Vol. 1
LIVRO
V
CAPÍTULO XX
Pôr as virtudes ao serviço
da glória humana é tão vergonhoso como pô-las ao serviço da paixão corporal.
Os
filósofos que põem na própria virtude o bem supremo do homem, quando pretendem
ofender o pudor de certos outros filósofos que, embora aprovem as virtudes,
procuram medi-las pela volúpia corporal que é o seu fim, pretendendo que essa
volúpia deve ser procurada por si mesma e as virtudes para a volúpia, — pintam
por palavras um quadro em que a volúpia está sentada num trono como uma
delicada rainha, e as virtudes lhe estão submissas como escravas, atentas aos
menores sinais para cumprirem o que ela ordenar:
—
ela ordena à prudência que investigue com cuidado qual a melhor maneira de
continuar a volúpia o seu reinado e a sua segurança;
—
à justiça ordena que preste todos os serviços que puder no sentido de lhe
conseguir as amizades necessárias à satisfação do corpo, que a ninguém incomode
para evitar que uma violação das leis venha comprometer a segurança da sua vida
de prazer;
—
à fortaleza ordena que, se sobrevier ao corpo uma dor que não leve à morte,
mantenha fortemente sua senhora, isto é, a volúpia, na consideração do seu
espírito, para que a lembrança das delícias passadas mitigue o espinho da dor
presente;
—
à temperança ordena que ponha medida nos alimentos e demais deleites, não
aconteça que o excesso imoderado e prejudicial venha alterar a saúde e
comprometer seriamente a volúpia, que, segundo os epicuristas, reside
principalmente numa boa saúde corporal.
Desta
maneira, as virtudes com toda a sua gloriosa dignidade servem a volúpia como a
uma voluntariosa e impudica mulherzinha. Nada mais ignominioso, nada mais
disforme, nada mais repelente do que a visão que este quadro oferece aos homens
de bem, dizem eles, e dizem a verdade. Mas não creio que dele ressalte
suficientemente a beleza que lhe é devida, se se imaginar um quadro que
represente as virtudes ao serviço da glória humana. É que mesmo esta glória,
embora não seja uma mulher sensual, não deixa de ser inchada e plena de
vaidade. Por isso não é digno que lhe estejam de tal modo escravizadas a
solidez e a firmeza das virtudes, que a prudência nada preveja, que a justiça
nada reparta, que a fortaleza nada suporte, que a temperança nada modere — a
não ser o que agradar aos homens e servir a uma glória feita de vento.
Não
se podem defender desta sujidade os que, embora, como que desprezando a glória,
sejam insensíveis aos juízos alheios, se se julgarem sábios e consigo mesmo se
comprazerem. A sua virtude, se é que o é, sujeita-se de outra maneira ao louvor
dos homens, uma vez que também é homem o que consigo mesmo se compraz. Mas o
que, com verdadeira piedade, crê em Deus, n’Ele espera e O ama, volta-se mais
para as coisas em que não sente prazer do que para as que (se é que alguma há)
agradam não tanto a si mesmo como à verdade. E aquilo por que já pode agradar,
unicamente o atribui à misericórdia d’Aquele a quem receia desagradar,
dando-lhe graças pelo que sarou, e elevando preces pelo que resta sarar.
CAPÍTULO XXI
O Império Romano foi
disposto pelo verdadeiro Deus de que provém todo o poder e por cuja providência
tudo é governado.
Sendo
isto assim, não atribuamos o poder de conceder reinos e impérios senão a Deus
verdadeiro, que só aos piedosos concede a felicidade no reino dos Céus, embora
o reino da Terra tanto o conceda aos piedosos como aos ímpios, conforme lhe
apraz a Ele a quem nada de injusto apraz. Embora tenhamos exposto algumas
coisas que Ele houve por bem descobrir-nos, todavia seria muito para nós e em
muito ultrapassaria as nossas forças desvendar os segredos dos homens e por um
exame profundo julgar dos méritos dos reinos. Foi, pois, Ele, Deus único
verdadeiro (que nunca abandonou o género humano com o seu juízo e a sua
assistência) quem concedeu aos Romanos o império quando quis e na medida em que
o quis. Foi Ele também quem o deu aos Assírios ou aos Persas — que só adoravam
dois deuses, um bom e outro mau, como o mostram as suas escrituras; — isto para
não falar do povo hebreu (do qual já disse, a meu ver o bastante) que durante a
sua monarquia só um único Deus adorou. Foi pois Aquele que deu aos Persas as
suas searas e os outros frutos da terra sem que eles prestassem culto a Segécia
e a tantos outros deuses que os Romanos atribuíam a cada coisa, ou mesmo vários
a uma só coisa. Foi Ele ainda quem lhes concedeu um reino sem que eles tenham
prestado culto aos deuses aos quais os Romanos julgavam dever o império.
