Vol. 1
CAPÍTULO XXXII
O sacramento da Redenção de
Cristo nunca faltou nos tempos passados e sempre foi anunciado por diversos
sinais.
Desde
a origem da humanidade que este mistério da vida eterna foi, por meio de
símbolos e de sinais sagrados apropriados aos tempos, anunciado pelos anjos aos
que o deviam conhecer. Depois, o Povo Hebreu foi congregado numa espécie de
Estado encarregado de realizar este mistério. Aí, pela voz de certos homens,
uns disso conscientes outros inconscientes, foi predito tudo o que devia
acontecer desde a vinda de Cristo até aos nossos dias e depois. Posteriormente
este povo dispersou-se por diversas nações, para dar testemunho das Escrituras
em que se anunciava a salvação eterna que viria a realizar-se em Cristo.
Porque, não apenas as profecias, que consistem em palavras, nem apenas os
preceitos da vida, que regem os costumes e a religião, e estão contidos nessas
Escrituras, mas também os ritos sagrados, o sacerdócio, o tabernáculo ou o
templo, os altares, os sacrifícios, as cerimónias, os dias de festa e as outras
instituições pertinentes ao serviço a Deus devido, tudo isto figurou e
pressagiou os acontecimentos que para a vida eterna dos fiéis em Cristo se
realizaram, como nós acreditamos, se realizam, como estamos a ver, e se virão a
realizar, como esperamos.
CAPÍTULO XXXIII
Só a religião cristã pôde
descobrir o engano dos espíritos malignos que se alegram com os erros dos
homens.
Pois
foi esta religião, única e verdadeira, que foi capaz de pôr a descoberto que os
deuses dos gentios mais não são que impuros demónios. Aproveitando-se das almas
dos mortos e sob a aparência de criaturas deste mundo, desejando passar por
deuses, têm-se deleitado com uma orgulhosa impudência nas honras quase divinas,
que mais não eram senão abominação e torpeza e têm invejado às almas humanas a
sua conversão ao verdadeiro Deus. De tão monstruosa e sacrílega tirania se
libertou o homem pela sua fé n’Aquele que, para o elevar, lhe deu o exemplo de
uma humildade igual em grandeza ao orgulho que fez cair os demónios. Entre
estes é preciso colocar, não somente os deuses de que já tanto falámos e tantos
outros de outras terras e povos, mas também aqueles de que falamos agora, os
deuses escolhidos para constituírem como que um Senado dos deuses, a todos
preferidos, não pela dignidade das suas virtudes, mas pela fama dos seus
crimes. Nos seus esforços por reduzir o seu culto a explicações naturais,
Varrão, procurando coonestar torpezas, não é capaz de as enquadrar e harmonizar
com as suas explicações. É que as verdadeiras causas destes ritos não são as
que ele crê ou pretende fazer crer. Se, efectivamente, houvesse tais causas ou
outras semelhantes, elas, sem dúvida, não teriam nenhuma relação com Deus e a
vida eterna, que há que procurar na religião. Mas, dando a estes ritos uns
laivos de explicação tirada dos seres da natureza, elas teriam pelo menos
atenuado um pouco o escândalo causado pela obscenidade e absurdidade desses
mesmos ritos mantidos sem explicações. Foi assim que tentou fazer para certas
fábulas do teatro ou certos mistérios do templo, sem justificar os teatros ao
compará-los aos templos, mas antes condenando os templos ao compará-los aos
teatros. Pelo menos, esforçou-se por, com semelhantes explicações naturais,
apaziguar o bom senso revoltado por tais horrores.
CAPÍTULO XXXIV
Dos livros de Numa Pompílio
que o Senado mandou queimar para se não divulgarem as causas das instituições
religiosas tal como neles vinham expostas.
Bem
ao contrário, sabemos, como no-lo relata esse tão douto Varrão, que a revelação
das causas dos ritos sagrados referida nos livros de Numa Pompílio, pareceu a
tal ponto intolerável e foi considerada indigna, não só de ser lida pelos
homens religiosos, mas mesmo de ser conservada por escrito às ocultas.
É
a ocasião de eu dizer o que no livro terceiro desta obra eu tinha prometido
relatar no momento próprio. Efectivamente, assim se lê no livro do mencionado
Varrão acerca do culto dos deuses:
Um
certo Terêncio possuía uma propriedade perto do Janículo. O seu boieiro, ao
arrastar o arado perto do túmulo de Numa Pompílio, desenterrou os livros em que
se encontravam escritas as causas das instituições religiosas. Levou-os a Roma,
ao pretor. Este viu o princípio deles e deferiu ao Senado questão de tanta
monta. Aí, quando leram algumas das razões que explicavam cada uma das
instituições, o Senado concordou com o falecido rei, determinando os Senadores
(padres conscritos) [i], religiosos como eram, que o pretor
queimasse esses livros [ii].
