19/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS


Vol. 1

LIVRO VII

CAPÍTULO XXI

Torpeza dos mistérios de Líbero.



Sinto vergonha por ter de tratar do culto de Líbero e da desmesurada torpeza a que esse culto chegou: fizeram presidir esse culto às sementes líquidas (não, portanto, apenas dos sumos dos frutos, entre os quais o vinho ocupa de certo modo o primeiro lugar, mas também das sementes dos seres animados); sinto vergonha precisamente por causa da amplidão da exposição — mas, perante a arrogante estupidez dos sectários, não hesito. Apenas citarei algum pormenor dos muitos que tenho de omitir. Conta Varrão que, nas encruzilhadas da Itália, a celebração dos ritos de Líbero se fazia acompanhar de uma licenciosidade tão torpe que se adoravam, em honra deste deus, as regiões pudendas do homem — e isto não com a discrição que um resquício de pudor sugeriria, mas publicamente exaltando a obscenidade. Enquanto duravam as festas de Líbero, o membro obsceno era colocado em cima de carroças com a maior solenidade e passeavam-no, primeiro pelas encruzilhadas do campo e por fim na própria Urbe. Na cidade de Lavínio, um mês inteiro era consagrado ao culto de Líbero. Durante esses dias, proferiam-se as mais obscenas palavras, até ao dia em que esse órgão era transportado através do Forum e aí era colocado no seu lugar apropriado. A mais honesta mãe de família era obrigada a colocar uma coroa sobre esse obsceno órgão. Era assim que tinham que apaziguar o deus Líbero para obterem sucesso nas sementeiras; era assim que tinham de desviar dos campos os encantamentos: uma matrona era constrangida a realizar em público o que uma meretriz não se podia permitir no teatro perante matronas.

Foi por isso que se julgou que Saturno sozinho não podia bastar às sementes: Desta forma a alma impura encontrava ocasiões de multiplicar os deuses; abandonada do único Deus verdadeiro em castigo da sua impureza e prostituída por uma multidão de falsos deuses, na sua sede de maior impureza, ela alcunhou de sagrados estes ritos sacrílegos e ela própria se ofereceu à obscena caterva de demónios para por todos eles ser violada e conspurcada.

CAPÍTULO XXII

Neptuno, Salácia e Venília.

Neptuno já tinha por esposa Salácia, que, dizem eles, é a água profunda do mar. Porque lhe juntaram então mais Venília? Apenas para permitir à alma prostituída, devido, não à necessidade do culto mas somente da paixão, de multiplicar seus convites aos demónios. Apareça uma interpretação dessa ilustre teologia que refute com argumentos a nossa crítica! «Venília é a onda que chega à praia, Salácia é a que volta ao alto mar». Porque é então que se fazem duas deusas, se a mesma é a onda que vai e a onda que volta? Cá está de novo a louca paixão fervendo em multiplicar os deuses! Embora se não multiplique a água que vai e volta, a alma, que vai e não volta, aproveita esta vã oportunidade para convidar os demónios e assim se prostituir ainda mais.

Peço-te, Varrão, ou então a vós que tendes lido esses escritos de homens tão sábios e vos orgulhais de neles terdes aprendido grandes coisas — dai-me uma explicação, já não digo conforme à natureza eterna e imutável que é o único Deus, mas pelo menos conforme à alma do mundo e às suas partes, que são, na vossa opinião, verdadeiros deuses! Desta parte da alma do Mundo que penetra o mar, fazeis vós um deus — Neptuno.

É um erro, até certo ponto tolerável, que tenhais feito o deus Neptuno da parte da alma do Mundo que penetra o mar. Mas esta água que chega à praia e volta para o mar — constitui ela duas partes do Mundo, ou duas partes da alma do Mundo? Qual de vós é tão louco para assim pensar? Porque vos fabricaram então duas deusas senão porque os vossos sábios antepassados tiveram o cuidado, não de vos porem sob a direcção certa de vários deuses, mas sim de vos entregarem a uma multidão de demónios encantados com estas futilidades e mentiras? E porque é que, segundo esta interpretação, Salácia perdeu esta parte profunda do mar que a submetia às ordens de seu marido? Pois, ao apresentá-la como a onda que retrocede, colocai- -la à superfície. Ou será que, por ele se ter amancebado com Venília, Salácia expulsou furiosa seu marido das regiões superiores do mar?

CAPÍTULO XXIII

Acerca da Terra — que Varrão afirma ser uma deusa porque a alma do Mundo, que, na sua opinião, é deus, penetra também esta parte inferior do seu corpo e lhe comunica uma força divina.

Realmente, só existe uma Terra, que vemos cheia de animais. Todavia, entre os elementos, este grande corpo mais não é que a parte mais baixa do mundo. Porque pretendem que ela seja uma deusa? Porque é fecunda? Nesse caso, porque é que, mais do que ela, não são deuses os homens— já que pelo cultivo a tomam mais fecunda, não adorando-a mas lavrando-a? Respondem: o que faz dela uma deusa é a parte da alma do mundo de que ela está impregnada. Como se nos homens não fosse mais evidente a alma, cuja existência não constitui questão! Todavia, os homens não são tidos por deuses e, o que é deveras de lamentar, a estes seres que não são deuses, os homens (que valem mais que eles) submetem-se, devido a um mirabolante e miserável erro, até chegarem a honrá-los e a adorá-los!

