Vol. 2
LIVRO X
CAPÍTULO IX
Segundo os testemunhos divinos, que pensar da
criação dos anjos?
E agora — já que empreendi falar da origem da Cidade Santa, e, em primeiro lugar, do que toca aos santos anjos que dela formam um a parte considerável e tanto mais feliz quanto ela jamais foi peregrina — vou, com a ajuda de Deus e na medida em que me parecer necessário, explicar os testemunhos divinos referentes ao assunto.
Quando falam da criação do Mundo as Sagradas Escrituras não referem claramente se os anjos foram criados, nem por que ordem. Mas, se não foram esquecidos, é a palavra Céu, na passagem em que está escrito
ou antes a luz, de que acabo de falar, que os designa. Aliás, eu não creio que eles tenham sido omitidos porque, está escrito, no sétimo dia Deus descansou de todos os seus trabalhos. Mas o livro começa assim:
No princípio fez Deus o Céu e a Terra,
de maneira que, parece, Deus mais nada fez antes do Céu e da Terra. Se, então, começou pelo Céu e pela Terra; se a Terra, a primeira coisa- que fez, era, como a seguir refere a Escritura, invisível e desorganizada; se, por falta de luz, as trevas se estendiam sobre o abismo, isto é, sobre a confusão da massa indistinta de terra e água (porque sem não pode haver senão trevas); se, finalmente, foram criadas e organizadas todas as coisas que se descrevem como acabadas em seis dias — com o é que os anjos iam ser omitidos entre as obras de Deus que descansou ao sétimo dia?
Não há dúvida de que os anjos são obra de Deus. Embora isso não esteja claramente expresso, não foi, porém, omitido. Testemunha-o com toda a clareza, noutro lugar, a Escritura Sagrada. No hino dos três homens na fornalha, depois de ter dito:
nomeia também os anjos entre as suas obras — e canta-se no Salmo:
Louvai ao Senhor no alto dos céus — louvai-o nas alturas; Louvai-os, vós, todos os seus anjos — louvai-o todas as suas Virtudes; Louvai-o, Sol e Lua — louvai-o, luz e todas as estrelas; Louvai-o, vós, céus dos céus, e as
águas que estão acima dos céus — louvem o nome do Senhor; Porque ele falou — e as coisas se fizeram; Ele ordenou — e as coisas foram criadas [iii].
Ainda aqui o declara abertamente a palavra divina: os anjos foram feitos por Deus pois que, depois de os ter nomeado entre as outras realidades celestes, a todos encerra nestas palavras:
Quem ousará, então, sustentar que os anjos foram feitos depois de todas as obras enumeradas no decurso dos seis dias? Mas se alguém chegar a este ponto de insensatez, tão vã opinião ficará refutada pela autoridade da mesma Escritura onde Deus diz:
Portanto, os anjos já existiam quando foram criados os astros. Ora estes foram-no ao quarto dia. Diremos, então, que foram criados ao terceiro? Claro que não. Sabemos muito bem o que nesse dia foi feito: a terra foi separada das águas, cada um destes elementos recebeu as espécies que lhes convinham e a terra produziu tudo o que nela cria raízes. Seria, porventura, no segundo? Também não. Nesse dia foi feito o firmamento entre as águas do alto e de baixo, dando-se-lhe o nome de Céu; e no firmamento foram criados os astros ao quarto dia. E, pois, claro que se eles se encontram entre as obras que Deus fez em seis dias, os anjos são essa luz que recebeu o nome de dia; e foi para marcar a unidade que se não disse o primeiro dia, mas sim um dia. Porque o segundo, o terceiro e os seguintes não são outros, mas o mesmo dia único repetido para constituir o número seis ou sete, em vista de um conhecimento senário ou septenário — o senário relativo às obras que Deus fez e o septenário relativo ao repouso de Deus.
Quando, relam ente, Deus disse:
— se é justo ver nesta luz a criação dos anjos, é porque certamente eles foram feitos participantes da luz eterna que é a sabedoria imutável do próprio Deus por quem tudo foi feito e a quem chamam os o Filho único de Deus. Assim, eles foram iluminados por esta luz que os criou e desde então eles tornaram-se luz e chamaram-se dia por causa da sua participação na luz e dia imutável que é o Verbo de Deus por quem eles e todas as coisas foram criadas. Porque
ilumina também todo o anjo puro para que seja luz não em si próprio, mas em Deus. E se o anjo se afasta de Deus, torna-se impuro, com o são todos os espíritos chamados impuros que já não são luz no Senhor, mas eles próprios trevas, privados da participação da eterna luz. O mal, com efeito, não é um a natureza: a perda do bem é que recebe
o nome do mal.
CAPÍTULO X
Trindade simples e imutável de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo que são um só Deus, em quem as qualidades outra
coisa não são que a substância.