Assim
também em relação aos homens: O mesmo que o deu a Mário, deu-o também a Gaio
César; o mesmo que o deu a Augusto, deu-o a Nero; o mesmo que o deu aos
Vespasianos pai e filho, imperadores humaníssimos, deu-o também ao feroz
Domiciano; e, para que não seja preciso mencionar um por um, o mesmo que o
concedeu ao cristão Constantino, concedeu-o também ao apóstata Juliano, homem
de excelente índole mas atraiçoado pela ambição do poder e uma sacrílega e
detestável curiosidade: entregue por esta a vãos oráculos e quando estava
seguro da vitória, incendiou os navios que transportavam as vitualhas
necessárias; depois, prosseguiu com fervor na sua louca empresa, em breve pagou
com a vida a sua temeridade e deixou em território inimigo o seu exército
esfaimado que de nenhuma maneira teria podido escapar se, contrariamente ao
auspício do deus Término do qual já falámos no livro anterior, não tivessem
sido deslocados os limites do Império Romano. E o deus Término, que não cedera
a Júpiter, cede agora à necessidade. Sem dúvida que é o Deus único e verdadeiro
que rege e governa estes acontecimentos como lhe apraz. Quiçá sejam ocultas as
suas razões; serão por isso injustas?
CAPÍTULO XXII
É do juízo de Deus que
dependem a duração e o desenlace das guerras.
Também
a duração das guerras, (que umas terminem mais cedo e outras mais tarde), está
no seu arbítrio, no seu justo juízo e na sua misericórdia, conforme se propõe
castigar ou consolar o género humano. A guerra dos piratas foi terminada por
Pompeio e a Guerra Púnica por Cipião com uma rapidez e uma brevidade de tempo
incríveis. Também a guerra dos gladiadores fugitivos, apesar da derrota de
muitos generais e de dois cônsules, apesar de a Itália horrivelmente esmagada e
devastada, acabou, porém, depois de muitas ruínas, ao terceiro ano. Os Picenos,
Marsos e Pelignos, povos não estrangeiros, mas itálicos, após uma longa e
dedicadíssima sujeição ao jugo romano, tentaram erguer a cabeça para a
liberdade. Nesse tempo já Roma mantinha subjugados sob o seu império muitos
povos e tinha destruído Cartago. Nesta guerra de Itália, os Romanos, muitas
vezes vencidos, perderam dois cônsules e vários ilustres senadores. Mas esta
calamidade não durou muito tempo, pois acabou ao quinto ano.
Mas
já a Segunda Guerra Púnica com os maiores desgastes e prejuízos para a
República, durante dezoito anos esgotou e quase aniquilou as forças romanas. Em
duas batalhas morreram perto de setenta mil romanos. A Primeira Guerra Púnica
prolongou-se por vinte e três anos e a de Mitrídates por quarenta. E, para que
ninguém julgue que a coragem dos primeiros romanos era mais capaz de
rapidamente acabar as guerras: nesses recuados tempos, muito louvados por
muitas virtudes, a guerra dos Samnitas durou perto de cinquenta anos — e nela
os romanos sofreram uma tal derrota que os fizeram passar pelo jugo. Mas, como
eles não amavam, parece, a glória por causa da justiça, mas a justiça por causa
da glória, romperam o tratado de paz.
Recordo
estes factos porque muitos, ignorando o passado, e outros fingindo ignorá-lo,
se virem que uma guerra nos tempos cristãos se arrasta por mais tempo, com toda
a impudência se atiram logo contra a nossa religião, gritando que, se ela não
existisse e se as divindades fossem ainda veneradas segundo os velhos ritos,
aquela coragem romana que, com a ajuda de Marte e de Belona, celeremente levava
a cabo tão grandes guerras, também agora as terminaria rapidissimamente.
