Vol. 2
LIVRQ XIV
CAPÍTULO III
A causa do pecado está na alma e não na carne — e a corrupção contraída pelo pecado não é um pecado, mas um castigo.
Se alguém disser que a carne é a causa de todos os vícios porque a alma revestida de carne vive nos maus costumes, mostra claramente que não presta atenção a toda a natureza do homem. Certamente que,
É por isso que o mesmo Apóstolo, ao falar deste corpo corruptível de que, pouco antes, tinha dito:
acrescenta:
Sabemos que, se a nossa casa terrestre de habitação for destruída,
Deus nos dará nos céus uma morada eterna que não é feita pelas mãos do homem. E
certo que nesta gememos e desejamos taparmo-nos numa casa que vem do céu, na certeza
de que ao abandonarmos a presente, não ficaremos destapados, mas abrigados.
Enquanto nos mantivermos na presente habitação, gemeremos acabrunhados porque
não queremos dela ser espoliados mas abrigados, para que o que é mortal seja absorvido pela vida.[iii]
Somos, pois, sobrecarregados pelo
corpo corruptível e sabendo que a causa desta carga não é a natureza e a substância
do corpo, mas a sua corrupção, nós não queremos ser despojados do corpo, mas
revestidos da sua imortalidade. Ele permanecerá então, mas, porque já não é
corruptível, não nos sobrecarregará. Agora, pois,
o corpo corruptível entorpece a alma e a terrena casa de habitação acabrunha a mente ao peso de múltiplos pensamentos.[iv]
Estão, por conseguinte, em erro todos os que pensam que todos os males da alma provêm do corpo.
Embora, de facto, pareça que Vergílio exprimiu o pensamento platónico ao dizer nestes elegantes versos:
Têm um vigor de fogo e uma origem celeste
Enquanto de nocivos corpos cativos não estão
e, querendo dar a entender que todas estas perturbações tão conhecidas da alma — o desejo, o temor, a alegria e a tristeza — , a bem dizer como fonte de todos os vícios e pecados, procedem do corpo, acrescente:
Por isso desejam, padecem e gozam, por isso não vêem a luz do Céu,
encerradas nas trevas de negro cárcere.[vi]
- todavia, a nossa fé comporta-se de forma diferente. É que a corrupção do corpo que entorpece a alma não é a causa, mas sim o castigo do primeiro pecado. E não foi a carne corruptível que tornou pecadora a alma, mas foi a alma pecadora que tornou o corpo corruptível.
Embora existam, procedentes da carne, certos impulsos para o vício e até desejos viciosos — não se devem apesar disso atribuir à carne todos os vícios de um a vida iníqua, não se deve limpar de todos eles o Diabo, que não tem carne. Não há dúvida de que se não podem atribuir ao Diabo a fornicação, a embriagues e outros males semelhantes que tenham relação com os prazeres da carne, mesmo quando é ele o conselheiro e o instigador oculto de tais pecados. Todavia, é, no mais alto grau, orgulhoso e invejoso. E a tal ponto esta perversidade dele se assenhoreou que, por causa dela, foi destinado ao suplício eterno nas prisões do ar tenebroso.
Estes vícios que prevalecem no Diabo, atribui-os o Apóstolo à carne que o Diabo com certeza não tem. Diz, efectivamente, que as inimizades, as dissensões, as emulações, as animosidades, as invejas, são obras da carne. Mas a origem e cabeça de todos estes males é a soberba que sem a carne impera no Diabo. Quem mais do que ele é inimigo dos santos? Quem contra eles é mais obstinado, mais animoso e mais hostil e mais invejoso? Sem ter carne possui todos os vícios. Porque serão então obras da carne senão porque são obras do homem a quem, como disse, ele dá o nome de «carne»? Não é, pois, por ter um a carne (que o Diabo não tem), mas por ter querido viver em conformidade consigo próprio, isto é, conforme o homem, que o homem se tornou semelhante ao Diabo. Também este quis viver em conformidade consigo próprio quando se não manteve na verdade, de forma que, ao mentir, não falou da parte de Deus, mas de si, que não é apenas mentiroso, mas também pai da mentira. Foi o primeiro a mentir e, sendo o primeiro a pecar, foi o primeiro a mentir.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.