08/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS

Vol. 2


LIVRO X

CAPÍTULO XXX

Doutrinas de Platão refutadas e corrigidas por Porfírio.

Se, depois de Platão, se considera indigno corrigir-lhe qualquer opinião, porque é que o mencionado Porfírio lhe emendou algum as — e não de pouca monta? É questão totalmente certa que Platão escreveu que, após a morte, as almas dos homens voltam para os corpos, mesmo dos animais. Também Plotino, mestre de Porfírio, sustenta a mesma opinião: mas Porfírio, e com razão, rejeitou-a. É certo que admitiu o regresso das almas humanas, mas aos corpos de homens, não dos que elas tinham abandonado, mas a corpos novos. Envergonhava-se com certeza de aceitar aquela opinião: não admitia que uma mãe, regressada talvez ao corpo de uma mula, servisse de montada a seu filho; mas não se envergonhava de admitir isto: que uma mãe tornada jovem poderia, porventura, casar com o filho. Quão mais decente não será acreditar no que nos ensinaram os santos e verídicos anjos, no que nos disseram não só os profetas, animados do Espírito de Deus, mas também Aquele que os seus enviados anunciaram como sendo o Salvador que havia de vir, e ainda os apóstolos, seus enviados, que encheram a orbe da Terra com o Evangelho: quão mais decente, repito, não será acreditar no regresso, uma só vez, de cada alma ao corpo que lhe é próprio, do que todos esses regressos a corpos diferentes. Todavia, como disse, Porfírio emendou grande parte esta opinião ao sustentar que as almas humanas não podem cair senão nos corpos humanos, suprindo sem a menor hesitação as prisões animais.

Diz ele ainda que Deus concedeu uma alma ao mundo para que, conhecendo os males provenientes da matéria ela regresse ao Pai e fique liberta para o futuro das máculas de semelhante contacto. Há nisto com certeza algo de errado (pois a alma foi antes conferida ao corpo para fazer o bem; realmente, ela não chegaria a conhecer o mal se o não praticasse); mas Profírio corrigiu essa opinião dos outros platónicos, e não em pormenor de pouca monta, ao reconhecer que, uma vez purificada de todos os males e estabelecida com o Pai, a alma já não sofreria mais os males deste mundo. Não há dúvida de que, desta maneira, arruinou a doutrina eminentemente platónica, de um círculo perpétuo da morte à vida e da vida à morte. Mostra ainda a falsidade do que, à maneira platónica, disse Vergílio: que as almas enviadas após a sua purificação aos Campos Elíseos (nome que, segundo a fábula, parece designar as alegrias dos bem-aventurados) são levadas ao rio Letes, isto é, ao esquecimento do passado

para que afastadas de toda a recordação, olhem de novo para a abóbada celeste e comecem a querer voltar aos corpos.[i]

Tem razão Porfírio em afastar esta doutrina; é realmente uma loucura acreditar que nessa vida — que só será totalmente feliz se estiver absolutamente certa da sua eternidade — as almas desejam a ignomínia de corpos corruptíveis e se voltam para eles como se a purificação suprema tivesse por efeito voltar ao gosto da impureza. Se, realmente, a purificação perfeita produz o esquecimento de todos os males e se este esquecimento desperta o desejo dos corpos, onde de novo se enredam em males, então será certo que a suma felicidade se torna causa de infelicidade, a perfeita sabedoria causa de estultícia, a suprema purificação causa de imundícia.


E não será com a verdade que a alma será feliz, (seja qual for o tempo em que ela feliz for), se, para ser feliz, tem que ser enganada. Realmente, ela não será feliz se não se sentir em segurança; mas para se sentir em segurança, ela terá de crer na sua felicidade eterna falsamente, pois um dia voltará a ser infeliz. Aquele que tem a felicidade como causa do seu regozijo, como pode regozijar-se com a verdade? Porfírio bem o viu e disse que a alma purificada volta ao Pai para não ser dominada nunca mais com o poluído contacto dos maus. Enganaram -se, pois, alguns platónicos ao acreditarem nesse círculo, a bem dizer fatal, em que cada um do mesmo se afasta para ao mesmo voltar. Ainda que isto fosse verdade, que interesse haveria em sabê-lo? A não ser que os platónicos tenham a ousadia de se considerarem superiores a nós, porque nós ignoramos, já nesta vida, o que eles, com toda a sua purificação e sabedoria, estavam destinados a ignorar na outra vida melhor, ao encontrarem a felicidade na falsidade. Se isto constitui o maior dos absurdos e a maior das loucuras, evidentemente que a opinião de Porfírio deverá preferir-se à dos que imaginaram estes círculos das almas em que alternam perpetuamente a beatitude e a miséria. Se isto é assim, eis que temos um platónico que discorda, para
melhor, de Platão; eis um que viu o que este não viu. Tendo vindo depois de um tão grande mestre, não hesitou em corrigi-lo: ao homem preferiu a verdade.


CAPÍTULO XXXI

Contra o argumento dos platónicos de que a alma humana é coeterna com Deus.

Porque é então que, nestas questões que não podemos investigar com o engenho humano, não preferimos confiar na divindade que nos diz que a alma não é coeterna com Deus, mas foi por Ele criada, pois não existia? Para recusarem um tal acto de fé os platónicos apresentam esta razão que julgam pertinente: se um ser não foi sempre no passado, não poderá no futuro existir para sempre. Embora ao escrever acerca do mundo e dos deuses criados no mundo por Deus, Platão afirme com toda a clareza que eles começaram a existir e tiveram um começo, diz, todavia, que fim é que não terão, mas, por vontade omnipotente do seu autor, permanecerão no ser eternamente. Mas o certo é que eles têm a sua m aneira de compreender: não se trata de um começo de um tempo, mas de um começo de uma substituição. Dizem eles:

«Realmente, se um pé sempre se mantiver, desde toda a eternidade, sobre o pó, desde sempre estará debaixo dele a sua pegada (e ninguém duvida de que a pegada foi feita por quem pousou o pé, mas esta não terá existido antes do pé, muito embora tenha sido provocada por ele); pois, — dizem eles — também o mundo e os deuses no mundo sempre existiram, como sempre existiu quem os fez (e todavia foram feitos)».

Então, se a alma existiu sempre, teremos que dizer que também a sua infelicidade existiu sempre? Mas se algo nela não é eterno, começou a existir no tempo, porque será impossível que ela, sem ter existido antes, tenha começado a existir no tempo? Além disso a sua felicidade — está destinada também a fortalecer-se com a experiência dos males e a persistir sem fim — como ele (Porfírio) confessa, «não há dúvida de que começou a existir no tempo e sempre existirá sem antes ter existido. Assim se esboroa toda esta argumentação segundo a qual não poderia existir sem fim no tempo senão o que não teve começo no tempo. Não será o caso da felicidade da alma que, tendo princípio no tempo, não terá fim?

Ceda, pois, a fraqueza humana à autoridade divina! E, acerca da verdadeira religião, acreditemos nos seres bem-aventurados e imortais que não reclamam para si as honras só devidas, eles bem o sabem, ao seu e também nosso Deus; eles não nos ordenam que ofereçamos sacrifí­cios senão Àquele de quem nós, também com eles, como já tantas vezes disse e não será de mais repetir, devemos ser o sacrifício; e esse sacrifício devemos oferecê-lo por intermédio do sacerdote que, no homem assumido por Ele, no qual também Ele quis ser sacerdote, se dignou tornar-se sacrifício mesmo até à morte por nós.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, VI, 750-751.

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