Vol. 1
LIVRO
VII
CAPÍTULO XXI
Torpeza dos mistérios de Líbero.
Sinto
vergonha por ter de tratar do culto de Líbero e da desmesurada torpeza a que
esse culto chegou: fizeram presidir esse culto às sementes líquidas (não,
portanto, apenas dos sumos dos frutos, entre os quais o vinho ocupa de certo
modo o primeiro lugar, mas também das sementes dos seres animados); sinto
vergonha precisamente por causa da amplidão da exposição — mas, perante a
arrogante estupidez dos sectários, não hesito. Apenas citarei algum pormenor
dos muitos que tenho de omitir. Conta Varrão que, nas encruzilhadas da Itália,
a celebração dos ritos de Líbero se fazia acompanhar de uma licenciosidade tão
torpe que se adoravam, em honra deste deus, as regiões pudendas do homem — e
isto não com a discrição que um resquício de pudor sugeriria, mas publicamente
exaltando a obscenidade. Enquanto duravam as festas de Líbero, o membro obsceno
era colocado em cima de carroças com a maior solenidade e passeavam-no,
primeiro pelas encruzilhadas do campo e por fim na própria Urbe. Na cidade de
Lavínio, um mês inteiro era consagrado ao culto de Líbero. Durante esses dias,
proferiam-se as mais obscenas palavras, até ao dia em que esse órgão era
transportado através do Forum e aí era colocado no seu lugar apropriado. A mais
honesta mãe de família era obrigada a colocar uma coroa sobre esse obsceno
órgão. Era assim que tinham que apaziguar o deus Líbero para obterem sucesso
nas sementeiras; era assim que tinham de desviar dos campos os encantamentos:
uma matrona era constrangida a realizar em público o que uma meretriz não se
podia permitir no teatro perante matronas.
Foi
por isso que se julgou que Saturno sozinho não podia bastar às sementes: Desta
forma a alma impura encontrava ocasiões de multiplicar os deuses; abandonada do
único Deus verdadeiro em castigo da sua impureza e prostituída por uma multidão
de falsos deuses, na sua sede de maior impureza, ela alcunhou de sagrados estes
ritos sacrílegos e ela própria se ofereceu à obscena caterva de demónios para
por todos eles ser violada e conspurcada.
CAPÍTULO XXII
Neptuno, Salácia e Venília.
Neptuno
já tinha por esposa Salácia, que, dizem eles, é a água profunda do mar. Porque
lhe juntaram então mais Venília? Apenas para permitir à alma prostituída,
devido, não à necessidade do culto mas somente da paixão, de multiplicar seus
convites aos demónios. Apareça uma interpretação dessa ilustre teologia que
refute com argumentos a nossa crítica! «Venília é a onda que chega à praia,
Salácia é a que volta ao alto mar». Porque é então que se fazem duas deusas, se
a mesma é a onda que vai e a onda que volta? Cá está de novo a louca paixão
fervendo em multiplicar os deuses! Embora se não multiplique a água que vai e
volta, a alma, que vai e não volta, aproveita esta vã oportunidade para
convidar os demónios e assim se prostituir ainda mais.
Peço-te,
Varrão, ou então a vós que tendes lido esses escritos de homens tão sábios e
vos orgulhais de neles terdes aprendido grandes coisas — dai-me uma explicação,
já não digo conforme à natureza eterna e imutável que é o único Deus, mas pelo
menos conforme à alma do mundo e às suas partes, que são, na vossa opinião,
verdadeiros deuses! Desta parte da alma do Mundo que penetra o mar, fazeis vós
um deus — Neptuno.
É
um erro, até certo ponto tolerável, que tenhais feito o deus Neptuno da parte
da alma do Mundo que penetra o mar. Mas esta água que chega à praia e volta
para o mar — constitui ela duas partes do Mundo, ou duas partes da alma do
Mundo? Qual de vós é tão louco para assim pensar? Porque vos fabricaram então
duas deusas senão porque os vossos sábios antepassados tiveram o cuidado, não
de vos porem sob a direcção certa de vários deuses, mas sim de vos entregarem a
uma multidão de demónios encantados com estas futilidades e mentiras? E porque
é que, segundo esta interpretação, Salácia perdeu esta parte profunda do mar
que a submetia às ordens de seu marido? Pois, ao apresentá-la como a onda que
retrocede, colocai- -la à superfície. Ou será que, por ele se ter amancebado
com Venília, Salácia expulsou furiosa seu marido das regiões superiores do mar?
CAPÍTULO XXIII
Acerca da Terra — que Varrão
afirma ser uma deusa porque a alma do Mundo, que, na sua opinião, é deus,
penetra também esta parte inferior do seu corpo e lhe comunica uma força
divina.
Realmente,
só existe uma Terra, que vemos cheia de animais. Todavia, entre os elementos,
este grande corpo mais não é que a parte mais baixa do mundo. Porque pretendem
que ela seja uma deusa? Porque é fecunda? Nesse caso, porque é que, mais do que
ela, não são deuses os homens— já que pelo cultivo a tomam mais fecunda, não
adorando-a mas lavrando-a? Respondem: o que faz dela uma deusa é a parte da
alma do mundo de que ela está impregnada. Como se nos homens não fosse mais
evidente a alma, cuja existência não constitui questão! Todavia, os homens não
são tidos por deuses e, o que é deveras de lamentar, a estes seres que não são
deuses, os homens (que valem mais que eles) submetem-se, devido a um
mirabolante e miserável erro, até chegarem a honrá-los e a adorá-los!
