22/12/2017

Leitura espiritual

A PAZ NA FAMÍLIA

PERDOAR DE TODO O CORAÇÃO

“Certo – pode dizer alguém –, eu perdoo, gostaria de perdoar, mas não consigo esquecer. Portanto, o meu perdão não vale nada, pois Cristo manda perdoar de todo o coração”.
Quantos não sofrem, angustiados, por essa incapacidade que têm de esquecer mágoas e ofensas! “Eu tento – dizem –, eu quereria esquecer, eu me esforço, mas continuo lembrando-me e, de cada vez que lembro, vem-me aquela fervura, sinto raiva, sinto antipatia, não aguento ver a pessoa na minha frente”.
Deus não nos pede impossíveis, e mudar sentimentos involuntários, muitas vezes, é um impossível. Então, o que é que Deus pede quando nos fala de perdoar de todo o coração? Com muita clareza no-lo diz o Catecismo da Igreja Católica: “Não está em nosso poder não mais sentir e esquecer a ofensa; mas o coração que se entrega ao Espírito Santo transforma a ferida em compaixão e purifica a memória, transformando a ofensa em intercessão” (n. 2843).
É um jacto de luz e um conforto, porque é algo que uma pessoa de boa vontade sempre pode fazer.
Primeiro, transformar “a ferida em compaixão”. Não, naturalmente, na compaixão que despreza, olhando o “coitado” de cima para baixo. Mas na compaixão verdadeira que, sabendo passar por alto a mágoa pessoal – ainda que essa continue como um sentimento que não conseguimos eliminar –, percebe que a atitude errada do outro é uma ferida que ele próprio infligiu a si mesmo. Como é lógico, a “compaixão” vivida conscientemente – com autêntico esforço de compreensão – deixa cada vez menos espaço no nosso coração para o rancor.
Depois, o Catecismo fala de “purificar a memória, transformando a ofensa em intercessão”, isto é, em oração, pedindo a Deus por aquele que nos ofendeu. Esse é exatamente o ensinamento de Cristo: Orai pelos que vos maltratam e perseguem (Mt 5, 44).
Todos nos comovemos quando lemos as histórias dos mártires que, a exemplo de Cristo, rezavam fervorosamente pelos seus algozes. Mas, por que achamos que isso não é connosco?
A esposa, o marido, os filhos, podem ser difíceis, mas não são – normalmente – os nossos algozes. Quantas vezes rezamos por eles? Mais concretamente, lembramo-nos de rezar por eles – depois do primeiro sufoco, mesmo que o ânimo continue a ferver – todas as vezes que nos ofendem ou nos tratam com desconsideração? Será que isso nos parece esquisito ou impossível? Seria uma pena se fosse assim, porque é um ponto básico do espírito cristão. É preciso decidir-nos a lutar por vivê-lo.

