20/12/2017

Leitura espiritual

A PAZ NA FAMÍLIA

VOCAÇÃO DIVINA, VOCAÇÃO DE AMOR

“Compreender a obra sobrenatural que supõe a fundação de uma família”, ter “consciência da própria missão”.
Para muitas moças e rapazes, frases como as que acabamos de ler devem parecer-lhes belas palavras ou sonhos irreais. E, no entanto, desses ideais sobre o casamento e a família, que eles ainda não entendem, “dependem, em grande parte, a eficácia e o êxito da sua vida: a sua felicidade”.
O casamento e a família, como qualquer outra vocação, significam para um cristão um chamamento pessoal de Cristo, um apelo para segui-Lo.
Se alguém quiser vir após mim – diz Jesus Cristo –, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16, 24). Estamos nos antípodas do utilitarismo egoísta. Em vez de dizer: “Procure-se a si mesmo, realize-se a si mesmo”, diz-nos: “Não pense em si, doe-se generosamente”.
Esse apelo à renúncia e ao esquecimento próprio não é, absolutamente, uma tristonha anulação da personalidade, nem um abafamento da alegria de viver. É exatamente o contrário: as palavras de Cristo estão a mostrar-nos o rosto do amor. E o amor é a seiva vivificante da família.
Será preciso lembrar que o amor cristão se formula assim: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei (Jo 13, 34)? Será que há alguma dúvida sobre como Ele, Cristo, nos amou? Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).
Com Cristo, um amor inédito entrou no mundo, um amor que o mundo pagão desconhecia totalmente. Era um amor à medida do Amor de Deus, que os cristãos designaram com uma palavra nova: “agápe”, em grego; “caritas” – caridade –, em latim. Era um amor à imagem e semelhança do amor de Cristo.
O que fizemos desse amor? No mundo de hoje, é preciso reaprendê-lo; é urgente – para todos, mas especialmente para os jovens – redescobrir a beleza inefável do Amor com maiúscula, que vem de Deus (1 Jo 44, 7). A nossa alma tem uma necessidade vital de experimentar o deslumbramento feliz de São João, quando exclamava: Nisto conhecemos o amor: em que Jesus deu a sua vida por nós, e também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos (1 Jo 3, 16). Desse João Apóstolo que, com quase cem anos de idade, acrescentava, extasiado: Nós conhecemos o amor de Deus e acreditamos nele!... Se Deus nos amou assim, também nós nos devemos amar-nos uns aos outros (1 Jo 4, 11.16).
Não duvidemos: é aí, e somente aí, nas profundezas do amor cristão, que finca as suas raízes a paz familiar.

A SABEDORIA DE SÃO TOMÁS

Antes de terminar esta panorâmica – “a família em perspectiva” –, talvez valha a pena acrescentar ainda, como complemento útil, umas breves reflexões. São considerações que procedem de boa fonte, de São Tomás de Aquino.
Na sua Suma Teológica, a certa altura, o santo doutor, na esteira de Aristóteles, formula várias perguntas sobre o amor e – como se estivesse a dizer a coisa mais óbvia do mundo – escreve que há dois tipos de amor:
Um é o que chama amor de concupiscência (que não significa só o amor sexual, pois a palavra latina concupiscentia designa os desejos em geral). Dá-se esse amor quando “em vez de querer o bem de quem amamos, queremos que ele seja um bem para nós, como quando dizemos que amamos o vinho ou um cavalo...” São Tomás parece brincar, mas fala com a maior seriedade. Não sei se o que vou dizer não será rude demais, mas creio que o amante egoísta, descrito nas páginas anteriores, encara a esposa – ou o marido, ou os filhos, ou os pais – com a mesma mentalidade com que degusta um vinho ou experimenta o trote de um cavalo.
O outro tipo de amor – acrescenta São Tomás – é o que se chama amor de amizade.
“Não é – diz – um amor qualquer, mas o amor que possui a benevolência, isto é, o amor que existe quando amamos alguém de tal maneira que queremos o seu bem”  [i].
Pronto. Poucas palavras para enormes verdades. Há um amor que busca só o bem e o interesse próprios. Há outro amor que busca e trabalha pelo bem da pessoa amada. Este último – amor de amizade –, vivificado pela capacidade de querer que nos infunde o Espírito Santo (cf. Rom 5, 5), é o amor cristão. E é só com esse tipo de amor que se faz, de verdade, família e nela se consegue a paz.
Enquanto escrevo estas últimas linhas, vem-me ao pensamento – e comove-me novamente – a lembrança de um casal amigo, excelentes pessoas, unidas e fiéis após longos anos de convívio. Com uma lucidez plácida e simples, o marido, bom cristão, dizia-me: “O senhor sabe? Depois de tantos anos, cheguei à conclusão de que o amor entre marido e mulher só é amor mesmo quando os dois se tornam amigos, quando são dois bons amigos.
O verdadeiro amor é amizade”.
E, com isto, finalizamos a nossa digressão sobre a “família em perspectiva”. As considerações gerais que acabamos de fazer serão o ponto de partida para as que faremos a seguir comentando atitudes e gestos concretos que, brotando do amor, podem construir a paz familiar.

