09/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO VI

CAPÍTULO II

Opinião de Varrão acerca do culto e espécies de deuses dos gentios. Teria sido mais reverente se se calasse, em vez de revelar o que revelou.

Quem mais aturadamente do que Marco Varrão fez investigações sobre esta matéria? Quem fez mais sábias descobertas? Distinções mais perspicazes? Quem tão cuidadosamente, tão completamente, as descreveu? Embora de estilo bastante desagradável, é tão rico de doutrina e de pensamentos que, em todas as ordens do saber a que nós chamamos secular e eles liberal, ele instrui o homem afei­çoado a estas matérias tão bem como Cícero encanta o afeiçoado às questões de estilo. Aliás, o próprio Cícero dá dele este testemunho, ao afirmar que a discussão tratada nos Académicos a teve com Marco Varrão,

o homem entre todos o mais arguto e, sem sombra de dúvida, o mais sábio [i].

Não lhe chama «o mais eloquente» nem «o mais elegante», porque, na verdade, sob este aspecto, Varrão é bastante inferior; chama-lhe antes «sem sombra de dúvida o mais arguto» e, nos mesmos livros dos Académicos, onde trata de pôr em dúvida todas as doutrinas, ele acrescenta «sem sombra de dúvida o mais sábio». Realmente, acerca deste ponto estava tão seguro que afasta toda a dúvida que costuma mostrar em todas as questões e, ao pleitear a favor da dúvida académica, apenas em relação a Varrão se esquece de que é um académico. No primeiro livro, ao elogiar as obras literárias de Varrão, diz:

Quando deambulávamos errantes na nossa própria cidade como estrangeiros, foram os teus livros que, de certo modo, nos levaram a casa e nos permitiram finalmente reconhecer quem éramos e onde estávamos. Foste tu quem nos deu a conhecer a idade da pátria, a distribuição dos tempos, os direitos da religião e os do sacerdócio; as regras da vida privada e as da vida pública; a situação das regiões e dos lugares; os nomes, as espécies, as funções e as causas de todas as coisas divinas e humanas [ii].

Ora este varão de tão insigne e excelente saber e de quem Terenciano disse, em verso tão elegante como conciso:

Varrão, o mais sabedor seja do que for [iii],
este varão que tanto leu que pasmamos que tenha tido vagar para escrever; e que tanto escreveu que dificilmente acreditamos que haja alguém capaz de tudo ler — este varão, digo eu, de tamanho talento e saber, se tivesse sido o adversário e o destruidor das coisas a que se dá o nome de divinas e as quisesse apresentar não como respeitantes à religião, mas antes à superstição, não sei se conseguiria amontoar tanta coisa digna de troça, desprezo e abominação como o que escreveu. Todavia, ele venerava esses mesmos deuses e considerava o seu culto imprescindível, a ponto de declarar na sua obra que receava vê-los perecer, não devido a ataques dos inimigos, mas devido antes à   indiferença dos cidadãos. É desta ruína que ele pretende salvá-los, evocando-os nos seus livros e gravando-os na memória dos homens; crê ser-lhes assim mais útil do que Metelo o foi ao salvar do incêndio a estátua de Vesta ou do que Eneias ao salvar os seus penates da destruição de Tróia. E, não obstante, transmitiu à posteridade, para leitura, coisas que tanto sábios como ignorantes julgam dignas de rejeição e totalmente contrárias à verdadeira religião. Que devemos pensar, então, senão que um homem tão sagaz e tão hábil, mas ainda não libertado pelo Espírito Santo, estava subjugado pelos costumes e leis da sua cidade, e, todavia, se recusava a esconder o que o perturbava sob o pretexto de enaltecer a religião?

CAPÍTULO III

Plano dos livros de Varrão acerca das Antiguidades das coisas humanas e divinas.

