VOCAÇÃO DIVINA, VOCAÇÃO DE
AMOR
“Compreender a obra
sobrenatural que supõe a fundação de uma família”, ter “consciência da própria
missão”.
Para muitas moças e rapazes,
frases como as que acabamos de ler devem parecer-lhes belas palavras ou sonhos
irreais. E, no entanto, desses ideais sobre o casamento e a família, que eles
ainda não entendem, “dependem, em grande parte, a eficácia e o êxito da sua
vida: a sua felicidade”.
O casamento e a família,
como qualquer outra vocação, significam para um cristão um chamamento pessoal
de Cristo, um apelo para segui-Lo.
Se alguém quiser vir após
mim – diz Jesus Cristo –, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt
16, 24). Estamos nos antípodas do utilitarismo egoísta. Em vez de dizer:
“Procure-se a si mesmo, realize-se a si mesmo”, diz-nos: “Não pense em si,
doe-se generosamente”.
Esse apelo à renúncia e ao
esquecimento próprio não é, absolutamente, uma tristonha anulação da
personalidade, nem um abafamento da alegria de viver. É exatamente o contrário:
as palavras de Cristo estão a mostrar-nos o rosto do amor. E o amor é a seiva
vivificante da família.
Será preciso lembrar que o
amor cristão se formula assim: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei (Jo 13,
34)? Será que há alguma dúvida sobre como Ele, Cristo, nos amou? Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).
Com Cristo, um amor inédito
entrou no mundo, um amor que o mundo pagão desconhecia totalmente. Era um amor
à medida do Amor de Deus, que os cristãos designaram com uma palavra nova:
“agápe”, em grego; “caritas” – caridade –, em latim. Era um amor à imagem e
semelhança do amor de Cristo.
O que fizemos desse amor? No
mundo de hoje, é preciso reaprendê-lo; é urgente – para todos, mas
especialmente para os jovens – redescobrir a beleza inefável do Amor com
maiúscula, que vem de Deus (1 Jo 44, 7). A nossa alma tem uma necessidade vital
de experimentar o deslumbramento feliz de São João, quando exclamava: Nisto
conhecemos o amor: em que Jesus deu a sua vida por nós, e também nós devemos
dar a vida pelos nossos irmãos (1 Jo 3, 16). Desse João Apóstolo que, com quase
cem anos de idade, acrescentava, extasiado: Nós conhecemos o amor de Deus e
acreditamos nele!... Se Deus nos amou assim, também nós nos devemos amar-nos
uns aos outros (1 Jo 4, 11.16).
Não duvidemos: é aí, e
somente aí, nas profundezas do amor cristão, que finca as suas raízes a paz
familiar.
A SABEDORIA DE SÃO TOMÁS
Antes de terminar esta
panorâmica – “a família em perspectiva” –, talvez valha a pena acrescentar
ainda, como complemento útil, umas breves reflexões. São considerações que
procedem de boa fonte, de São Tomás de Aquino.
Na sua Suma Teológica, a
certa altura, o santo doutor, na esteira de Aristóteles, formula várias
perguntas sobre o amor e – como se estivesse a dizer a coisa mais óbvia do
mundo – escreve que há dois tipos de amor:
Um é o que chama amor de
concupiscência (que não significa só o amor sexual, pois a palavra latina concupiscentia designa os desejos em
geral). Dá-se esse amor quando “em vez de querer o bem de quem amamos, queremos
que ele seja um bem para nós, como quando dizemos que amamos o vinho ou um
cavalo...” São Tomás parece brincar, mas fala com a maior seriedade. Não sei se
o que vou dizer não será rude demais, mas creio que o amante egoísta, descrito
nas páginas anteriores, encara a esposa – ou o marido, ou os filhos, ou os pais
– com a mesma mentalidade com que degusta um vinho ou experimenta o trote de um
cavalo.
O outro tipo de amor –
acrescenta São Tomás – é o que se chama amor de amizade.
“Não é – diz – um amor
qualquer, mas o amor que possui a benevolência, isto é, o amor que existe
quando amamos alguém de tal maneira que queremos o seu bem” [i].
Pronto. Poucas palavras para
enormes verdades. Há um amor que busca só o bem e o interesse próprios. Há
outro amor que busca e trabalha pelo bem da pessoa amada. Este último – amor de
amizade –, vivificado pela capacidade de querer que nos infunde o Espírito
Santo (cf. Rom 5, 5), é o amor cristão. E é só com esse tipo de amor que se
faz, de verdade, família e nela se consegue a paz.
