01/02/2017

Leitura espiritual

 A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO V

CAPÍTULO XII

…/2

O mesmo Salústio elogia dois grandes e ilustres varões da sua época: Marco Catão e Caio César. Diz ele que durante muito tempo não teve a república ninguém de alta virtude, mas que, no seu tempo, estes dois, aliás de carácter diferente, foram de elevado valor. Elogia César porque muito desejava um grande comando militar, um exército e uma nova guerra onde o seu talento pudesse brilhar. Assim, acontecia que nas intenções destes homens grandes pela coragem estava Belona a excitar à guerra míseros povos e a atiçá-los com o seu sangrento azor­rague, para lhes dar ocasião de que brilhasse o seu talento. Era a isto que conduzia, sem dúvida, a avidez do louvor e a paixão da glória.

Foi, pois, primeiro por amor da liberdade, depois pelo amor do domínio e pela paixão dos louvores e da glória que eles realizaram tantas façanhas. Das duas coisas dá testemunho o seu insigne poeta. Efectivamente, diz:

Porsena ordenava que recebessem o banido Tarquínio e mantinha a cidade sob a pressão de um temível cerco; mas os descendentes de Eneias, por amor à liberdade, voavam ao combate [i].

Para eles, nesse tempo, a grandeza consistia em morrerem corajosamente ou livremente viverem. Mas, quando a liberdade foi conquistada, surgiu neles tamanha paixão de glória, que já a liberdade só lhes parecia de pouca monta se se não lhe acrescesse a ânsia de domínio. Para eles, era tido em grande conta o que o mesmo poeta diz, pondo-o na boca de Júpiter:

Mais ainda: a intratável Juno, que agora mantém pelo medo o mar e a terra e o céu, mudará para melhor os seus propósitos e comigo favorecerá o povo togado, os Romanos  senhores do mundo. Assim me aprouve. Virá um tempo em que, com o passar dos lustros, a casa de Assáraco oprimirá pela escravidão Ftia e a ilustre Micenas e dominará sobre Argos vencida [ii].

Na verdade, o que Vergílio põe na boca de Júpiter predizendo o futuro, eram factos que ele próprio recordava e que discernia perfeitamente como se fossem presentes. Mas eu quis recordá-los para mostrar que os Romanos, depois da liberdade, tinham em tal conta a vontade de domínio, que desta fizeram o objecto dos seus maiores louvores. É por isso que o mesmo poeta põe acima das artes dos outros povos as artes próprias dos Romanos — de reinar e de comandar, de subjugar e de conquistar pelas armas os povos. Diz ele:

Outros forjarão com habilidade o bronze, até lhe darem alento, concedo; e arrancarão ao mármore rostos com vida, Defenderão causas com mais eloquência, Traçarão com o compasso os caminhos do céu, E falarão do nascimento dos astros: Mas tu, Romano, atenta em governar os povos com o teu domínio, Estas serão as tuas artes: impor as normas da paz, Perdoar aos vencidos e domar os soberbos... [iii]

Estas artes exerciam-nas os Romanos com tanta maior mestria quanto menor era a sua entrega à volúpia, ao enervamento da alma e do corpo pela ânsia de adquirir e de aumentar riquezas, por estas corrompendo os costumes, espoliando os cidadãos pobres e presenteando torpes histriões.

Aliás, esses que, quando isto narrava Salústio e Vergílio cantava, já ultrapassavam os antigos pela corrupção dos costumes e mergulhavam na abundância, já não era pelas ditas artes mas por fraudes e mentiras que procuravam as honras e as glórias. Por isso é que o mesmo historiador diz:

Primitivamente, a cupidez trabalhava menos o coração dos homens do que a ambição — vício aliás mais próximo da virtude. Na verdade, tanto o homem bom como o indolente anseiam igualmente pela glória, pelas honras e pelo poder. Mas aquele tenta-o pelo verdadeiro caminho, ao passo que o segundo, desprovido de meios honestos, procura lá chegar pela astúcia e pela mentira [iv].

Estas é que são as boas artes: era por meio da virtude e não por meio de uma astuta ambição que se chegava às honras, à glória, ao poder — que tanto o bom como o fraco, sem restrição desejam para si; mas aquele, ou seja, o bom, esforça-se por seguir pelo verdadeiro caminho. A virtude é o caminho pelo qual se avança para atingir o seu fim, ou seja, a glória, a honra, o poder.

Que os Romanos tinham isto bem arreigado no seu íntimo, indicam-no os templos dos deuses levantados muito perto um do outro à Virtude e à Honra, tomando por deuses os dons de Deus. Donde se pode de­duzir que fim queriam eles que fosse o da virtude e para onde a orientavam os que eram bons, ou seja: para a honra; porque os maus nem sequer a possuíam, embora desejassem possuir honras que se esforçavam por adquirir, mas por malas artes, isto é, pela manha e pela mentira.

Melhor do que César foi Catão elogiado por Salústio. Com efeito, diz dele:

Quanto menos desejava a glória, mais ela o seguia [v].