É certo que, no mesmo livro acerca dos deuses escolhidos, Varrão afirma que, no conjunto da natureza, a alma apresenta três graus. No primeiro, ela circula por todas as partes vivas do corpo, mas não tem sensibilidade, sendo apenas princípio de vida. No nosso corpo, diz ele, esta virtude impregna os nossos ossos, as nossas unhas, os nossos cabelos, como no mundo as árvores se alimentam, crescem e vivem à sua maneira sem gozarem de sensibilidade. No segundo grau, a alma possui sensibilidade, e esta virtude penetra nos nossos olhos, nos nossos ouvidos, nas nossas narinas, na nossa boca, no nosso tacto. No terceiro grau, o mais elevado, a alma chama-se espírito e a inteligência domina aí: desta carecem todos os mortais excepto o homem. Esta é, diz ele, a parte da alma do Mundo que é deus e que em nós se chama Génio.

As pedras e a terra que vemos no mundo e que a sensibilidade não informa, são como que os ossos, como que as unhas de deus; mas o Sol, a Lua, as estrelas, que os nossos sentidos captam e pelos quais ele percebe, — são os seus sentidos. Por fim, o éter é o seu espírito: e esta força, ao chegar aos astros, toma-os deuses; como, ao impregnar a Terra, faz dela a deusa Tellure e, ao impregnar o mar e o Oceano, faz o deus Neptuno.

Que ele volte, portanto, dessa teologia que ele apelida de natural, onde se refugiou como que para repousar de tantos desvios e rodeios. Que ele volte, digo eu, que ele volte à teologia civil. Vou retê-lo ainda aqui por algum tempo, pois tenho ainda umas coisas a dizer acerca dela.

Ainda não quero dizer: se a terra e as pedras são semelhantes aos nossos ossos e às nossas unhas conclui-se que carecem de inteligência e sentidos. Ou então, se se atribui inteligência aos nossos ossos e às nossas unhas pelo facto de pertencerem ao homem, que é dotado de inteligência, tão louco é chamar deus à terra e às pedras que estão no Mundo, como chamar homem aos ossos e às unhas que estão em nós! Mas não há dúvida de que estas questões têm que ser tratadas com os filósofos e, por agora, é ainda ao político que me dirijo.

Embora ele tenha querido, ao que parece, levantar um pouco a cabeça até àquela como que atmosfera de liberdade da teologia natural — bem pode ter acontecido que, ao reflectir neste seu livro e ao verificar que nele se encontrava pouco à vontade, o tenha encarado também sob o ponto de vista de teologia natural e tenha falado desta maneira para que se não julgasse que os seus antepassados ou outros povos (civitates) prestaram um culto sem fundamento a Telure e a Neptuno.

Ora o que eu digo é o seguinte: Esta parte da alma do Mundo que penetra na Terra, porque é que ela também — pois que só há uma Terra — não constitui uma só deusa, aquela a que se chama Telure? Mas, se é assim, onde estará Orco, irmão de Júpiter e de Neptuno, a quem chamam Díspater (Pai Dite)? Onde estará sua esposa Prosérpina, que, segundo uma outra opinião referida nos mesmos livros, é apresentada, não como a fecundidade da Terra, mas como a região inferior da Terra? Se replicarem: «Uma parte da alma do Mundo, penetrando na região superior da Terra, tomou-se no deus Díspater (Dis Pater), e a outra, penetrando na região inferior, tomou-se na deusa Prosérpina», — que será então de Telure? O todo que ela era, ficou tão dividido nestas duas partes e dois deuses que já se não poderá descobrir qual é a terceira e onde está. A não ser que se diga que os deuses Orco e Prosérpina não são mais que uma só deusa, Telure, e já não são três mas apenas uma ou duas. Todavia, são três os deuses que se nomeiam, três que se reconhecem, três que se adoram com os seus altares, os seus templos, os seus ritos, as suas imagens, os seus sacerdotes e também com os seus demó­nios impostores, que, por meio de tudo isto, à porfia, violam a alma prostituída.

Poderá dizer-se ainda: «em que parte da Terra penetra uma parte da alma do Mundo para formar o deus Telumão»? Não há outra parte, diz Varrão: a mesma e única Terra possui uma dupla virtude — uma masculina, que produz as sementes, e outra feminina, que as recebe e alimenta. É à virtude feminina que ela deve o nome de Telure e à virtude masculina o de Telumão. Porque é que, então, os pontífices, juntando outros dois deuses oferecem, como mesmo ele refere, sacrifícios a quatro deuses: Telure, Telumão, Áltor e Rusor? Acerca de Telure e Temulão já se falou. Mas porquê a Áltor? Porque, diz ele, da Terra se alimenta (alo) tudo o que nasceu. E porquê a Rusor? Porque, continua ele, tudo volta (rursus) à Terra.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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