05/06/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XV

CAPÍTULO II

Os filhos da carne e os filhos da promessa.

Uma sombra certamente, uma certa imagem profé­tica desta cidade, mais sinal do que representação, viveu como escrava na Terra, no tempo em que era preciso que se manifestasse. E também ela se chamou Cidade Santa pelo facto de ser im agem significativa e não por ser a expressão verdadeira da futura cidade. Desta imagem escrava e da cidade livre de que é a imagem, fala o Apóstolo nestes termos na epístola aos Gálatas:

Dizei-me: vós que vos quereis submeter à lei, não ouvistes a lei? Está, de facto, escrito que Abraão teve dois filhos um da escrava e outro da mulher livre. Mas o da escrava nasceu segundo a came e o da mulher livre segundo a promessa. Isto é uma alegoria. Representam elas as duas alianças: uma, vinda do Monte Sinai, gera para a servidão é Agar, pois o Sinai é uma montanha da Arábia. Corresponde à Jerusalém actual que é escrava com seus filhos. Mas a Jerusalém do Alto é livre é a nossa mãe. Está na verdade escrito «alegra-te estéril, tu que não tens filhos. Clama em gritos de alegria, tu que não conheces as dores do parto porque os filhos da abandonada são muito mais do que os da que tem marido». Mas, nós, irmãos, somos, como Isaac, filhos da promessa. Mas, assim como então o que nasceu segundo as leis da came perseguiu o que nasceu segundo o espírito, assim também agora. Mas que diz a Escritura? «Expulsa a escrava e o filho pois o filho da escrava não herdará com o filho da mulher livre». Mas nós, irmãos, nós não somos filhos da escrava, mas da mulher livre. Para que sejamos livres nos libertou Cristo [i].

Esta maneira de interpretar, fundada na autoridade apostólica, abre-nos o caminho da autêntica compreensão dos dois Testamentos de que fala a Escritura — o Antigo e o Novo Testamento. Na verdade, uma parte da cidade terrestre tornou-se a imagem da cidade celeste, sem ser sinal de si própria, mas da outra — e por isso é que ela é escrava.
Pois não foi ela a razão da sua fundação, mas sim a de significar a outra — embora também a mesma cidade que prefigura tenha sido prefigurada por uma imagem anterior. Agar, a escrava de Sara, e seu filho são, com efeito, uma espécie de imagem desta imagem. E como as sombras se deviam dissipar ao surgir a luz, Sara — a livre, que significava a cidade livre, e de quem Agar, essa sombra, era a escrava para a significar de uma outra maneira — disse:

Expulsa a escrava e seu filho— porque o filho da escrava não herdará com meu filho Isaac [ii]

ou, como diz o Apóstolo,

Com o filho da mulher livre [iii].

Encontramos, portanto, duas partes na cidade terrestre: uma parte mostra-nos a sua própria presença e a outra presta o seu serviço de escrava para significar com a sua presença a cidade celeste.

A natureza viciada pelo pecado gera cidadãos da cidade terrestre — mas a graça, que liberta a natureza do pecado, gera cidadãos da cidade celeste. Donde se conclui que os primeiros se chamam «vasos de cólera» e os últimos «vasos de misericórdia». É ainda o que está significado nos dois filhos de Abraão: um, o da escrava chamada Agar, nascido de modo natural (secundum camem natus), é Ismael; o outro, o de Sara, mulher livre, nascido devido a uma promessa (secundum repromissionem natus), é Isaac. Ambos são, sem dúvida, da semente de Abraão: mas a um gerou-o ele segundo o modo habitual da natureza, e o outro resultou da promessa que significa a graça. Naquele mostra-se a maneira humana — e neste evidencia-se o benefício divino.


CAPÍTULO III

Esterilidade de Sara que, pela graça de Deus, se tom ou fecunda.

Sara era estéril e já sem esperança de descendência; mas desejava ter, pelo menos da sua escrava, o que via não poder ter de si mesma — pelo que a entregou a seu marido de quem queria gerar, mas não pudera. Por isso exigiu dele o dever conjugal (debitum) usando do seu direito em ventre alheio. Nasceu, pois, Ismael, como nascem os homens, da união de dois sexos, conforme a lei geral da natureza. Por isso se disse:

segundo a carne [iv].

Não é que estes benefícios não sejam benefícios de Deus ou que não seja Deus, cuja Sabedoria é activa, quem os realiza, como está escrito:

Alcança com vigor de um extremo ao outro e governa o Universo com suavidade [v],

— mas, para significar o dom gratuito de Deus e de modo nenhum devido aos homens, foi preciso conceder um filho fora do curso ordinário da natureza. A natureza, de facto, nega filhos à união do homem e da mulher como a que podia haver entre Abraão e Sara já naquela idade — mas também quando a mulher é estéril e não pode gerar quando lhe falta, não idade para a fecundidade, mas fecundidade para a idade. O facto de se não dever à natureza, em tais circunstâncias, o fruto da posteridade, simboliza a natureza humana viciada pelo pecado, por ele justamente condenada a não merecer para o futuro felicidade alguma.

É, pois, justificadamente que Isaac, filho da promessa, representa os filhos da graça, cidadãos da cidade livre, participantes da paz eterna em que reina, não o amor da vontade própria e, de certo modo, privada, mas o amor que goza de um mesmo bem comum e imutável e que, de um grande número faz um só coração, isto é, em que reinam em perfeito acordo a obediência e a caridade.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)



[i] Gál., IV, 21-31.
[ii] Gén., XXI, 10.
[iii] Gal., IV, 30.
[iv] Gen., X V I, 1-3.
[v] Sabed. de Salomão, VIII, 1.

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