09/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO XIII

CAPÍTULO XVI

Filósofos há que não consideram como uma pena a separação da alma e do corpo — ao passo que Platão apresenta o Deus Supremo a prometer aos deuses inferiores que não sairão dos seus corpos.

Mas os filósofos, contra cujas calúnias defendemos a Cidade de Deus, isto é, a sua Igreja, julgam-se sábios quando mofam de nós por dizermos que se deve considerar a separação da alma e do corpo com o um castigo. No seu entender a alma só, efectivamente, atinge a perfeiçãoda beatitude quando se despoja totalmente do corpo para regressar simples, só e, por assim dizer, nua, a Deus. Se não encontrasse nos seus livros com que refutar esta opinião, teria que dissertar com muito mais trabalho para mostrar que não é o corpo em si que constitui um a carga para a alma, mas sim o corpo corruptível. Daí esta frase das nossas Escrituras lembrada no livro precedente:

O corpo corruptível entorpece a alma.[i]

Ao acrescentarem corruptível (corruptibile) assinalam que não é qualquer corpo que se tornou um fardo para a alma, mas o corpo que tal se tom a em castigo do pecado. Mesmo que não o tivessem acrescentado, não poderíamos entendê-lo de modo diferente.

Mas Platão declara abertamente que os Deuses feitos pelo Deus Supremo têm corpos imortais e a este mesmo Deus, por quem foram feitos, mostra-o ele a prometer-lhes, com o um grande favor, a conservação eterna dos seus corpos sem deles se separarem por qualquer tipo de morte. Porque é então que eles, para perturbarem a fé cristã, fingem ignorar o que sabem — ou, lutando entre si, preferem falar contra si próprios contanto que não deixem de nos contradizer? Eis as palavras que Platão, como Cícero as traduziu para latim, põe na boca do Deus Supremo, dirigindo-se aos deuses que criou:

Vós que sois da raça dos deuses, reparai de que obras sou o autor e Pai! São indestrutíveis porque eu quero, apesar de ser perecível tudo o que é composto. Mas é impróprio do bem dissolver o que a razão uniu. M as uma vez que nascestes, não podeis, na realidade, ser imortais nem indissolúveis. Todavia, jamais sereis destruídos, jamais a fatalidade da morte vos suprimirá, porque não há fatalidade que se sobreponha à minha vontade que é para a vossa perpetuidade, um laço mais forte do que os destinos que desde o vosso nascimento vos formaram.

Aqui temos Platão a afirmar que os deuses são mortais pela união da alma e do corpo, mas imortais por vontade e desígnio do Deus que os criou. Se é, pois, um castigo para a alma estar aprisionada num corpo, seja ele qual for, porque é que Deus lhes fala com o que a seres inquietos com uma possível morte, isto é , com uma separação dos seus corpos e os sossega assegurando-lhes a imortalidade __ e isto, não por exigência da sua natureza composta e não simples, mas devido à sua invencível vontade, capaz de fazer com que morram os nascidos, com que se não separem os que estão unidos, mas antes se mantenhamincorruptíveis?

Se, na realidade, Platão também aplica isto aos astros __é outra questão. Não deve, em todo o caso, admitir-se, sem mais nem mais, que esses globos luminosos, essas esferas que de dia e de noite espargem sobre a terra uma luz corporal, sejam seres vivos e que cada um possua a sua alma intelectual e bem-aventurada — o que ele também afirma muitas vezes de todo o Universo, que seria como que um imenso ser vivo que contém todos os seres vivos. Mas isso, como disse, é uma outra questão que, por ora, não pretendo discutir. Apenas achei por bem citar esta passagem contra os que se apelidam e vangloriam de serem platónicos, mas que, por orgulho, têm vergonha do nome cristão, porque receiam que um título partilhado com o vulgo desonre o escol, tanto mais inchado quanto mais raro, dos que usam o pallium. Procurando na doutrina cristã alguma coisa que possam criticar, atacam a eternidade dos corpos com o se fosse contraditório entre si conseguir a beatitude da alma e pretender que esta esteja sempre no corpo, ligada como que um laço de dor. Todavia, Platão, seu fundador e seu mestre, menciona este dom concedido pelo Deus Supremo aos deuses que criou — o de jamais morrerem, isto é, de jamais serem separados dos corpos a que ele os uniu.

CAPÍTULO XVII

Contra os que afirmam não ser possível que os corpos terrestres se tom em incorruptíveis e eternos.