Efectivamente a glória, pela qual ardem de desejo, é um juízo de homens que têm de outros homens uma alta opinião. E por isso é melhor a virtude que não se satisfaz com o testemunho humano mas com o da sua consciência. Daí o que diz o Apóstolo:

Para nós, a nossa glória é o testemunho da nossa consciência [vi].
e noutra passagem:

Examine cada um a sua obra — e então em si mesmo somente e não em outrem terá a glória [vii].

Portanto, a glória, a honra e o poder que os Romanos para si tanto desejavam e a que os bons se esforçam por chegar por meios honestos — não é a virtude que os deve seguir, mas eles à virtude. É que não é verdadeira virtude senão aquela que tende para um fim onde se en­contre o bem do homem, melhor do que o qual nada há. Por isso Catão não devia pedir as honras que pediu, a cidade é que lhas devia conceder em atenção à sua virtude sem ele as pedir.

Mas, se César e Catão são dois romanos desse tempo grandes pela virtude, a virtude de Catão parece muito mais próxima da verdade do que a de César. Que é que a cidade valia nessa época e que é que ela valia antes, vejamo-lo segundo o parecer de Catão. Diz ele:

Livrai-vos de julgar que os nossos antepassados de um pequeno fizeram um grande estado pela força das armas. Se assim fosse, tê-lo-íamos hoje muito mais belo. De facto, dispomos de maior cópia de aliados e de cidadãos e também de mais armas e cavalos do que eles. Mas foram outros os meios que os tomaram grandes e que nós não temos: na pátria, dedicação ao trabalho, no exterior, uma autoridade justa; nas deliberações, ânimo livre, não culpado de crime ou de paixão. Em vez destes, temos a luxúria e a avareza, no Estado a miséria, entre os particulares a opulência. Louvamos as riquezas e adoptamos a preguiça; nenhuma distinção entre os bons e os maus; a ambição possui todos os prémios da virtude. Nem admira: quando cada um de vós toma as decisões por sua conta. Em cada casa sois escravos do prazer e, em público, do dinheiro e do favor, depois do que todos se atiram ao Estado como se fosse coisa abandonada [viii].

Quem ouvir estas palavras de Catão (ou de Salústio) laudatórias dos velhos Romanos, julgará que todos ou a maioria deles mereciam tais elogios. Mas não é assim. De outro modo não seria verdadeiro o que ele mesmo escreveu e eu citei no segundo livro desta obra. Relata ele lá que, desde o princípio, as injustiças dos mais fortes ocasionaram a separação da plebe e dos patrícios;

que no interior houve outras dissensões publicam;

que se não viveu sob um direito justo e bem aplicado senão depois da expulsão dos reis, enquanto se manteve o medo a Tarquínio e até que acabasse a pesada guerra que se teve de sustentar, por causa dele, com a Etrúria;

que posteriormente, porém, os patrícios sujeitaram a plebe a um poder escravizante, açoitaram-na à maneira dos reis, expulsaram-na de suas terras, e, arredados os outros, exerceram o poder sozinhos;

que o fim de tais discórdias (em que eles pretendiam dominar e a plebe se recusava a servir) só se verificou com a Segunda Guerra Púnica, porque de novo um grande medo começou a pesar sobre os Romanos, a desviar estas almas inquietas das suas agitações devido a um cui­dado maior, e a reconduzi-los à concórdia cívica. Mas por intermédio de alguns poucos, bons à sua maneira, começaram as grandes causas a ser administradas — e foi graças à previdência destes poucos bons que, suportadas e dominadas as provações, a república começou a desenvolver-se.

O mesmo historiador diz que, ao ouvir e ao ler muitas destas narrativas sobre os magníficos empreendimentos do povo romano na paz e na guerra, em terra e no mar, se comprouve em investigar o que é que tinha principalmente permitido aguentar o peso de tamanhas empresas. Sabia que muitas vezes com um punhado de homens os Romanos tinham enfrentado grandes legiões de inimigos, e tinha conhecimento de que haviam conduzido a guerra com poucas tropas contra reis opulentos. Depois de muitas reflexões disse que chegara à convicção de que tudo isto se devia à egrégia virtude de uns poucos cidadãos e que assim a pobreza vencera a opulência e um grupo reduzido vencera a multidão. E prossegue:

Mas desde que a cidade se corrompeu pelo luxo e pela ociosidade, foi a vez de a república sustentar pela sua magnanimidade os vícios dos seus generais e dos seus magistrados [ix].

Foi, pois, a virtude de uns poucos que se esforçaram por chegar pelo verdadeiro caminho à glória, à honra, ao poder, isto é, pela própria virtude, que foi louvada por Catão. Daí que, dentro da pátria, houvesse essa dedicação ao trabalho que Catão recorda, de forma que o erário fosse opulento e os negócios privados moderados. Mas o vício, depois de corrompidos os costumes, pôs as coisas do avesso: no Estado, a pobreza, — entre os particulares, a opulência.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Vergílio, Eneida, VIII, 646-648.
[ii] Vergílio, Eneida I, 279-285.
[iii] Vergílio, Eneida, I, 847-853.
[iv] Salústio, Catil., XI, 1 e segs.
[v] Salústio, Catii, LIV, 6.
[vi] II Cor., I, 12.
[vii] Gál., VI, 4.
[viii] Salústio, Catil., LII, 19-24.
[ix] Salústio, Hist. fragn., 1 ,11.

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