É
certo que, no mesmo livro acerca dos deuses escolhidos, Varrão afirma que, no
conjunto da natureza, a alma apresenta três graus. No primeiro, ela circula por
todas as partes vivas do corpo, mas não tem sensibilidade, sendo apenas
princípio de vida. No nosso corpo, diz ele, esta virtude impregna os nossos
ossos, as nossas unhas, os nossos cabelos, como no mundo as árvores se
alimentam, crescem e vivem à sua maneira sem gozarem de sensibilidade. No
segundo grau, a alma possui sensibilidade, e esta virtude penetra nos nossos
olhos, nos nossos ouvidos, nas nossas narinas, na nossa boca, no nosso tacto.
No terceiro grau, o mais elevado, a alma chama-se espírito e a inteligência
domina aí: desta carecem todos os mortais excepto o homem. Esta é, diz ele, a
parte da alma do Mundo que é deus e que em nós se chama Génio.
As
pedras e a terra que vemos no mundo e que a sensibilidade não informa, são como
que os ossos, como que as unhas de deus; mas o Sol, a Lua, as estrelas, que os
nossos sentidos captam e pelos quais ele percebe, — são os seus sentidos. Por
fim, o éter é o seu espírito: e esta força, ao chegar aos astros, toma-os
deuses; como, ao impregnar a Terra, faz dela a deusa Tellure e, ao impregnar o
mar e o Oceano, faz o deus Neptuno.
Que
ele volte, portanto, dessa teologia que ele apelida de natural, onde se
refugiou como que para repousar de tantos desvios e rodeios. Que ele volte,
digo eu, que ele volte à teologia civil. Vou retê-lo ainda aqui por algum tempo,
pois tenho ainda umas coisas a dizer acerca dela.
Ainda
não quero dizer: se a terra e as pedras são semelhantes aos nossos ossos e às
nossas unhas conclui-se que carecem de inteligência e sentidos. Ou então, se se
atribui inteligência aos nossos ossos e às nossas unhas pelo facto de
pertencerem ao homem, que é dotado de inteligência, tão louco é chamar deus à
terra e às pedras que estão no Mundo, como chamar homem aos ossos e às unhas
que estão em nós! Mas não há dúvida de que estas questões têm que ser tratadas
com os filósofos e, por agora, é ainda ao político que me dirijo.
Embora
ele tenha querido, ao que parece, levantar um pouco a cabeça até àquela como
que atmosfera de liberdade da teologia natural — bem pode ter acontecido que,
ao reflectir neste seu livro e ao verificar que nele se encontrava pouco à
vontade, o tenha encarado também sob o ponto de vista de teologia natural e
tenha falado desta maneira para que se não julgasse que os seus antepassados ou
outros povos (civitates) prestaram um
culto sem fundamento a Telure e a Neptuno.
Ora
o que eu digo é o seguinte: Esta parte da alma do Mundo que penetra na Terra,
porque é que ela também — pois que só há uma Terra — não constitui uma só
deusa, aquela a que se chama Telure? Mas, se é assim, onde estará Orco, irmão
de Júpiter e de Neptuno, a quem chamam Díspater (Pai Dite)? Onde estará sua esposa Prosérpina, que, segundo uma
outra opinião referida nos mesmos livros, é apresentada, não como a fecundidade
da Terra, mas como a região inferior da Terra? Se replicarem: «Uma parte da
alma do Mundo, penetrando na região superior da Terra, tomou-se no deus
Díspater (Dis Pater), e a outra,
penetrando na região inferior, tomou-se na deusa Prosérpina», — que será então
de Telure? O todo que ela era, ficou tão dividido nestas duas partes e dois
deuses que já se não poderá descobrir qual é a terceira e onde está. A não ser
que se diga que os deuses Orco e Prosérpina não são mais que uma só deusa,
Telure, e já não são três mas apenas uma ou duas. Todavia, são três os deuses
que se nomeiam, três que se reconhecem, três que se adoram com os seus altares,
os seus templos, os seus ritos, as suas imagens, os seus sacerdotes e também
com os seus demónios impostores, que, por meio de tudo isto, à porfia, violam
a alma prostituída.
Poderá
dizer-se ainda: «em que parte da Terra penetra uma parte da alma do Mundo para
formar o deus Telumão»? Não há outra parte, diz Varrão: a mesma e única Terra
possui uma dupla virtude — uma masculina, que produz as sementes, e outra feminina,
que as recebe e alimenta. É à virtude feminina que ela deve o nome de Telure e
à virtude masculina o de Telumão. Porque é que, então, os pontífices, juntando
outros dois deuses oferecem, como mesmo ele refere, sacrifícios a quatro
deuses: Telure, Telumão, Áltor e Rusor? Acerca de Telure e Temulão já se falou.
Mas porquê a Áltor? Porque, diz ele, da Terra se alimenta (alo) tudo o que nasceu. E porquê a Rusor? Porque, continua ele,
tudo volta (rursus) à Terra.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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