Enquanto escrevo estas
últimas linhas, vem-me ao pensamento – e comove-me novamente – a lembrança de
um casal amigo, excelentes pessoas, unidas e fiéis após longos anos de
convívio. Com uma lucidez plácida e simples, o marido, bom cristão, dizia-me:
“O senhor sabe? Depois de tantos anos, cheguei à conclusão de que o amor entre
marido e mulher só é amor mesmo quando os dois se tornam amigos, quando são
dois bons amigos.
O verdadeiro amor é
amizade”.
E, com isto, finalizamos a
nossa digressão sobre a “família em perspectiva”. As considerações gerais que
acabamos de fazer serão o ponto de partida para as que faremos a seguir
comentando atitudes e gestos concretos que, brotando do amor, podem construir a
paz familiar.
CONSTRUIR A PAZ FAMILIAR
UM COMBATE PELA PAZ
Na introdução a estas
páginas, transcrevíamos umas palavras de São Paulo que põem à mostra – dizíamos
ali – as cordas da paz. Vamos agora rever e meditar com calma esse texto, que
nos pode ajudar a encontrar os caminhos da paz (cf. Lc 1, 79) pelos quais Deus
quer que andemos.
Como eleitos de Deus, santos
e amados, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade,
mansidão, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se
um tiver contra outro motivo de queixa. Como o Senhor vos perdoou, assim
perdoai também vós. Mas, acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da
perfeição. Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes
chamados a formar um único corpo. E sede agradecidos (Col 3, 12-15).
Relendo essas linhas,
facilmente podemos observar nelas quatro ideias claras:
Primeira: São Paulo quer
mostrar o caminho para que a paz “triunfe nos corações”.
Reparemos que ele não diz:
para que a paz “surja”, “permaneça” ou se “assente” em vossos corações, mas
para que “triunfe em vossos corações”. E é que a paz da alma – que transborda
em paz para os outros – é sempre “consequência da guerra”; é uma conquista,
resultante – como dizia Mons. Escrivá – de uma luta íntima “contra tudo o que
na vida não for de Deus: contra a soberba, a sensualidade, o egoísmo, a
superficialidade, a estreiteza de coração” [ii].
Segunda ideia: essa luta
trava-se praticando virtudes concretas, não bastando sentimentos e boas
vontades: é preciso exercitar a misericórdia, a bondade, a doçura, a mansidão,
a paciência, o perdão.
Terceira ideia: essas
virtudes constituem uma força eficaz, apta para produzir a paz, só quando estão
bem amarradas, como um feixe, pela caridade (pelo amor à medida do amor de
Cristo), formando assim um conjunto firme e coeso. Este é exactamente o
significado da expressão: o amor é o vínculo da perfeição.
Quarta ideia: essa luta pela
paz – e concretamente pela paz na família – é um dever que decorre da nossa
vocação. Por isso São Paulo começa esse parágrafo afirmando que devemos
exercitar as virtudes que levam à paz justamente por sermos eleitos de Deus,
santos – chamados à santidade – e amados.
Após este olhar geral sobre
as palavras de São Paulo, vamos agora ativar o zoom e fazer uma aproximação das
virtudes mencionadas por ele, juntamente com outras que lhes são conexas.
UMA ENTRANHADA MISERICÓRDIA
Que quer dizer misericórdia
na família? Entenderemos bem essa virtude, se nos lembramos de que a
misericórdia do cristão deve imitar a misericórdia de Deus: Sede
misericordiosos como vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 36).
Deus é misericordioso porque
vê as nossas misérias – por dizê-lo de um modo humano – “com coração”. A
palavra misericórdia significa, com efeito, “miséria” que toca o “coração”.
Quer isto dizer que Deus olha para os nossos pecados, os nossos defeitos, as
nossas ofensas – que não pode aprovar –, não com a dureza de um justiceiro, mas
com um olhar compreensivo, compassivo e sempre predisposto ao perdão.
A pessoa misericordiosa sabe
“olhar com coração”. Mas não fica só nisso. “O verdadeiro significado da
misericórdia – diz João Paulo II – não consiste apenas no olhar, por mais
penetrante e cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico
ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia verdadeira e
própria quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal
existentes no mundo e no homem”. A misericórdia – acrescenta – é um amor “que
não se deixa «vencer pelo mal», mas «vence o mal com o bem» (cf. Rom 12,
21)”11.
Retenhamos bem essas ideias:
a virtude da misericórdia começa por “olhar” o outro, por “vê-lo” com um olhar
“penetrante” e “cheio de compaixão”; e completa-se quando, a partir desse olhar
compreensivo, nos esforçamos por tirar um bem do mal que vemos nos outros. Duas
atitudes que, por si sós, já seriam um excelente programa para a paz da
família.
Mas bem poucos as conseguem
viver na prática.
(cont)
[iii] Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom;
Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da
consciência.
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