NÃO APENAS ESQUECER, MAS ESQUECER-SE

E agora vejamos a humildade. É mais uma virtude que São Paulo cita como arma de paz, e não poderia deixar de ser assim, uma vez que, como vimos acima, o orgulho é o principal inimigo da paz.
Há uma manifestação de humildade que deveríamos pedir insistentemente a Deus, pois favorece a paz: é a graça de não sermos suscetíveis. O orgulhoso é muito sensível, é desconfiado, magoa-se por tudo e por nada. Têm que se medir as palavras para falar com ele: – “Cuidado com o que dizes, cuidado com o modo de olhá-lo, porque pode interpretar mal!”
“A maioria dos conflitos em que se debate a vida interior de muita gente – dizia Mons. Escrivá – é fabricada pela imaginação: é que disseram..., é que podem pensar..., é que não me consideram... E essa pobre alma sofre, pela sua triste fatuidade, com suspeitas que não são reais. Nessa aventura infeliz, a sua amargura é contínua, e procura produzir desassossego nos outros: porque não sabe ser humilde, porque não aprendeu a esquecer-se de si própria para se dar generosamente ao serviço dos outros por amor a Deus” [i].
Nestas palavras, ao lado do diagnóstico da susceptibilidade, indicam-se os dois principais remédios: aprender a esquecer-nos de nós mesmos; e dar-nos generosamente ao serviço dos outros. São dois aspectos da humildade que têm a maior relevância para a paz familiar.
Faz alguns anos, veio-me às mãos, não sei dizer como, o texto de uma mensagem que a rainha Fabíola dirigiu ao povo belga por ocasião dos trinta anos do seu casamento com o rei Balduíno. A data era de 15 de Dezembro de 1990 e o texto da mensagem era o seguinte: “Eu vos direi, simplesmente, que estes têm sido anos de felicidade, devido em grande parte à gentileza do meu marido, às suas atenções, a um constante esquecimento de si mesmo que jamais ficou desmentido. Ele tem para comigo uma paciência a toda a prova: foi a paciência que permitiu ao nosso amor crescer e expandir-se. Esse esquecimento de si, em favor do outro, é a verdadeira chave do casamento”.
Esquecer-se: palavra maravilhosa. São Paulo aplica-a a Cristo, dizendo que se esqueceu de si, que se aniquilou a si mesmo, assumindo a condição de servo... (Fil 2, 7). O esquecimento é a face oculta do amor, aquilo que nos facilita amar libertos da carga do “eu”.
Assim o fez Cristo: esqueceu-se de Si até fazer-se “nada” – aniquilando-se –, para dar-se totalmente a nós. E d’Ele, entregue e esquecido, afirmará São Paulo que é a nossa paz (Ef 2, 14).
Em que pensamos habitualmente? Em quem pensamos? Já é hora de deixar de preocupar-nos tanto por nós mesmos, de deixar de avaliar tudo o que os outros fazem – “é bom, é ruim” – pelos reflexos que projeta no espelho do nosso “eu”. Somente quem se esquece humildemente de si é capaz de se doar. “Oxalá te habitues a ocupar-te diariamente dos outros, com tanta entrega que te esqueças de que existes!” [ii]

O SERVIDOR DE TODOS

Com estas palavras – ser o servidor de todos –, Cristo procurou reiteradamente curar o egoísmo e a ambição dos seus Apóstolos. Várias vezes, o Evangelho nos apresenta aqueles homens bons e rudes, que Jesus chamou e que ia formando pacientemente junto de Si, a discutir sobre qual deles seria o maior. Em todas essas ocasiões, Jesus deu-lhes uma resposta “radical”: Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servidor de todos (Mc 9, 34-35). E aproveitou para recordar-lhes que esse era justamente o caminho que Ele quis seguir: O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvação de muitos (Mt 20, 28).
Como seria delicioso um lar em que todos estivessem dispostos a servir uns aos outros; mais ainda, em que competissem uns com os outros, para ver quem serve mais e melhor. Seria o império da paz e da alegria. Porque é evidente que quem serve, quem deseja servir, não se lembra de reclamar e, em consequência, está pouco predisposto a brigar ou a descambar para o mau-humor.
Grande parte das queixas que há no lar obedecem ao desejo de “sermos servidos”.
Pensamos, amargurados, que se esqueceram de nós; que não nos dão atenção; que não nos tratam com carinho; que não preparam a comida de que gostamos; que têm a rara habilidade de mudar de canal de televisão quando estamos assistindo ao nosso programa preferido...
Em suma, não nos “servem” o que achamos justo receber.
Quem tem espírito de serviço, sem cair na conivência com a desordem, reclama pouco e faz muito. E o que faz – se realmente é humilde – possui as seguintes características:
– É um serviço feito com alegria. Uma pessoa que serve resmungando, como se fosse um mártir condenado a trabalhos forçados, torna o seu serviço desagradável e deixa o ambiente rarefeito. É natural que os outros, enervados – por exemplo – pela mulher que reclama do trabalho que lhe dão, ou pelo marido que resmunga, ou pelos protestos dos filhos ante o menor pedido de ajuda, tenham vontade de gritar: “Pára com isso! Prefiro eu fazer tudo a estar tendo que aturar tanta reclamação!”
– Depois, é um serviço feito com elegância, isto é, sem lhe dar importância. Como é desagradável a pessoa que serve e, depois, fica cobrando os serviços prestados: “Eu fiz muito mais do que deveria fazer; chega, agora façam vocês”, “Eu passo o dia dando duro e vocês – os filhos –, na maior gandaia”. “Eu já fui ontem comprar pão, agora que vá a minha irmã”... Cristo, pelo contrário, ensina-nos de modo explícito que, depois de termos feito tudo, devemos dizer, sem nenhuma vaidade: Não fizemos mais que o que devíamos fazer (cf. Lc 17, 10).
– Finalmente, é um espírito de serviço que sabe adiantar-se. Muitos servem, realizam serviços, mas puxados sempre pelos outros: pelo que os outros pedem ou mandam.
Deles próprios, não parte iniciativa nenhuma.
Quando temos espírito de serviço, o coração e a mente estão vigilantes, e fazemos o que dizia São Paulo: Adiantai-vos em honrar uns aos outros (Rom 12, 10). Adiantamo-nos, fazemos as coisas antes que os outros as tenham que fazer, poupamo-los com carinho.
Como é agradável o ambiente de uma casa onde a mulher, que anda fatigada, descobre com surpresa que, sem dizer nada, a filha de treze anos se levantou um pouco antes da hora e está preparando o café; ou que o menino, sabendo que a empregada foi embora, arrumou ele
sozinho – milagre! – a sua cama; ou que vê aparecer o marido na cozinha, a cantarolar “Romaria” (“Sou caipira, Pirapora...”), pondo-se de repente a lavar a louça! Isso é uma bênção de paz para o lar.

