-me
e, de cada vez que lembro, vem-me aquela fervura, sinto raiva, sinto antipatia,
não aguento ver a pessoa na minha frente”.
Deus não nos pede
impossíveis, e mudar sentimentos involuntários, muitas vezes, é um impossível.
Então, o que é que Deus pede quando nos fala de perdoar de todo o coração? Com
muita clareza no-lo diz o Catecismo da Igreja Católica: “Não está em nosso
poder não mais sentir e esquecer a ofensa; mas o coração que se entrega ao
Espírito Santo transforma a ferida em compaixão e purifica a memória,
transformando a ofensa em intercessão” (n. 2843).
É um jacto de luz e um
conforto, porque é algo que uma pessoa de boa vontade sempre pode fazer.
Primeiro, transformar “a
ferida em compaixão”. Não, naturalmente, na compaixão que despreza, olhando o
“coitado” de cima para baixo. Mas na compaixão verdadeira que, sabendo passar
por alto a mágoa pessoal – ainda que essa continue como um sentimento que não
conseguimos eliminar –, percebe que a atitude errada do outro é uma ferida que
ele próprio infligiu a si mesmo. Como é lógico, a “compaixão” vivida
conscientemente – com autêntico esforço de compreensão – deixa cada vez menos
espaço no nosso coração para o rancor.
Depois, o Catecismo fala de
“purificar a memória, transformando a ofensa em intercessão”, isto é, em
oração, pedindo a Deus por aquele que nos ofendeu. Esse é exatamente o
ensinamento de Cristo: Orai pelos que vos maltratam e perseguem (Mt 5, 44).
Todos nos comovemos quando
lemos as histórias dos mártires que, a exemplo de Cristo, rezavam
fervorosamente pelos seus algozes. Mas, por que achamos que isso não é
connosco?
A esposa, o marido, os
filhos, podem ser difíceis, mas não são – normalmente – os nossos algozes.
Quantas vezes rezamos por eles? Mais concretamente, lembramo-nos de rezar por
eles – depois do primeiro sufoco, mesmo que o ânimo continue a ferver – todas
as vezes que nos ofendem ou nos tratam com desconsideração? Será que isso nos
parece esquisito ou impossível? Seria uma pena se fosse assim, porque é um
ponto básico do espírito cristão. É preciso decidir-nos a lutar por vivê-lo.
NÃO APENAS ESQUECER, MAS
ESQUECER-SE
E agora vejamos a humildade.
É mais uma virtude que São Paulo cita como arma de paz, e não poderia deixar de
ser assim, uma vez que, como vimos acima, o orgulho é o principal inimigo da
paz.
Há uma manifestação de humildade
que deveríamos pedir insistentemente a Deus, pois favorece a paz: é a graça de
não sermos suscetíveis. O orgulhoso é muito sensível, é desconfiado, magoa-se
por tudo e por nada. Têm que se medir as palavras para falar com ele: –
“Cuidado com o que dizes, cuidado com o modo de olhá-lo, porque pode
interpretar mal!”
“A maioria dos conflitos em
que se debate a vida interior de muita gente – dizia Mons. Escrivá – é
fabricada pela imaginação: é que disseram..., é que podem pensar..., é que não
me consideram... E essa pobre alma sofre, pela sua triste fatuidade, com
suspeitas que não são reais. Nessa aventura infeliz, a sua amargura é contínua,
e procura produzir desassossego nos outros: porque não sabe ser humilde, porque
não aprendeu a esquecer-se de si própria para se dar generosamente ao serviço
dos outros por amor a Deus” [i].
Nestas palavras, ao lado do
diagnóstico da susceptibilidade, indicam-se os dois principais remédios: aprender
a esquecer-nos de nós mesmos; e dar-nos generosamente ao serviço dos outros.
São dois aspectos da humildade que têm a maior relevância para a paz familiar.
Faz alguns anos, veio-me às
mãos, não sei dizer como, o texto de uma mensagem que a rainha Fabíola dirigiu
ao povo belga por ocasião dos trinta anos do seu casamento com o rei Balduíno.
