Vol. 1
LIVRO
VI
CAPÍTULO II
Opinião de Varrão acerca do
culto e espécies de deuses dos gentios. Teria sido mais reverente se se
calasse, em vez de revelar o que revelou.
Quem
mais aturadamente do que Marco Varrão fez investigações sobre esta matéria?
Quem fez mais sábias descobertas? Distinções mais perspicazes? Quem tão
cuidadosamente, tão completamente, as descreveu? Embora de estilo bastante
desagradável, é tão rico de doutrina e de pensamentos que, em todas as ordens
do saber a que nós chamamos secular e eles liberal, ele instrui o homem afeiçoado
a estas matérias tão bem como Cícero encanta o afeiçoado às questões de estilo.
Aliás, o próprio Cícero dá dele este testemunho, ao afirmar que a discussão
tratada nos Académicos a teve com Marco Varrão,
Não
lhe chama «o mais eloquente» nem «o mais elegante», porque, na verdade,
sob este aspecto, Varrão é bastante inferior; chama-lhe antes «sem sombra de dúvida o mais arguto» e,
nos mesmos livros dos Académicos, onde trata de pôr em dúvida todas as
doutrinas, ele acrescenta «sem sombra de
dúvida o mais sábio». Realmente, acerca deste ponto estava tão seguro que
afasta toda a dúvida que costuma mostrar em todas as questões e, ao pleitear a
favor da dúvida académica, apenas em relação a Varrão se esquece de que é um
académico. No primeiro livro, ao elogiar as obras literárias de Varrão, diz:
Quando
deambulávamos errantes na nossa própria cidade como estrangeiros, foram os teus
livros que, de certo modo, nos levaram a casa e nos permitiram finalmente
reconhecer quem éramos e onde estávamos. Foste tu quem nos deu a conhecer a
idade da pátria, a distribuição dos tempos, os direitos da religião e os do sacerdócio;
as regras da vida privada e as da vida pública; a situação das regiões e dos
lugares; os nomes, as espécies, as funções e as causas de todas as coisas
divinas e humanas [ii].
Ora
este varão de tão insigne e excelente saber e de quem Terenciano disse, em
verso tão elegante como conciso:
este
varão que tanto leu que pasmamos que tenha tido vagar para escrever; e que
tanto escreveu que dificilmente acreditamos que haja alguém capaz de tudo ler —
este varão, digo eu, de tamanho talento e saber, se tivesse sido o adversário e
o destruidor das coisas a que se dá o nome de divinas e as quisesse apresentar
não como respeitantes à religião, mas antes à superstição, não sei se
conseguiria amontoar tanta coisa digna de troça, desprezo e abominação como o
que escreveu. Todavia, ele venerava esses mesmos deuses e considerava o seu
culto imprescindível, a ponto de declarar na sua obra que receava vê-los
perecer, não devido a ataques dos inimigos, mas devido antes à indiferença dos cidadãos. É desta ruína que
ele pretende salvá-los, evocando-os nos seus livros e gravando-os na memória
dos homens; crê ser-lhes assim mais útil do que Metelo o foi ao salvar do
incêndio a estátua de Vesta ou do que Eneias ao salvar os seus penates da
destruição de Tróia. E, não obstante, transmitiu à posteridade, para leitura,
coisas que tanto sábios como ignorantes julgam dignas de rejeição e totalmente
contrárias à verdadeira religião. Que devemos pensar, então, senão que um homem
tão sagaz e tão hábil, mas ainda não libertado pelo Espírito Santo, estava
subjugado pelos costumes e leis da sua cidade, e, todavia, se recusava a
esconder o que o perturbava sob o pretexto de enaltecer a religião?
CAPÍTULO III
Plano dos livros de Varrão
acerca das Antiguidades das coisas humanas e divinas.
Escreveu
quarenta e um livros acerca das Antiguidades, dividindo-os em vinte e cinco
livros sobre as coisas humanas e dezasseis sobre as divinas. Seguiu nesta
distribuição o seguinte método:
As
coisas humanas tratou-as em quatro partes, dedicando seis livros a cada uma.
