Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO XIV
Em que sentido é que se diz do Diabo que não se manteve na verdade porque a verdade não está nele?
Como se nós tivéssemos perguntado porque não permaneceu o Diabo na verdade?, deu-nos o Senhor um sinal:
Porque a verdade não está nele.
Ora ela estaria nele se ele nela se mantivesse. Mas é uma forma pouco usual de se exprimir: porque
não se manteve na verdade porque a verdade não estánele,
parece querer dizer que o facto de não ter nele a verdade é a causa de ele nela se não manter; quando é antes o facto de nela se não ter mantido a causa por que ele não tem em si a Verdade. Esta expressão encontra-se no Salmo:
como se dissesse, parece, Tu atendeste-me, Deus meu, porque chamei. Mas, depois de ter dito clamavi (clamei), o Salmista, como se lhe tivessem perguntado como reconhecer que foste atendido por Deus?, mostra a sinceridade do seu clamor pelo seu efeito de ter sido atendido por Deus; com o se dissesse:
a prova de que chamei é que tu me atendeste.
CAPÍTULO XV
Que pensar desta expressão O Diabo peca desde o começo?
Aquilo que João diz acerca do Diabo:
não o compreendem os herejes pois que, se tal é a sua natureza, já não há pecado algum. Mas que responder aos testemunhos proféticos,
quer o de Isaías designando o Diabo sob a figura de
príncipe de Babilónia:
quer o de Ezequiel:
Não dão eles a entender que esteve algum tempo sem pecado? Um pouco mais adiante, de facto, diz-se dele mais expressivamente:
Se a estas palavras se não pode dar uma melhor interpretação, a frase não se manteve na verdade,[vi]
deve compreender-se assim: ele esteve na verdade, mas não se manteve nela. E a frase
não significa que ele pecou desde o princípio da criação, mas desde o começo do pecado, neste sentido de que foi pelo seu orgulho que o pecado começou.
E o que disse Job acerca do Diabo no livro em que está escrito:
(com o que concorda o que se lê no Salmo:
não se deve entender que Deus o criou desde o princípio para ser objecto de troça dos seus anjos, mas que, depois de ter pecado, Deus o sujeitou a esse castigo. O seu primeiro começo é obra do Senhor; realmente, nenhum a natureza existe, mesmo no último e mais pequeno dos insectos de que não seja autor Aquele de quem procedem toda a medida, toda a beleza, toda a ordem , sem as quais nada se pode encontrar nem conceber, entre as coisas:
quanto mais assim não é para a criatura angélica que se eleva, pela dignidade da sua natureza, acima de todas as outras obras que Deus fez!
CAPÍTULO XVI
Graus e diferenças entre as criaturas consideradas diversamente, conforme a sua utilidade ou a ordem da razão.
Entre os seres que de algum modo são, mas não são o mesmo que é Deus que os fez, colocam -se os vivos acima dos não vivos, e os que têm capacidade de gerar ou mesmo de apetecer acima dos que carecem deste impulso. Entre os vivos, os que possuem sensibilidade prevalecem sobre os que a não têm, tais com o os animais sobre as árvores. D entre os que sentem, prevalecem os inteligentes sobre os não inteligentes, tais com o os homens sobre os animais. Dentre os inteligentes prevalecem os imortais sobre os mortais, tais com o os anjos sobre os homens. Esta ordem de preferência é a da natureza. Mas há outra ordem de apreciação fundada sobre o uso particular que fazemos de cada um dos seres. Assim, colocamos alguns que carecem de sensibilidade antes de outros que dela são dotados e de tal forma que, se estivesse em nosso poder, os eliminaríamos da natureza, quer porque ignoramos o lugar que nela ocupam quer porque, conhecendo-o embora, os subordinamos aos nossos interesses. Quem não prefere ter pão a ratos em casa? Dinheiro a pulgas? Mas que admira se, mesmo quando se trata de avaliar homens cuja natureza é de tamanha dignidade, se compra muito mais caro um cavalo do que um escravo, mais caro uma pedra preciosa do que um a escrava! Assim, a liberdade de apreciação estabelece um a grande diferença entre as reflexões da razão e a necessidade do indigente ou o prazer do desejoso. A razão considera o que vale uma coisa no seu grau de ser; a necessidade o que um a coisa espera da outra. A razão busca o que se mostra verdadeiro à luz da mente; o prazer vê o que há de agradável e de lisonjeiro para os sentidos. Todavia, nas naturezas racionais a vontade e o amor têm, por assim dizer, tão grande peso que, apesar da superioridade dos anjos sobre os homens, segundo a ordem da natureza, os homens virtuosos se antepõem aos anjos maus segundo a lei da justiça.
CAPÍTULO XVII
O vício da malícia não pertence à natureza mas é contra a natureza. Não foi o Criador mas a vontade a causa que levou a natureza a pecar.
Num a interpretação correcta, a frase
refere-se à natureza e não à malícia do Diabo. Porque
uma malícia que vicia supõe indubitavelmente um a natureza anterior não viciada. Mas o vício é de tal modo contra a natureza que só pode ser nocivo à natureza. Não seria, portanto, um vício separar-se de Deus se, para a natureza de que esta separação constitui um vício, não fosse melhor estar unido a Deus. É por isso que mesmo a vontade má presta poderoso testem unho a favor da natureza boa. Mas Deus, assim com o é o criador excelente das naturezas boas, assim é também o ordenador justíssimo das vontades más. E quando estas abusam, para o mal, das naturezas boas, serve-se mesmo das naturezas más para o bem. Fez, portanto, com que o Diabo, bom pela sua criação, mau pela sua vontade, fosse atirado para o grupo dos seres inferiores para ser entregue às mofas dos seus anjos, no sentido de que os santos tirem proveito das próprias tentações pelas quais ele procurava ser-lhes nocivo. Ao criá-lo, Deus não ignorava a sua malícia futura e previa todo o bem que do mal tiraria: foi por isso que o salmista disse:
para mostrar que, no preciso momento em que o criou
— criando-o bom por causa da sua vontade — nos dava a
entender que já tinha preparado, graças à sua presciência, os meios de tirar proveito mesmo do mal.
entender que já tinha preparado, graças à sua presciência, os meios de tirar proveito mesmo do mal.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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