A data era de 15 de Dezembro de 1990 e o texto da mensagem era o seguinte: “Eu
vos direi, simplesmente, que estes têm sido anos de felicidade, devido em
grande parte à gentileza do meu marido, às suas atenções, a um constante
esquecimento de si mesmo que jamais ficou desmentido. Ele tem para comigo uma
paciência a toda a prova: foi a paciência que permitiu ao nosso amor crescer e
expandir-se. Esse esquecimento de si, em favor do outro, é a verdadeira chave
do casamento”.
Esquecer-se: palavra
maravilhosa. São Paulo aplica-a a Cristo, dizendo que se esqueceu de si, que se
aniquilou a si mesmo, assumindo a condição de servo... (Fil 2, 7). O
esquecimento é a face oculta do amor, aquilo que nos facilita amar libertos da
carga do “eu”.
Assim o fez Cristo:
esqueceu-se de Si até fazer-se “nada” – aniquilando-se –, para dar-se
totalmente a nós. E d’Ele, entregue e esquecido, afirmará São Paulo que é a
nossa paz (Ef 2, 14).
Em que pensamos
habitualmente? Em quem pensamos? Já é hora de deixar de preocupar-nos tanto por
nós mesmos, de deixar de avaliar tudo o que os outros fazem – “é bom, é ruim” –
pelos reflexos que projeta no espelho do nosso “eu”. Somente quem se esquece humildemente
de si é capaz de se doar. “Oxalá te habitues a ocupar-te diariamente dos
outros, com tanta entrega que te esqueças de que existes!” [ii]
O SERVIDOR DE TODOS
Com estas palavras – ser o
servidor de todos –, Cristo procurou reiteradamente curar o egoísmo e a ambição
dos seus Apóstolos. Várias vezes, o Evangelho nos apresenta aqueles homens bons
e rudes, que Jesus chamou e que ia formando pacientemente junto de Si, a
discutir sobre qual deles seria o maior. Em todas essas ocasiões, Jesus
deu-lhes uma resposta “radical”: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último
de todos e o servidor de todos (Mc 9, 34-35). E aproveitou para recordar-lhes
que esse era justamente o caminho que Ele quis seguir: O Filho do homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvação de muitos
(Mt 20, 28).
Como seria delicioso um lar
em que todos estivessem dispostos a servir uns aos outros; mais ainda, em que
competissem uns com os outros, para ver quem serve mais e melhor. Seria o
império da paz e da alegria. Porque é evidente que quem serve, quem deseja
servir, não se lembra de reclamar e, em consequência, está pouco predisposto a
brigar ou a descambar para o mau-humor.
Grande parte das queixas que
há no lar obedecem ao desejo de “sermos servidos”.
Pensamos, amargurados, que
se esqueceram de nós; que não nos dão atenção; que não nos tratam com carinho;
que não preparam a comida de que gostamos; que têm a rara habilidade de mudar
de canal de televisão quando estamos assistindo ao nosso programa preferido...
Em suma, não nos “servem” o
que achamos justo receber.
Quem tem espírito de
serviço, sem cair na conivência com a desordem, reclama pouco e faz muito. E o
que faz – se realmente é humilde – possui as seguintes características:
– É um serviço feito com
alegria. Uma pessoa que serve resmungando, como se fosse um mártir condenado a
trabalhos forçados, torna o seu serviço desagradável e deixa o ambiente
rarefeito. É natural que os outros, enervados – por exemplo – pela mulher que
reclama do trabalho que lhe dão, ou pelo marido que resmunga, ou pelos
protestos dos filhos ante o menor pedido de ajuda, tenham vontade de gritar:
“Pára com isso! Prefiro eu fazer tudo a estar tendo que aturar tanta reclamação!”
– Depois, é um serviço feito
com elegância, isto é, sem lhe dar importância. Como é desagradável a pessoa
que serve e, depois, fica cobrando os serviços prestados: “Eu fiz muito mais do
que deveria fazer; chega, agora façam vocês”, “Eu passo o dia dando duro e
vocês – os filhos –, na maior gandaia”. “Eu já fui ontem comprar pão, agora que
vá a minha irmã”... Cristo, pelo contrário, ensina-nos de modo explícito que,
depois de termos feito tudo, devemos dizer, sem nenhuma vaidade: Não fizemos
mais que o que devíamos fazer (cf. Lc 17, 10).