Não há, pois, senão um bem simples e, consequentemente, senão um bem imutável — Deus. E este bem criou todos os bens que, não sendo simples, são, portanto, mutáveis. Digo, precisamente, criou, isto é, fez, e não gerou. É que o que é gerado de um ser simples é simples como ele e é o mesmo que aquele que o gerou. A estes dois seres chamamos Pai e Filho e um e outro com o seu Santo Espírito são um só Deus. A este Espírito do Pai e do Filho se chama nas Sagradas Escrituras Espírito Santo por uma espécie de apropriação deste nome. E, porém, distinto do Pai e do Filho, pois não é nem o Pai nem o Filho. Disse que é distinto mas não outra coisa, porque também Ele é igualmente simples, igualmente imutável e coeterno. E esta Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser Trindade. Não dizemos que esta natureza do bem é simples porque nela está só o Pai, só o Filho, só o Espírito Santo;
ou ainda porque a Trindade é apenas um ser sem nenhuma subsistência de Pessoas, com o julgaram os herejes sabelianos mas chama-se simples porque o que ela tem isso é salvo que cada pessoa se diz pessoa em relação a cada um a das outras duas. Pois, com certeza que o Pai tem um Filho mas não é o Filho; o Filho tem um Pai mas não é o Pai. Assim, pois, considerado em si mesmo e não em relação com o outro, Deus é o que tem: com o se diz vivo em relação a si mesmo porque tem evidentemente a vida e essa vida é Ele próprio.
É por isso que se chama simples a natureza que nada tem que possa perder; ou é simples a natureza em que aquele que tem se identifica com aquilo que tem. Assim, o vaso tem o licor, o corpo a cor, o ar a luz ou o calor, a alma a sabedoria. Mas nenhum a destas coisas é o que tem. Nem o vaso é o licor, nem o corpo é a cor, nem o ar é a luz ou o calor, nem a alma é a sabedoria. Por conseguinte, podem ser privados das coisas que têm: podem mudar e podem transformar-se em outras disposições ou qualidades: o vaso pode ficar vazio do líquido de que estava cheio, o corpo pode perder a cor, o ar pode escurecer ou arrefecer, a alma pode tresloucar-se. Embora o corpo seja, após a ressurreição, incorruptível, com o foi prometido aos santos, mantendo, na verdade, a qualidade duma inamissível incorruptibilidade — o certo é que, mantendo-se a substância corporal, o corpo e a incorruptibilidade não são a mesma coisa.
Na realidade, a incorruptibilidade está toda em cada uma das partes do corpo — nem maior aqui, nem menor ali —, porque nenhum a parte é mais incorruptível do que a outra. Na verdade, o corpo é maior no todo do que a parte; e se um a parte é maior e a outra é menor, nem por isso a maior é mais incorruptível. Uma coisa é o corpo que, em si, não está todo inteiro em qualquer das suas partes, outra coisa a incorruptibilidade que em qualquer das partes está inteiram ente. Porque toda a parte incorruptível do corpo, ainda que desigual às demais, e igualmente incorruptível. O dedo, por exemplo, é mais pequeno do que a mão toda. Todavia, a mão não é mais incorruptível do que o dedo. Embora sejam desiguais a mão e o dedo, é, todavia, igual a incorruptibilidade da mão e do dedo. Por isso, embora a incorruptibilidade seja inseparável de um corpo incorruptível, uma coisa é a substância que o faz chamar corpo, outra é a qualidade que o faz chamar incorruptível. E, por isso, mesmo nesse estado, ele não é o que tem. A própria alma, mesmo que fosse sempre sábia — com o quando for libertada para a eternidade — será sábia pela participação da imutável sabedoria que não é ela própria. Pelo facto de, na realidade, o ar se não ver quando privado da luz que o penetra, nem por isso se poderá negar que um a coisa é o ar e outra a luz que o ilumina. Com isto não pretendo dizer que a alma é um a espécie de ar, como pretenderam alguns, incapazes de conceber uma natureza incorpórea. A alma e o ar, todavia, apesar da sua grande diferença, têm uma certa semelhança e é permitido dizer que a alma incorpórea é iluminada pela luz incorpórea da Sabedoria simples de Deus, com o o ar corporal é iluminado pela luz corporal. E com o o ar privado da luz escurece (porque o que chamamos trevas, seja em que lugar corporal for, nada mais é do que o ar privado de luz), assim obscurece a alma privada da luz da Sabedoria.
Portanto, nesta ordem de ideias, chamam-se simples as perfeições que, por excelência e na verdade, constituem a natureza divina: porque nelas não é a substância uma coisa e a qualidade outra coisa — nem é pela participação em qualquer outra coisa que elas são a divindade, a sabedoria ou a beatitude. É certo que nas Sagradas Escrituras se diz múltiplo o Espírito de Sabedoria — mas isso é porque Ele encerra em si muitas coisas: mas Ele é o que tem e tudo o que tem é apenas Ele. A Sabedoria não é múltipla mas una, e nela existem tesouros infinitos — para ela finitos — de coisas inteligíveis contendo todas as razões invisíveis e imutáveis dos seres, mesmo visíveis e mutáveis que por ela foram feitos. Porque Deus nada fez sem disso Se aperceber — o que, na verdade, de nenhum artífice humano se pode dizer. Mas se tudo fez conscientemente Ele não fez, evidentemente, senão o que já antes tinha conhecido. Daí ocorrer ao nosso espírito algo de maravilhoso, mas realmente verdadeiro: para nós este M undo não poderia ser conhecido se não existisse — mas para Deus, se não fosse conhecido, não poderia existir.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.