UM CORTEJO DE VIRTUDES AMÁVEIS

Voltando ao texto de São Paulo, depois da humildade, mencionam-se outras virtudes: primeiro, uma virtude que tanto pode traduzir-se por doçura como por mansidão; e, depois, a virtude da paciência.
Como é natural, São Paulo não pretende fazer aí um tratado exaustivo: não afirma que as virtudes que enumera sejam “todas” as virtudes que contribuem para a paz. Mas, sem dúvida, todas elas estão relacionadas com a paz e, por isso, servem-nos muito bem de pauta.
Doçura, paciência, serenidade, mansidão. Só de ouvirmos estas palavras, parece que a paz já se derrama na nossa alma.
Há pessoas que, por estarem perto de Deus, difundem em todos os que as cercam ma paz serena. Bem-dispostas, pacientes, suaves nos modos, são, ao mesmo tempo, gentis e cheias de delicadezas. Junto delas, experimentamos uma sensação de bem-estar parecida com a que nos envolve ao contemplarmos um suave e lento entardecer no campo.
Sem as virtudes amáveis, a vida torna-se dura, áspera, cheia de atritos. Na verdade, qual é a fonte mais comum das palavras, dos olhares e dos gestos desagradáveis? Sem dúvida, a irritabilidade e a impaciência não controladas. Ninguém tem vontade de chegar a uma casa em que a mulher grita e se impacienta por qualquer contrariedade; ou em que o pai está sempre esbravejando, furioso, e bronqueando a todos.
Em compensação, quando o marido ou a mulher possuem as virtudes amáveis de que estamos falando, os dois têm ânsias de chegar a casa, cada um sente uma pontada de vazio quando o outro está ausente, e experimenta um sobressalto de alegria quando percebe que está voltando para o lar.
Os médicos falam do sinal “patognomónico” que, como explica o dicionário, é o sintoma característico de uma doença. O professor de psiquiatria e escritor J.A. VallejoNágera comentava, a este respeito, numa entrevista autobiográfica: “O sinal patognomónico de que um casamento funciona bem é o barulhinho da chave na fechadura da porta da casa.
Eu estava acostumado a chegar a casa e a que a Viky [a esposa] estivesse à minha espera.
Se, por um motivo qualquer, não estava, eu sentia um vazio, um oco. Diria até que notava o som do vazio. Quando, passado um tempo, ouvia o elevador e, depois, o barulho da chave sendo introduzida na fechadura, e sentia que o meu coração se alegrava, ficava certo de que o meu casamento funcionava. Tenho praticado muito no meu consultório o teste da chave, como eu o chamo, com pacientes que têm problemas matrimoniais” [iii].

(cont)

FRANCISCO FAUS [iv]




[i]  Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, Quadrante, São Paulo, 1979, n. 101;
[ii] Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, n. 947;
[iii] J.A. Vallejo-Nágera e J.L. Olaizola, La puerta de la esperanza, Rialp Planeta, 21a. ed., Barcelona, 1992, pág. 141;
[iv] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom; Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da consciência.

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