CONSTRUIR A PAZ FAMILIAR
UM COMBATE PELA PAZ

Na introdução a estas páginas, transcrevíamos umas palavras de São Paulo que põem à mostra – dizíamos ali – as cordas da paz. Vamos agora rever e meditar com calma esse texto, que nos pode ajudar a encontrar os caminhos da paz (cf. Lc 1, 79) pelos quais Deus quer que andemos.
Como eleitos de Deus, santos e amados, revesti-vos de entranhada misericórdia, de bondade, humildade, mansidão, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se um tiver contra outro motivo de queixa. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai também vós. Mas, acima de tudo, revesti-vos do amor, que é o vínculo da perfeição. Triunfe em vossos corações a paz de Cristo, para a qual fostes chamados a formar um único corpo. E sede agradecidos (Col 3, 12-15).
Relendo essas linhas, facilmente podemos observar nelas quatro ideias claras:
Primeira: São Paulo quer mostrar o caminho para que a paz “triunfe nos corações”.
Reparemos que ele não diz: para que a paz “surja”, “permaneça” ou se “assente” em vossos corações, mas para que “triunfe em vossos corações”. E é que a paz da alma – que transborda em paz para os outros – é sempre “consequência da guerra”; é uma conquista, resultante – como dizia Mons. Escrivá – de uma luta íntima “contra tudo o que na vida não for de Deus: contra a soberba, a sensualidade, o egoísmo, a superficialidade, a estreiteza de coração” [ii].
Segunda ideia: essa luta trava-se praticando virtudes concretas, não bastando sentimentos e boas vontades: é preciso exercitar a misericórdia, a bondade, a doçura, a mansidão, a paciência, o perdão.
Terceira ideia: essas virtudes constituem uma força eficaz, apta para produzir a paz, só quando estão bem amarradas, como um feixe, pela caridade (pelo amor à medida do amor de Cristo), formando assim um conjunto firme e coeso. Este é exactamente o significado da expressão: o amor é o vínculo da perfeição.
Quarta ideia: essa luta pela paz – e concretamente pela paz na família – é um dever que decorre da nossa vocação. Por isso São Paulo começa esse parágrafo afirmando que devemos exercitar as virtudes que levam à paz justamente por sermos eleitos de Deus, santos – chamados à santidade – e amados.
Após este olhar geral sobre as palavras de São Paulo, vamos agora ativar o zoom e fazer uma aproximação das virtudes mencionadas por ele, juntamente com outras que lhes são conexas.

UMA ENTRANHADA MISERICÓRDIA

Que quer dizer misericórdia na família? Entenderemos bem essa virtude, se nos lembramos de que a misericórdia do cristão deve imitar a misericórdia de Deus: Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 36).
Deus é misericordioso porque vê as nossas misérias – por dizê-lo de um modo humano – “com coração”. A palavra misericórdia significa, com efeito, “miséria” que toca o “coração”. Quer isto dizer que Deus olha para os nossos pecados, os nossos defeitos, as nossas ofensas – que não pode aprovar –, não com a dureza de um justiceiro, mas com um olhar compreensivo, compassivo e sempre predisposto ao perdão.
A pessoa misericordiosa sabe “olhar com coração”. Mas não fica só nisso. “O verdadeiro significado da misericórdia – diz João Paulo II – não consiste apenas no olhar, por mais penetrante e cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia verdadeira e própria quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem”. A misericórdia – acrescenta – é um amor “que não se deixa «vencer pelo mal», mas «vence o mal com o bem» (cf. Rom 12, 21)”11.
Retenhamos bem essas ideias: a virtude da misericórdia começa por “olhar” o outro, por “vê-lo” com um olhar “penetrante” e “cheio de compaixão”; e completa-se quando, a partir desse olhar compreensivo, nos esforçamos por tirar um bem do mal que vemos nos outros. Duas atitudes que, por si sós, já seriam um excelente programa para a paz da família.
Mas bem poucos as conseguem viver na prática.

(cont)

FRANCISCO FAUS [iii]




[i]  São Tomás de Aquino, Suma teológica, II-II, q. XXIII, art. 1, concl.;
[ii] Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, n. 73; (11) Encíclica Dives in misericordia, n. 4;
[iii] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, os títulos:
O valor das dificuldades; O homem bom; Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens; A língua; A paciência; A voz da consciência.

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