Escreveu quarenta e um livros acerca das Antiguidades, dividindo-os em vinte e cinco livros sobre as coisas humanas e dezasseis sobre as divinas. Seguiu nesta distribuição o seguinte método:

As coisas humanas tratou-as em quatro partes, dedicando seis livros a cada uma. Tem por objecto os que agem, onde agem, quando actuam e o que fazem. Nos seis primeiros livros escreveu acerca dos homens; nos seis seguintes, acerca dos lugares; nos outros seis acerca dos tempos; e nos quatro últimos, acerca das coisas. Quatro vezes seis são, pois, vinte e quatro. No início da obra colocou um livro especial, que serve de introdução geral.

Nas coisas divinas mantém a mesma sistematização no que respeita ao culto devido aos deuses; de facto, as coisas sagradas são celebradas pelos homens em lugares e tempos próprios. E a cada um destes quatro assuntos dedica três livros: nos três primeiros, trata dos homens; nos que se seguem, dos lugares; no terceiro grupo, acerca dos tempos; e no quarto grupo, das coisas sagradas — fazendo sobressair, com subtil distinção, quem celebra, onde as celebra, quando e em que consistem. Como, porém, era preciso que dissesse (e era isso que especialmente se esperava dele) a quem se devia prestar culto, compôs os três últimos livros sobre os próprios deuses — o que (cinco vezes três) perfaz quinze livros. Desta maneira, como dissemos, são no total dezasseis, já que os fez preceder de um especial, que trata de tudo na generalidade.

Terminado este livro especial, segundo a sua sistematização, dividem-se assim os três do primeiro grupo acerca dos homens: o primeiro trata dos pontífices; o segundo, dos áugures; o terceiro, dos quindecênviros. Os do segundo grupo, consagrados aos lugares, tratam: o primeiro, dos templetes (de sacellis); o segundo, dos templos; o terceiro, dos lugares sagrados. Os do terceiro grupo, consagrado aos tempos, isto é, aos dias festivos, tratam: o primeiro, das festividades; o segundo, dos jogos do circo; o terceiro, das representações teatrais. Os do quarto grupo, consagrado às coisas sagradas, tratam: o primeiro, das consagrações; o segundo, dos sacrifícios privados; o terceiro, dos sacrifícios públicos. Como que fechando esta espécie de aparatosa procissão, nos três livros que restam vêm os próprios deuses, destinatários de todo este culto, tratando: o primeiro destes livros, dos deuses certos; o segundo, dos deuses incertos; o terceiro e último, dos deuses principais e escolhidos.

CAPÍTULO IV

Resulta da dissertação de Varrão que os adoradores dos deuses consideram as instituições humanas anteriores às instituições divinas.

Ao longo de todo este belíssimo e tão subtil encadeamento de divisões e distinções, é vão procurar e muito imprudente desejar ou esperar encontrar a vida eterna; como ressalta do que já dissemos e do que temos ainda para dizer, é isto uma verdade que salta aos olhos de quem quer que seja que, por obstinação do coração, não se volte contra si próprio. Porque se trata de instituições que emanam dos homens ou dos demónios e não dos bons demó­nios, como eles lhes chamam, mas antes, falando mais claramente, de espíritos imundos, indubitavelmente maléficos. São eles que, com surpreendente inveja e ocultamente, insinuam no pensamento dos ímpios opiniões perniciosas, que, debilitando cada vez mais a alma humana, a tornam incapaz de se adaptar e de se unir à imutável e eterna verdade; e por vezes as sugerem abertamente aos próprios sentidos e as confirmam com falsos testemunhos ao seu dispor.

Este Varrão é ele próprio quem confessa ter tratado primeiramente das coisas humanas e em segundo lugar das divinas pela simples razão de que foram as cidades o que primeiro existiu e depois é que estas criaram a religião. Mas o certo é que a verdadeira religião não provém de cidade alguma terrena. É ela precisamente que dá origem à cidade celeste. Quem inspira esta cidade e é seu mestre é o Deus verdadeiro que concede a vida eterna aos seus adoradores.

