Vol. 2
LIVRO XIII
CAPÍTULO XII
De que morte ameaçou Deus os primeiros homens se transgredissem o seu mandamento.
Quando, portanto, se pergunta de que morte ameaçou Deus os primeiros homens se transgredissem a ordem recebida, recusando-se a obedecer — se a da alma, a do corpo, a do homem todo ou a chamada «segunda morte» — temos que responder: todas. A «primeira» compreende duas delas, a «segunda» compreende-as todas. Assim como a Terra inteira se compõe de muitas terras e a Igreja Universal de múltiplas igrejas, assim também a morte total consta de todas. Porque a «primeira» consta de duas — a da alma e do corpo, tendo lugar esta primeira morte de todo o homem quando a alma sem Deus e sem corpo padece as penas temporalmente; porém, na «segunda», a alma, separada de Deus, mas unida ao corpo, sofre penas eternas. Portanto, quando Deus disse ao primeiro homem que tinha colocado no Paraíso, sobre o fruto proibido:
esta ameaça abrangia não apenas a primeira parte da primeira morte — em que a alma é privada de Deus; nem apenas a segunda parte dessa morte — em que o corpo é separado da alma; nem a primeira morte, toda ela — em que é punida a alma ao mesmo tempo separada de Deus e do corpo; mas todas as mortes até à última — a «segunda»
a que mais nenhuma se segue.
CAPÍTULO XIII
Primeira punição dos primeiros homens pela sua transgressão.
Logo após a transgressão do mandamento, a graça de Deus abandonou os nossos primeiros pais, que ficaram envergonhados da nudez dos seus corpos. Por isso cobriram com folhas de figueira — as primeiras, com certeza, que, na sua atrapalhação, encontraram — as regiões pudendas de que antes, embora fossem as mesmas, se não envergonhavam. Experimentavam então um novo impulso de desobediência da sua carne, como pena recíproca da sua desobediência. Porque a alma, com prazendo-se no uso pervertido da sua própria liberdade e desdenhando de estar ao serviço de Deus, ficou privada do antigo serviço do corpo, e, por ter voluntariamente abandonado o seu Senhor, não pôde reter em seu poder o escravo de que ela era senhora — e a carne deixou doravante de lhe estar submetida, como sempre deveria estar se a própria alma continuasse submetida a Deus. A carne começou então a conspirar contra o espírito e é nesta luta que nascemos, tirando da primeira falta um princípio de morte e transportando nos nossos membros e na nossa natureza viciada os assaltos ou a vitória da carne.
CAPÍTULO XIV
Em que estado foi o homem criado por Deus e até que ponto caiu por sua própria vontade.
Deus, autor das naturezas e não dos vícios, criou o homem recto, mas este, espontaneamente pervertido e justamente castigado, gerou pervertidos e castigados. É que todos estivemos naquele homem único quando todos fomos aquele homem único que foi arrastado ao pecado pela mulher que dele fora feita antes do pecado. Ainda não tinha sido criada nem distribuída a cada um de nós a forma na qual cada um de nós devia viver individualmente, mas já existia a natureza seminal de que havíamos de nascer. E estando esta corrompida pelo pecado, aprisionada nas cadeias da morte, justam ente castigada — do homem não podia nascer um homem de condição diferente. E por isso, do mau uso do livre arbítrio saiu esta série de calamidades que, por um encadeamento de desgraças, conduziu o género humano, pervertido desde a origem e como que corrompido na raiz, até ao flagelo da segunda morte que não tem fim, à excepção apenas daqueles que pela graça de Deus se libertarem.
CAPÍTULO XV
Antes de ter sido abandonado por Deus, foi o próprio Adão quem, ao pecar, abandonou Deus. A primeira morte da alma foi ter-se afastado de Deus.
Por esta razão, apesar do que está escrito:
como não está escrito «mortes» (no plural), pensamos apenas na morte que atinge a alma quando perde Deus, sua própria vida (na realidade não foi por ter sido abandonada por Deus que a alma abandonou Deus — mas por ter abandonado Deus é que Deus a abandonou. Para seu mal, é a sua vontade que se antecipa — porém, para seu bem, é a vontade de seu Criador que se antecipa, quer para fazê-la, quando nada era, quer para refazê-la, quando por sua queda perecera). Todavia, mesmo que entendamos que Deus designou esta morte ao dizer:
como se tivesse dito «no dia em que me abandonardes por desobediência, eu vos abandonarei por justiça», — certamente que nesta morte eram também designadas as outras que, sem dúvida, viriam a seguir-se. De facto, neste movimento de desobediência, que surgiu na carne de uma alma, ela própria em desobediência, por causa da qual eles tiveram de esconder as regiões pudendas, experimentaram (Adão e Eva) apenas uma das mortes — a morte em que Deus abandona a alma. É a esta morte que Deus se refere quando diz ao homem que se esconde no seu louco pavor:
Claro que não o procurava por não saber dele, mas, censurando-o, advertia-o de que reparasse se era capaz de estar onde Deus não estivesse.
Mas quando o corpo, acabrunhado pela idade e consumido pela velhice, abandonado pela alma, surge a experiência de uma outra morte, a propósito da qual Deus, ao punir o pecado, dizia ao homem:
Com estas duas mortes se completava aquela primeira morte que é a do homem todo, à qual se seguirá, no final dos tempos, a segunda, se o homem não se libertar pela graça. De facto, o corpo, que é de terra, não voltará à terra se não morrer, isto é, se não for abandonado pela alma que é a sua vida. Segue-se daí que, para os cristãos sinceramente ligados à fé católica, a própria morte do corpo não é imposta por uma lei da natureza, pois Deus não sujeitou o homem a qualquer género de morte conforme essa lei, mas com o justo castigo do pecado, quando, vingador do pecado, disse ao homem no qual então está vamos todos:
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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