Vol. 1
LIVRO
VI
CAPÍTULO V
Dos três géneros de
teologia, segundo Varrão: o fabuloso, o natural e o civil.
Que
vem então a ser isso de haver três géneros de teologia, isto é, da ciência
racional dos deuses: a teologia mítica, a teologia física e a teologia civil?
Se o uso do latim o permitisse, chamaríamos «fabular» à primeira; chamemos-lhe,
porém, «fabulosa»; efectivamente, «mítica» deriva do grego p&oç que
significa próprio das fábulas [i].
Quanto à segunda, já se chama, na linguagem habitual, «natural». À terceira, a
teologia civil, foi o próprio Varrão quem lhe deu este nome latino. Diz ele:
Chama-se
mítica a teologia de que usam sobretudo os poetas, natural a dos filósofos,
civil a do povo. Na primeira que citei, há muitas ficções contrárias à
dignidade e natureza dos imortais. Nela se diz que um deus procede da cabeça,
outro, de uma coxa, outro nasceu de gotas de sangue. Também se diz que os
deuses roubaram, cometeram adultério, se submeteram ao homem. Enfim, atribuem-se-lhes
todas as fraquezas, não apenas as de qualquer homem, mas as do mais .
desprezível dos homens.
Aqui
declarou, sem sombra de ambiguidade, que se cometia com fábulas mentirosas uma
grande injúria contra a natureza dos deuses, porque podia fazê-lo, e ousava
fazê-l0, porque se sentia impune. Não falava, porém, da teologia natural nem da
teologia civil, mas sim da fabulosa; julgava que podia livremente incriminar
esta.
Vejamos
o que ele diz da segunda:
A
segunda classe de teologia, para que chamei a atenção, é aquela acerca da qual
os filósofos nos deixaram muitos livros em que se questiona: os deuses — que
são eles? onde residem? qual a sua origem? quais as suas qualidades? existem
desde determinada época, ou são eternos? provêm do fogo, como crê Heráclito?
provêm dos números, como afirma Pitágoras, ou dos átomos como pretende Epicuro?
e outras questões que se podem ouvir mais facilmente dentro das paredes de uma
escola do que cá fora, no forum.
Varrão
nada encontra de censurável nesta chamada teologia natural, que é a
especialidade dos filósofos; contenta-se em recordar as controvérsias entre
eles havidas e que deram origem à multidão de seitas dissidentes. Tirou esta
filosofia da rua, isto é, do vulgo, e fechou-a dentro dos muros da escola; não
retirou, porém, das cidades a primeira classe, de todas a mais mentirosa e a
mais obscena. Ó ouvidos pios dos povos, incluindo o romano! Não podem suportar
as discussões dos filósofos acerca dos deuses imortais; mas os cantos dos
poetas, as representações dos histriões, as ficções atentatórias da dignidade e
da natureza dos imortais e que nem ao mais vil dos homens se podem aplicar, —
isso podem suportar, isso podem ouvir, e até com prazer, esses ouvidos! Mais
ainda: tem-se como certo que isso agrada aos deuses e consegue aplacá-los.
Alguém
dirá: distingamos essas duas classes de teologia, a mítica e a física, isto é,
a fabulosa e a natural, da teologia civil de que se trata agora, como o próprio
Varrão as distinguiu; e, para já, vejamos as suas explicações acerca da
teologia civil. Claro que bem vejo porque é que ela se deve distinguir da
fabulosa: é que esta é falsa, vergonhosa, infame. Mas querer separar a teologia
natural da civil que mais é do que confessar que até mesmo a civil é mentirosa?
Porque, se aquela é verdadeiramente natural — que tem ela de repreensível para
ser excluída? E se esta, a chamada civil, não é natural — que mérito tem ela
para ser admitida? Efectivamente, Varrão trata primeiro das coisas humanas e
depois das divinas, apenas por esta razão: é que nas coisas divinas não se
conformou com a sua natureza, mas sim com as instituições dos homens.