Tem por objecto os que agem, onde agem, quando actuam e o que fazem. Nos seis
primeiros livros escreveu acerca dos homens; nos seis seguintes, acerca dos
lugares; nos outros seis acerca dos tempos; e nos quatro últimos, acerca das
coisas. Quatro vezes seis são, pois, vinte e quatro. No início da obra colocou
um livro especial, que serve de introdução geral.
Nas
coisas divinas mantém a mesma sistematização no que respeita ao culto devido
aos deuses; de facto, as coisas sagradas são celebradas pelos homens em lugares
e tempos próprios. E a cada um destes quatro assuntos dedica três livros: nos
três primeiros, trata dos homens; nos que se seguem, dos lugares; no terceiro
grupo, acerca dos tempos; e no quarto grupo, das coisas sagradas — fazendo
sobressair, com subtil distinção, quem celebra, onde as celebra, quando e em
que consistem. Como, porém, era preciso que dissesse (e era isso que
especialmente se esperava dele) a quem se devia prestar culto, compôs os três
últimos livros sobre os próprios deuses — o que (cinco vezes três) perfaz
quinze livros. Desta maneira, como dissemos, são no total dezasseis, já que os
fez preceder de um especial, que trata de tudo na generalidade.
Terminado
este livro especial, segundo a sua sistematização, dividem-se assim os três do
primeiro grupo acerca dos homens: o primeiro trata dos pontífices; o segundo,
dos áugures; o terceiro, dos quindecênviros. Os do segundo grupo, consagrados
aos lugares, tratam: o primeiro, dos templetes (de sacellis); o segundo, dos templos; o terceiro, dos lugares sagrados.
Os do terceiro grupo, consagrado aos tempos, isto é, aos dias festivos, tratam:
o primeiro, das festividades; o segundo, dos jogos do circo; o terceiro, das
representações teatrais. Os do quarto grupo, consagrado às coisas sagradas,
tratam: o primeiro, das consagrações; o segundo, dos sacrifícios privados; o
terceiro, dos sacrifícios públicos. Como que fechando esta espécie de aparatosa
procissão, nos três livros que restam vêm os próprios deuses, destinatários de
todo este culto, tratando: o primeiro destes livros, dos deuses certos; o
segundo, dos deuses incertos; o terceiro e último, dos deuses principais e
escolhidos.
CAPÍTULO IV
Resulta da dissertação de
Varrão que os adoradores dos deuses consideram as instituições humanas
anteriores às instituições divinas.
Ao
longo de todo este belíssimo e tão subtil encadeamento de divisões e
distinções, é vão procurar e muito imprudente desejar ou esperar encontrar a
vida eterna; como ressalta do que já dissemos e do que temos ainda para dizer,
é isto uma verdade que salta aos olhos de quem quer que seja que, por
obstinação do coração, não se volte contra si próprio. Porque se trata de
instituições que emanam dos homens ou dos demónios e não dos bons demónios,
como eles lhes chamam, mas antes, falando mais claramente, de espíritos
imundos, indubitavelmente maléficos. São eles que, com surpreendente inveja e
ocultamente, insinuam no pensamento dos ímpios opiniões perniciosas, que,
debilitando cada vez mais a alma humana, a tornam incapaz de se adaptar e de se
unir à imutável e eterna verdade; e por vezes as sugerem abertamente aos
próprios sentidos e as confirmam com falsos testemunhos ao seu dispor.
Este
Varrão é ele próprio quem confessa ter tratado primeiramente das coisas humanas
e em segundo lugar das divinas pela simples razão de que foram as cidades o que
primeiro existiu e depois é que estas criaram a religião. Mas o certo é que a
verdadeira religião não provém de cidade alguma terrena. É ela precisamente que
dá origem à cidade celeste. Quem inspira esta cidade e é seu mestre é o Deus
verdadeiro que concede a vida eterna aos seus adoradores.