Pense
cada um o que quiser. Mais ainda: diga qualquer ilustre defensor de tamanha
impiedade o que lhe sugerir a sua extravagante teimosia. Quanto a mim, basta-me
constatar que as explicações religiosas escritas pela mão do rei Pompílio,
fundador da Religião Romana, tiveram de se conservar escondidas do povo, do
Senado, dos próprios sacerdotes. Foi este rei em pessoa quem, impelido por uma
curiosidade culpável, se iniciou nos segredos dos demónios e os reduziu a
escrito para os recordar quando os lesse. Mas, embora, por ser rei, nada
tivesse a temer, não se atreveu nem a comunicá-los nem a perdê-los,
destruindo-os de qualquer maneira. Assim, como não queria que ninguém
conhecesse coisas tão abomináveis, e como, por outro lado, receava profaná-los,
com o que atrairia a ira dos deuses, enterrou-os num sítio que julgou seguro —
não pensando que um arado poderia passar tão perto da sua sepultura. Quanto ao
Senado, teve receio de ter de condenar a religião dos antepassados e viu-se consequentemente
constrangido a concordar com Numa. Todavia, julgou estes livros tão perniciosos
que se recusou a enterrá-los de novo, para evitar que a curiosidade humana
procurasse, com mais ardor, uma coisa já tomada pública — e mandou destruir
pelo fogo tão nefandos documentos. E assim, porque se julgou necessária a
manutenção desse culto, — a ilusão sustentada pela ignorância das causas
pareceu preferível às perturbações que o seu conhecimento suscitaria na cidade.
CAPÍTULO XXXV
Da hidromancia, na qual Numa
foi mistificado por certas imagens dos demónios.
Como
lhe não foi enviado nenhum profeta de Deus, nenhum santo anjo, Numa viu-se
forçado a recorrer à hidromancia para ver na água as imagens dos deuses, ou
antes, as mistificações dos demónios e aprender o que devia instituir e
observar em matéria de ritos sagrados. O mesmo Varrão nos refere que este
género de adivinhação, importado da Pérsia, foi praticado por Numa e mais tarde
pelo filósofo Pitágoras. Acrescenta ainda que, desde que se empregue sangue, se
podem consultar também os infernos (método que também se chama hidromancia ou
necromancia — que é tudo o mesmo: aí, ao que parece, são os mortos quem revela
o futuro). Por que artifícios o conseguem, eles lá sabem. O que eu não quero é
afirmar que estes artifícios costumavam ser proibidos e punidos pela severidade
das leis dos gentios nas suas cidades antes da vinda do nosso Salvador. Não,
repito, não o quero afirmar: é que talvez, de facto, fossem então permitidos.
Mas não deixou de ser graças a tais artifícios que Pompílio tomou conhecimento
dessas instituições sagradas cujos ritos publicou e cujas explicações enterrou
(tal foi o medo que ele próprio sentiu pelo que ficou a saber) contidas nos
livros que o Senado entregou às chamas logo que os descobriu. A que propósito
vem, pois, Varrão, não sei com que pretensas causas físicas para explicar esses
ritos? Se os livros de Numa contivessem semelhantes explicações, não os teriam
queimado com certeza, ou então os livros do mesmo Varrão dedicados ao pontífice
César teriam sido, da mesma forma, lançados ao fogo pelos Senadores (padres
conscritos). Quanto ao acto de Numa Pompílio, carreando, isto é, transportando
água para as suas operações de hidromancia, ele explica a tradição do seu
casamento com a ninfa Egéria, conforme o expõe Varrão no citado livro. Assim
costuma acontecer que factos reais, uma vez aspergidos de mentiras, se
transformam em fábulas. Foi, pois, pela hidromancia que este curiosíssimo rei
romano aprendeu os ritos sagrados que os pontífices deviam conservar nos seus
livros, e as explicações destas cerimónias que ele quis ser o único a
conhecer. Foi por isso que, depois de as ter escrito em segredo, teve o cuidado
de as enterrar, para as subtrair ao conhecimento dos homens.
Portanto,
ou as paixões dos demónios lá descritas eram tão sórdidas, tão perniciosas, que
toda a teologia civil delas haurida devia parecer execrável, mesmo a homens que
tinham aceitado tantas infâmias nos seus ritos sagrados, ou então revelava-se
aí que todos estes deuses, tidos por imortais desde há tanto tempo pela quase
totalidade dos povos pagãos, mais não eram que homens falecidos. Estes ritos
agradavam aos demónios que, firmando a sua autoridade em falsos milagres, se
faziam adorar em vez desses mortos, fazendo-se passar por deuses. Por uma
secreta Providência do verdadeiro Deus, os demónios, tomados favoráveis pelos
artifícios da hidromancia, puderam revelar ao seu amigo Pompílio todas estas
ignomínias, sem, todavia, o advertirem de, à sua morte, as queimar em vez de as
enterrar. De resto, para evitarem que elas fossem conhecidas, não puderam eles
impedir nem que a charrua as exumasse nem que a pena de Varrão fizesse chegar
até nós o relato deste facto. É que eles não podem fazer mais do que lhes é
permitido. Por um justo e profundo desígnio de Deus soberano, foi-lhes
permitido afligir ou mesmo sujeitar e enganar aqueles que é justo tratar assim
porque o merecem.
Na
verdade, quão perniciosos, quão afastados do culto da verdadeira divindade
foram esses escritos julgados, pode-se deduzir do facto de o Senado achar
preferível queimar os livros, que Pompílio tinha escondido a recear o que
receou aquele que se não atreveu a fazê-lo. Por conseguinte, quem nem mesmo
agora quer levar uma vida religiosa, procure a eterna em tais mistérios; mas
quem não desejar alianças com os demónios malignos, não tema a perniciosa
superstição com que são venerados, mas, bem ao contrário, reconheça a
verdadeira religião graças à qual eles são desmascarados e vencidos!
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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