Pois
lembrem-se os que leram quão longas foram as guerras conduzidas pelos antigos
romanos, quão carregadas de resultados vários e de lamentáveis derrotas — tal
qual como o mundo inteiro à maneira de um procelosíssimo pélago, costuma ser
agitado por tempestade de idênticos males. Que uma vez por todas confessem o
que não querem confessar: não se percam nem enganem os ignorantes com as suas
loucas palavras contra Deus.
CAPÍTULO XXIII
Guerra em que foi vencido,
num só dia, com as suas imensas tropas, Radagaiso, rei dos godos e adorador dos
demónios.
Daquilo
que, em época recentíssima da nossa lembrança, Deus admirável e
misericordiosamente fez, não se recordam, porém, com acções de graças — mas,
tanto quanto está nas suas mãos, tentam apagá-lo da recordação de todos os
homens, se tal for possível. Também nós seremos ingratos se o calarmos.
Quando
Radagaiso, rei dos godos, à frente de um feroz e enorme exército, tomou
posições muito perto da Urbe, grandemente ameaçadoras para os Romanos, num só
dia foi vencido e com tal celeridade que os Romanos não tiveram, não digo um
único morto, mas nem mesmo um único ferido, ao passo que o exército dele perdeu
mais de cem mil homens e ele próprio, feito prisioneiro, sofreu o merecido
castigo da morte.
Se
este ímpio tivesse entrado em Roma com tão grandes e tão ímpias tropas — quem
teria ele poupado? Que monumento dos mártires teria ele respeitado? Em que
pessoa teria respeitado a Deus? De quem não teria derramado o sangue? De quem
quereria deixar intacto o pudor? E que vozes não teriam os pagãos levantado
pelos seus deuses? Com que insultos não proclamariam — caso aquele tivesse
vencido e grandes proezas pudesse ter realizado? Diriam que foi porque ele
apaziguou os deuses e os chamou em seu auxílio por sacrifícios quotidianos
proibidos aos Romanos pela religião cristã? Com efeito, quando ele já se aproximava
desses lugares onde, a um sinal da
Suprema Majestade, foi esmagado, e quando a sua fama se espalhava por
toda a parte, já nos diziam em Cartago que os pagãos acreditavam, espalhavam e
repetiam que, graças ao favor e apoio dos deuses amigos, aos quais, dizia-se,
ele oferecia todos os dias sacrifícios, ele não poderia de forma alguma ser
vencido por homens que já não ofereciam nem permitiam que quem quer que fosse
oferecesse tais sacrifícios aos deuses romanos.
E
não dão graças, os desgraçados, a tamanha misericórdia de Deus que, tendo
decidido castigar com uma invasão de bárbaros a imoralidade dos homens, aliás
dignos de mais grave castigo, temperou a sua indignação com uma tão grande
mansuetude, a saber: primeiro, fez com que fosse miraculosamente derrotado, não
fosse que, com grandes prejuízos para as almas débeis, a glória de se sair
vitorioso a atribuíssem aos demónios, aos quais, segundo constava, elevava as
suas preces; e depois permitiu que Roma fosse tomada por esses bárbaros que,
contra todos os costumes das guerras antes travadas, protegeram os que se
refugiaram nos lugares sagrados, por respeito à religião cristã, tornando-se,
por respeito ao nome cristão, tão hostis aos demónios e aos seus ímpios
sacrifícios, em que Radagaiso confiara, que mais pareciam mover uma guerra
atroz aos demónios do que aos homens.
Foi
assim que o verdadeiro senhor e árbitro dos acontecimentos flagelou com
misericórdia os Romanos e mostrou aos adoradores dos demónios, vencidos de tão
incrível maneira, que os sacrifícios nem sequer para a salvaguarda dos bens
presentes são necessários. Assim aqueles que não discutem com casmurrice, mas
reflectem sensatamente, não abandonam a verdadeira religião por causa das
desgraças presentes, e antes mais fiéis se lhe mantêm, na expectativa da vida
eterna.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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