– Finalmente, é um espírito
de serviço que sabe adiantar-se. Muitos servem, realizam serviços, mas puxados
sempre pelos outros: pelo que os outros pedem ou mandam.
Deles próprios, não parte
iniciativa nenhuma.
Quando temos espírito de
serviço, o coração e a mente estão vigilantes, e fazemos o que dizia São Paulo:
Adiantai-vos em honrar uns aos outros (Rom 12, 10). Adiantamo-nos, fazemos as
coisas antes que os outros as tenham que fazer, poupamo-los com carinho.
Como é agradável o ambiente
de uma casa onde a mulher, que anda fatigada, descobre com surpresa que, sem
dizer nada, a filha de treze anos se levantou um pouco antes da hora e está
preparando o café; ou que o menino, sabendo que a empregada foi embora, arrumou
ele
sozinho – milagre! – a sua
cama; ou que vê aparecer o marido na cozinha, a cantarolar “Romaria” (“Sou
caipira, Pirapora...”), pondo-se de repente a lavar a louça! Isso é uma bênção
de paz para o lar.
UM CORTEJO DE VIRTUDES
AMÁVEIS
Voltando ao texto de São
Paulo, depois da humildade, mencionam-se outras virtudes: primeiro, uma virtude
que tanto pode traduzir-se por doçura como por mansidão; e, depois, a virtude
da paciência.
Como é natural, São Paulo
não pretende fazer aí um tratado exaustivo: não afirma que as virtudes que
enumera sejam “todas” as virtudes que contribuem para a paz. Mas, sem dúvida,
todas elas estão relacionadas com a paz e, por isso, servem-nos muito bem de
pauta.
Doçura, paciência,
serenidade, mansidão. Só de ouvirmos estas palavras, parece que a paz já se
derrama na nossa alma.
Há pessoas que, por estarem
perto de Deus, difundem em todos os que as cercam ma paz serena. Bem-dispostas,
pacientes, suaves nos modos, são, ao mesmo tempo, gentis e cheias de
delicadezas. Junto delas, experimentamos uma sensação de bem-estar parecida com
a que nos envolve ao contemplarmos um suave e lento entardecer no campo.
Sem as virtudes amáveis, a
vida torna-se dura, áspera, cheia de atritos. Na verdade, qual é a fonte mais
comum das palavras, dos olhares e dos gestos desagradáveis? Sem dúvida, a
irritabilidade e a impaciência não controladas. Ninguém tem vontade de chegar a
uma casa em que a mulher grita e se impacienta por qualquer contrariedade; ou
em que o pai está sempre esbravejando, furioso, e bronqueando a todos.
Em compensação, quando o
marido ou a mulher possuem as virtudes amáveis de que estamos falando, os dois
têm ânsias de chegar a casa, cada um sente uma pontada de vazio quando o outro
está ausente, e experimenta um sobressalto de alegria quando percebe que está
voltando para o lar.
Os médicos falam do sinal
“patognomónico” que, como explica o dicionário, é o sintoma característico de
uma doença. O professor de psiquiatria e escritor J.A. VallejoNágera comentava,
a este respeito, numa entrevista autobiográfica: “O sinal patognomónico de que
um casamento funciona bem é o barulhinho da chave na fechadura da porta da
casa.
Eu estava acostumado a
chegar a casa e a que a Viky [a esposa] estivesse à minha espera.
Se, por um motivo qualquer,
não estava, eu sentia um vazio, um oco. Diria até que notava o som do vazio.
Quando, passado um tempo, ouvia o elevador e, depois, o barulho da chave sendo
introduzida na fechadura, e sentia que o meu coração se alegrava, ficava certo
de que o meu casamento funcionava. Tenho praticado muito no meu consultório o
teste da chave, como eu o chamo, com pacientes que têm problemas matrimoniais” [iii].
(cont)
[iii] J.A. Vallejo-Nágera e J.L. Olaizola, La puerta de la esperanza, Rialp
Planeta, 21a. ed., Barcelona, 1992, pág. 141;
[iv] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da
consciência.
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