Pretendem estes ainda que os corpos terrestres não podem ser eternos, embora não duvidem de que a Terra inteira é o membro central e eterno de um dos seus deuses __ não o Deus Supremo, mas de um grande deus que mais não é que todo este Mundo. Efectivamente, o Deus Supremo fez-lhes o que eles julgam ser um segundo deus,
isto é, o Mundo, que lhes parece deve ser preferido aos demais deuses, seus inferiores — Mundo este que consideram como um ser animado com alma racional ou intelectual, como eles asseguram, encerrada na mole imensa do seu corpo, e que pretendem seja composto dos quatro elementos dispostos e repartidos nos seus lugares próprios como membros do seu corpo. E para evitarem que morra um tão grande deus, pretendem ainda que a união destes membros seja indissolúvel e eterna. Portanto, se a Terra, como membro central de um ser vivo maior, é eterna, porque é que os corpos dos outros seres terrestres não hão-de ser eternos, se Deus assim quiser?

Mas é à Terra, respondem eles, que deve voltar a terra de que os animais terrestres tiraram o seu corpo. É necessário, acrescentam eles, que esses corpos se dissolvam e morram para voltarem assim à Terra imutável e eterna e que foram formados. Se alguém dissesse o mesmo do fogo pretendendo que é preciso restituir ao fogo universal os corpos que dele saíram para se tornarem seres vivos estes, não ruiria, digamos que devido à violência desta discussão, a imortalidade prometida a tais deuses por Platão no discurso que atribui ao Deus Supremo? Se assim não acontece, será porque o não quer Deus, cuja vontade,
com o diz Platão, nenhum a força pode vencer? Mas então porque é que Deus não há-de poder proceder da mesma forma a respeito dos corpos terrestres já que, segundo Platão, Ele pode fazer com que não morra o que nasceu, com que se não dissolva o que está unido, com que a eles não volte o que dos elementos foi tirado, com que as almas estabelecidas nos corpos jamais abandonem os corpos e gozem com os corpos da imortalidade e da beatitude eterna? Porque é que não há-de poder fazer com que os próprios corpos terrestres não morram? Será que o poder de Deus não vai até onde crêem os cristãos, mas apenas até onde o permitem os platónicos? Não há dúvida, é bem certo, os filósofos foram capazes de conhecer os desígnios e o poder de Deus, mas os profetas, esses não! Bem ao contrário: — os profetas de Deus é que foram instruídos pelo Espírito de Deus para anunciarem a sua vontade quando lhe aprouve, ao passo que os filósofos, para o conhecerem, mais não têm que enganosas conjecturas humanas.

Não deviam deixar-se enganar, mais por contumácia do que por ignorância, a ponto de se contradizerem abertamente, ao sustentarem, com grande reforço de argumentos,

por um lado, que a alma, para se tornar bem-aventurada, deve evitar o corpo terrestre e mesmo qualquer corpo,

por outro lado, que os deuses têm almas felicíssimas,

embora eternam ente unidas a corpos: as dos deuses celestes, unidas a corpos de fogo; a do próprio Júpiter, que, para eles, é o Mundo, unida a todos- os elementos puramente corporais cuja mole, toda ela, se eleva da Terra ao Céu. Julga Platão que esta alma irradia desde a mais íntima parte central da Terra, a que os Geómetras chamam centron, e, seguindo os ritmos musicais, se estende em todas as direcções até aos mais altos confins do Céu. E assim este Mundo seria um ser animado, imenso, bem-aventurado, eterno; a sua alma possuiria a felicidade perfeita da sabedoria, sem abandonar o seu próprio corpo, este embora não simples, mas formado de corpos tão numerosos e tão grandes, viveria dela eternamente, sem poder debilitá-la ou entorpecê-la.

Mas então, se eles permitem tais conjecturas, porque é que se recusam a admitir que a vontade e o poder divinos podem tornar imortais os corpos terrestres onde as almas, sem deles se separarem pela morte nem entorpecerem pelo peso, vivam eterna e felizmente? E porque é que atribuem isso aos deuses, vivos em corpos ígneos, e ao próprio Júpiter, rei deles, vivo em todos os elementos corpóreos? Se a alma para ser feliz tem que fugir de todo o corpo — então que os seus deuses fujam dos globos dos astros, que Júpiter fuja do Céu e da Terra; ou, se eles para isso não têm poderes, então que os considerem uns desgraçados! Mas não querem nem uma coisa nem outra; não se atrevem nem a conceder aos seus deuses a separação dos corpos, para que não pareça que adoram seres mortais, nem a privar esses deuses da sua beatitude, para não terem que confessar que tais deuses são infelizes. Não é, portanto, necessário fugir de todos os corpos para se obter a beatitude, mas fugir apenas dos corpos corruptíveis, molestos, gravosos e mortais; não é necessário fugir daqueles bons como os que a bondade de Deus modelou para os primeiros homens, mas apenas fugir daqueles corruptíveis, molestos, gravosos e mortais como os que assim se tom aram em castigo do pecado.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Sab .Salomão, IX, 15.

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