Vol. 2
LIVRO XIV
CAPÍTULO XXIII
Teria havido procriação no Paraíso mesmo que ninguém tivesse pecado? Teria lá a ordem da castidade lutado contra o ardor
libidinoso?
Quem disser que não se poderiam unir nem procriar se não tivessem pecado — que mais diz senão que o pecado foi necessário para aumentar o número dos santos? Com efeito, se tivessem ficado sós por não terem pecado (pois que, como julgam, sem o pecado não podiam procriar), com certeza que, para haver, não apenas dois juntos, mas uma multidão, o pecado foi necessário. Se isto é um absurdo, deve-se antes pensar que o número dos santos preciso para encher a cidade bem-aventurada teria sido tão grande, se ninguém tivesse pecado, como o é agora que a graça de Deus o colhe da multidão dos pecadores, enquanto os filhos deste século vão procriando e sendo procriados.
Por isso as núpcias dignas da felicidade do Paraíso, se não tivesse havido o pecado, teriam gerado filhos dignos de amor e não teriam vergonha da volúpia (libido). Mas como poderia isso acontecer — não é possível mostrá-lo agora com um exemplo. Não deve, todavia, parecer incrível que só este órgão teria podia obedecer sem a volúpia à vontade à qual tantos órgãos obedecem agora. Não movemos nós as mãos e os pés, quando querem os, para os actos que se devem realizar com estes membros, sem qualquer resistência, com tão grande facilidade com o que nós admiramos tanto em nós com o nos outros, principalmente nos artífices de qualquer trabalho corporal em que a mais ágil perícia auxilia a natureza mais tarda e mais débil? E não poderem os crer que, para a obra da geração dos filhos, se não houvesse volúpia (que é o salário do pecado da desobediência), estes órgãos, tais como os outros, poderiam obedecer ao homem a um sinal da vontade? Ao tratar da diferença de governos no seu livro De republica (Da República) e ao utilizar uma imagem da natureza humana, não disse Cícero que se dão ordens aos membros do corpo como, devido à sua facilidade em obedecer, se dão ordens às crianças
—
mas que as partes viciosas da alma, essas devem ser constrangidas como escravos
a uma sujeição mais dura?
Na ordem natural a alma sobrepõe-se ao corpo; todavia, a alma tem mais fácil domínio sobre o corpo do que sobre si própria. Todavia, esta paixão libidinosa, de que agora estamos a tratar, excita a vergonha tanto mais quanto mais o espírito
nem se mostra capaz de a si próprio
se dominar eficazmente para se não deixar deleitar inteiram ente nessa paixão,
nem sobre o corpo tem pleno domínio
para que seja precisamente a vontade (e não a paixão) a excitar as regiões
vergonhosas: se assim fosse já nem seriam vergonhosas. O que agora é vergonhoso
para a alma é a resistência que lhe opõe o corpo que, por sua natureza
inferior, lhe está submetido. Quando, nas outras paixões, ele a si próprio
resiste, fica menos sujeito à vergonha porque, quando é por si vencido, a si
próprio vence. E certo que desordenada e viciosamente, já que a vitória vem das
partes que devem estar submetidas à razão. Mas no fim de contas são partes suas
e por isso, com o disse, é por si próprio vencido. Quando o espírito se vence
ordenadamente, submetendo os movimentos irracionais à mente e a razão —
contanto que, também esta, esteja submetida a Deus — então tudo é louvável e virtuoso.
Mas o espirito envergonha-se menos quando a si não obedecem as suas partes
viciosas do que quando o corpo, dele distinto e a ele inferior e que, por
natureza, sem ele não era capaz de viver, não cede à sua vontade e aos seus
comandos.
Mas quando o comando da vontade retém os outros membros, sem os quais os excitados contra essa vontade pela paixão libidinosa não podem alcançar o que desejam, guarda-se a castidade e não desaparece, embora não permitido, o prazer do pecado. No Paraíso as núpcias não
teriam esta oposição, esta repugnância, esta luta entre a vontade e a libido ou, pelo menos, esta deficiência da libido ao apelo da vontade, se a desobediência culpável não provocasse o castigo duma desobediência; esses membros obedeceriam, com o todos os outros, à vontade.
E desta forma o órgão para isso criado semearia o campo da geração como agora a mão do homem semeia a terra. O pudor impede-nos, mesmo que o quiséssemos, de tratar desta questão com mais cuidado e obriga-nos, por respeito aos ouvidos castos, a pedir escusa. Mas então nenhum motivo havia para tal e poder-se-ia falar livremente de tudo o que diz respeito a estes órgãos sem qualquer receio de obscenidade; não haveria mesmo palavras que pudessem qualificar-se de obscenas — mas tudo o que a este respeito se dissesse seria tão decente como se se tratasse de outras partes do corpo.
Quem quer que seja, portanto, que acolher estas palavras com impudica disposição, acuse-se a si próprio e não à natureza; condene a indecência dos seus actos e não as palavras de que temos necessidade. Um leitor ou ouvinte pudico e religioso me perdoa tais palavras facilmente quando refuto a infidelidade baseando a minha argumentação, não em crenças sem fundamento, mas na experiência dos sentidos. Lerá isto sem se escandalizar aquele que não receia ouvir o Apóstolo condenar o crime abominável das mulheres que
— tanto mais que, por agora, não mencionamos nem condenamos, como ele, um a obscenidade condenável, mas ao explicarmos, o melhor que nos foi possível, os efeitos da procriação humana, evitamos, como ele, as frases obscenas.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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