Examinemos
agora a teologia civil. Diz Varrão:
A
terceira espécie é a que, nas cidades, os cidadãos e principalmente os
sacerdotes devem conhecer e praticar. É nela que se vê — quais os deuses que
cada um deve oficialmente venerar, com que ritos e com que sacrifícios.
Atendamos
ainda ao que se segue:
A
primeira é a teologia que melhor se acomoda ao teatro, a segunda ao mundo, a
terceira à cidade.
Quem
é que não vê a quem concede ele a palma? À segunda, evidentemente, à dos
filósofos, como ele acima lhe chamou, pois, na sua opinião, é ela que se
acomoda ao mundo ao qual nada se iguala em excelência, como eles dizem. Quanto
às outras duas teologias, a primeira e a terceira, ou seja, a do teatro e a da
cidade, distinguiu-as ele ou juntou-as? Vemos, de facto, que nem sempre o que é
próprio da cidade se pode referir também ao mundo, embora vejamos que as
cidades estão no mundo. Pode bem acontecer que, por influência de falsas
opiniões, se preste crédito e culto na cidade a divindades cuja natureza nem no
mundo nem fora dele existe. Quanto ao teatro — onde se encontra ele senão na
cidade? Quem instituiu o teatro senão a cidade? Porque o instituiu a cidade
senão com vista aos jogos cénicos? Onde se encontram os jogos cénicos senão
entre as coisas divinas de que tratam com tanta sagacidade os livros de Varrão?
CAPÍTULO VI
Da teologia mítica ou
fabulosa e da teologia civil, contra Varrão.
Ó
Marco Varrão, pois que és o mais arguto e, sem sombra de dúvida, o mais douto
dos homens, porém homem e não Deus e não alçado pelo Espírito de Deus até à
verdade e à liberdade para contemplares e anunciares os divinos mistérios —
apercebes-te, na verdade, da enorme diferença que há entre as coisas divinas e
as ninharias e mentiras humanas; receias, porém, ofender as opiniões e os
costumes dos povos tão corrompidos nas crendices públicas. Percebes
perfeitamente, quando as examinas sob todos os aspectos, que elas são indignas
da natureza dos deuses, mesmo daqueles que a fraqueza do espírito humano julga
descobrir nos elementos deste mundo; e toda a vossa literatura o proclama como
um eco. Para que serve então o génio humano, por mais elevado que seja? De que
te serve, nestes apertos, a ciência humana, apesar da sua variedade e extensão?
Desejas prestar culto aos deuses da natureza e vês-te constrangido a prestá-lo
aos da cidade. Descobres outros — os da fábula —, contra os quais mais
livremente revelas os teus verdadeiros sentimentos; mas, quer queiras quer não
queiras, a tua indignação salpicará os próprios deuses da cidade. Dizes que de
facto os deuses fabulosos se fizeram para o teatro, os naturais para o mundo e
os civis para a Urbe; mas o mundo é obra de Deus e a Urbe e o teatro são obra
dos homens; e os deuses de que vos rides nos teatros são os mesmos que adorais
nos templos; aqueles aos quais ofereceis jogos são os mesmos que aqueles em
honra dos quais imolais vítimas. Com quanta mais liberdade e agudeza dividirias
os deuses reconhecendo: estes são naturais e aqueloutros foram instituídos
pelos homens; mas, acerca destes últimos, a linguagem dos poetas é bem
diferente da dos sacerdotes; todavia, estas linguagens estão de tal forma
unidas entre si pelos laços amigáveis da mentira, que tanto uma como outra
agradam aos demónios, que são inimigos da verdade.
Ponhamos
de parte, por instantes, a teologia chamada natural: mais tarde a ela voltaremos.