Varrão reconhece, portanto, que das coisas humanas tratou em primeiro lugar e só em seguida das divinas, porque as divinas foram estabelecidas pelos homens; e eis a explicação que ele dá disto:

Da mesma forma que o pintor existe antes do quadro e o arquitecto antes do edifício, assim também as cidades precedem as instituições que criam.

Acrescenta que teria escrito primeiro acerca dos deuses e depois acerca dos homens, se tivesse que tratar de toda a natureza dos deuses — como se, na sua obra, ele não tivesse escrito senão acerca de uma parte desta natureza e não acerca dela toda, ou como se a natureza dos deuses, mesmo incompleta, não devesse ter a prioridade sobre a dos homens!

De resto, nos seus três últimos livros, em que cuidadosamente estuda os deuses certos, incertos e escolhidos, parece que não omite elemento algum da natureza divina. Para que acrescenta então:

Se escrevêssemos acerca de toda a natureza dos deuses e dos homens, teríamos esgotado as coisas divinas antes de tocarmos nas humanas?

Porque, no fim de contas, ou ele escreve acerca de toda a natureza divina, ou acerca de uma das suas partes, ou acerca de nenhuma. No primeiro caso, as coisas divinas deveriam ter sido tratadas antes das humanas. No segundo caso, porque não teriam elas a mesma prioridade? Não merece uma parte da natureza divina ser colocada acima da totalidade da natureza humana? E se é demais que alguma parte divina prefira a todas as coisas humanas, r deve pelo menos antecipar-se às coisas romanas uma vez que escreveu os livros sobre as coisas humanas enquanto respeitam, não a todo o universo, mas apenas a Roma; e, todavia, quando ele declara tê-las posto nos seus livros antes das divinas, como se antepõe o pintor à pintura e o construtor ao edifício, confessa claramente que, à maneira da pintura e da arquitectura, as coisas divinas são de instituição humana.

Conclui-se que ele, afinal, não escreveu acerca de nenhuma natureza divina, mas que também não o quis dizer claramente, mas apenas dá-lo a entender aos mais inteligentes. Efectivamente, quando se diz «nem toda», usualmente quer-se assim dizer «alguma»; mas também se pode entender que se quis dizer «nenhuma», pois que «nenhuma» exclui tanto «todas» como «alguma». Como ele próprio diz, se tivesse escrito acerca de toda a natureza dos deuses, deveria tê-la posto, conforme a ordem da sua obra, antes das coisas humanas. Mas, embora o não diga, a verdade clama que ele deveria tê-la colocado, pelo menos antes das coisas romanas, ainda que se tratasse, não de toda, mas de uma parte. Mas coloca-a justamente depois: é porque então de nenhuma se trata. Assim, ele não quis colocar as coisas humanas acima das divinas; mas recusou-se a pôr as coisas falsas acima das verdadeiras. Porque, no que escreveu acerca das coisas humanas, apoia-se na histó­ria do passado; mas quando trata das que apelida de divinas, em que é que se apoia senão em opiniões quiméricas? Eis, sem dúvida, o que ele pretendeu subtilmente indicar, não somente concedendo às primeiras superioridade sobre as segundas, mas também expondo as razões por que assim procedera. Se ele nada tivesse dito, outros sem dúvida teriam encontrado outras razões para o justificarem. Mas, pelo simples facto de ter alegado esta razão, a ninguém deixou a liberdade de formular outras hipóteses: está suficientemente feita a prova de que ele pôs os homens antes das instituições e não a natureza divina antes da natureza humana.

Assim, como ele próprio confessa, os seus livros acerca das coisas divinas tratam, não da verdade que resulta da natureza, mas da falsidade que resulta do erro. Confessa-o ainda mais claramente, como recordei no quarto livro, ao dizer que, se tivesse de fundar uma cidade nova, escreveria inspirando-se na lei da natureza; mas como encontrou uma já antiga, mais não pôde que conformar-se com as suas tradições.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Cícero, Academ., I, 3, 9.
[ii] Cícero, Academ., I, 3, 9.
[iii] Terentianus Maurus, De metris, 2846.

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