Varrão
reconhece, portanto, que das coisas humanas tratou em primeiro lugar e só em
seguida das divinas, porque as divinas foram estabelecidas pelos homens; e eis
a explicação que ele dá disto:
Da
mesma forma que o pintor existe antes do quadro e o arquitecto antes do
edifício, assim também as cidades precedem as instituições que criam.
Acrescenta
que teria escrito primeiro acerca dos deuses e depois acerca dos homens, se
tivesse que tratar de toda a natureza dos deuses — como se, na sua obra, ele
não tivesse escrito senão acerca de uma parte desta natureza e não acerca dela
toda, ou como se a natureza dos deuses, mesmo incompleta, não devesse ter a
prioridade sobre a dos homens!
De
resto, nos seus três últimos livros, em que cuidadosamente estuda os deuses
certos, incertos e escolhidos, parece que não omite elemento algum da natureza
divina. Para que acrescenta então:
Se
escrevêssemos acerca de toda a natureza dos deuses e dos homens, teríamos
esgotado as coisas divinas antes de tocarmos nas humanas?
Porque,
no fim de contas, ou ele escreve acerca de toda a natureza divina, ou acerca de
uma das suas partes, ou acerca de nenhuma. No primeiro caso, as coisas divinas
deveriam ter sido tratadas antes das humanas. No segundo caso, porque não
teriam elas a mesma prioridade? Não merece uma parte da natureza divina ser
colocada acima da totalidade da natureza humana? E se é demais que alguma parte
divina prefira a todas as coisas humanas, r deve pelo menos antecipar-se às
coisas romanas uma vez que escreveu os livros sobre as coisas humanas enquanto
respeitam, não a todo o universo, mas apenas a Roma; e, todavia, quando ele
declara tê-las posto nos seus livros antes das divinas, como se antepõe o
pintor à pintura e o construtor ao edifício, confessa claramente que, à maneira
da pintura e da arquitectura, as coisas divinas são de instituição humana.
Conclui-se
que ele, afinal, não escreveu acerca de nenhuma natureza divina, mas que também
não o quis dizer claramente, mas apenas dá-lo a entender aos mais inteligentes.
Efectivamente, quando se diz «nem toda», usualmente quer-se assim dizer «alguma»;
mas também se pode entender que se quis dizer «nenhuma», pois que «nenhuma»
exclui tanto «todas» como «alguma». Como ele próprio diz, se tivesse escrito
acerca de toda a natureza dos deuses, deveria tê-la posto, conforme a ordem da
sua obra, antes das coisas humanas. Mas, embora o não diga, a verdade clama que
ele deveria tê-la colocado, pelo menos antes das coisas romanas, ainda que se
tratasse, não de toda, mas de uma parte. Mas coloca-a justamente depois: é
porque então de nenhuma se trata. Assim, ele não quis colocar as coisas humanas
acima das divinas; mas recusou-se a pôr as coisas falsas acima das verdadeiras.
Porque, no que escreveu acerca das coisas humanas, apoia-se na história do
passado; mas quando trata das que apelida de divinas, em que é que se apoia
senão em opiniões quiméricas? Eis, sem dúvida, o que ele pretendeu subtilmente
indicar, não somente concedendo às primeiras superioridade sobre as segundas,
mas também expondo as razões por que assim procedera. Se ele nada tivesse dito,
outros sem dúvida teriam encontrado outras razões para o justificarem. Mas,
pelo simples facto de ter alegado esta razão, a ninguém deixou a liberdade de
formular outras hipóteses: está suficientemente feita a prova de que ele pôs os
homens antes das instituições e não a natureza divina antes da natureza humana.
Assim,
como ele próprio confessa, os seus livros acerca das coisas divinas tratam, não
da verdade que resulta da natureza, mas da falsidade que resulta do erro.
Confessa-o ainda mais claramente, como recordei no quarto livro, ao dizer que,
se tivesse de fundar uma cidade nova, escreveria inspirando-se na lei da
natureza; mas como encontrou uma já antiga, mais não pôde que conformar-se com
as suas tradições.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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