Valerá a pena desde já solicitar ou esperar a vida eterna dos deuses da poesia
e do teatro, dos jogos e da cena? De modo nenhum! Pelo contrário, que o
verdadeiro Deus nos livre de tão monstruosa e sacrílega loucura. Quê? Pedir a
vida eterna a deuses que se comprazem e se acalmam com a frequente celebração
pública dos seus crimes? Ninguém, julgo eu, leva a sua demência ao ponto de se
atirar para o abismo de uma tão louca impiedade. Não, nem a teologia fabulosa
nem a teologia civil podem conceder seja a quem for a vida eterna. Uma, com as
suas ficções, semeia as torpezas que inventa acerca dos deuses, e a outra, com
os seus aplausos, faz a sua colheita; uma espalha mentiras, a outra recolhe-as;
uma ataca as coisas divinas com crimes, a outra mete as representações desses
crimes entre as coisas divinas; uma celebra nos seus poemas as nefandas ficções
dos homens, a outra consagra-as nas festividades desses deuses; uma canta os
crimes e as torpezas dos deuses, a outra nelas se compraz; uma põe-nas a descoberto
ou inventa-as, a outra aprova-as, quando são verdadeiras, e diverte-se com
elas, se forem falsas. Ambas são infames, ambas são condenáveis: a primeira — a
teologia do teatro — faz profissão pública das suas torpezas; a segunda — a da
cidade — com essas torpezas se enfeita.
Esperar
a vida eterna do que polui esta breve vida temporal? Será que a convivência dos
homens nefastos, quando se insinuam em nossas afeições e em nossas decisões,
pode poluir a nossa vida, e não a polui a convivência com os demónios, cujo
culto consiste em celebrar os seus crimes? Se esses crimes são verdadeiros —
que perversos são esses deuses! Se são falsos — que torpes são os homens que os
celebram!
Quando
isto dizemos, talvez a alguém, muito mal informado nestas matérias, pareça que
só são indignas da majestade divina, ridículas e detestáveis, na celebração
destes deuses, as coisas cantadas pelos poetas e representadas pelos actores,
mas que as cerimónias celebradas, não pelos histriões, mas pelos sacerdotes,
são isentas de toda a indecência e puras. Se assim fosse, jamais ninguém teria
pensado que era preciso celebrar essas ignomínias teatrais em honra dos deuses,
nem os próprios deuses jamais exigiriam que lhas dedicassem. Mas, se não se
envergonham de representar semelhantes torpezas no teatro para honrarem os
deuses, é porque nos templos exibem idênticas vergonhas.
Finalmente,
o citado autor, ao empenhar-se em distinguir, como um terceiro género, a
teologia civil, da fabulosa e da natural, parece que quis dar-nos a entender
que ela é mais uma mistura das outras duas do que uma teologia distinta. Diz,
efectivamente, que o que os poetas escrevem é menos do que o que os povos devem
seguir — e, em compensação, o que escrevem os filósofos é mais do que o que o
vulgo pode compreender. Diz ele:
Estas
(teologias), apesar de tão opostas, tomaram, todavia, não poucos (elementos) de
uma e de outra para a teologia civil. Por isso, descrevemos com a civil o que
esta tem de comum com os poetas e teremos de ter mais contactos com os
filósofos do que com os poetas.
Varrão
não exclui toda a relação com os poetas. Todavia, noutra passagem, observa, a
propósito das genealogias divinas, que os povos se sentem mais inclinados para
os poetas do que para os físicos [ii].
Aqui diz o que se deve fazer e além o que se faz, pois, os físicos escreveram
para serem úteis e os poetas para deleitarem. Assim, pois, os povos não devem
imitar o que os poetas cantam, ou seja os crimes dos deuses, embora estes tanto
deleitem os povos como os deuses; efectivamente, como Varrão diz, os poetas
escrevem, não para serem úteis, mas para serem agradáveis. Escrevem, todavia, o
que os deuses pedem e os povos representam.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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