09/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual



A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO XXVI

Conselhos secretos dos deuses relativos aos bons costumes, ao mesmo tempo que, em público, se ensinava toda a casta de maldades nos actos de culto.

Estes é que são os factos: a pedido dos próprios deuses (que se irritam com os que lhos recusam) — em público e às claras faz-se o estendal das suas torpezas, com crimes à mistura, dos seus opróbrios e crimes reais ou fictícios. Consagram-lhos e dedicam-lhos em solenidades previamente fixadas e estabelecidas. Apresentam-nos como exemplos a imitar e, como espectáculo, fazem-se desfilar perante os olhares de todos. Mas então como é que é isto? Os próprios demónios
«que, nas representações, dão testemunho de que são eles os autores da vida criminosa e dissoluta com as suas infames façanhas reais ou simuladas»
«que solicitam os impudicos e coagem os pudibundos a representarem-na como espectáculo»
como é possível que se apresentem estes mesmos a darem, nos mais secretos esconderijos dos seus santuários, não sei que preceitos morais a alguns iniciados escolhidos? Se assim é, por isso mesmo há que evidenciar e confundir a barulhenta malícia dos espíritos nefastos. Tão grande é a força da probidade e da castidade que todo ou quase todo o ser humano aprecia no seu íntimo os elogios desta virtude — e por mais torpes que sejam os vícios que o dominaram, não chega a perder o sentido da honradez. É por isso que a malignidade dos demónios, se não lhes acontece por vezes, como se diz nas nossas Escrituras, transformarem-se em anjos de luz, nunca cumprirão os seus planos de impostura. Cá fora, junto do povo, uma obscena impiedade ressoa em estrepitoso barulho; mas, lá dentro, uma casti­dade dissimulada dificilmente é ouvida de poucos. Mostra-se ao público o vergonhoso e o louvável fica secreto. Esconde-se o decoro, patenteia-se o indecoro. O mal que se pratica atrai todos os espectadores; o bem que se apregoa, dificilmente encontra alguns auditores — como se nos tivéssemos de envergonhar das coisas honestas e vangloriar das desonestas. Mas onde é que isto se passa senão nos templos dos demónios? Onde senão nos antros da mentira? E faz-se isso para apanhar os mais honestos, que bem poucos são — e faz-se isto para que se não corrijam os pervertidos, que são muitos.

Onde e quando recebem os iniciados da Deusa Celeste lições de castidade, ignoramos nós. Todavia, mesmo diante do seu templo, onde víamos levantada a sua imagem, todos acorrem de toda a parte, e cada um aí se aguenta de pé como pode; olhamos atentos para os jogos que se desenrolam, voltando os nossos olhos, ora para o cortejo das meretrizes, ora para a deusa virgem. Adoram-na com súplicas, mas perante ela celebram-se torpezas. Não vimos lá nem histrião pudibundo nem actriz com vergonha. Todos os papéis estavam repletos de obscenidades. Sabiam o que é que agradava a esta virginal divindade, e exibia-se o que permitia a uma mulher casada voltar do templo muito «sabida». Algumas, mais pudicas, desviavam os olhos dos gestos lascivos, mas com um olhar furtivo aprendiam artimanhas do vício. É certo que na presença dos homens se sentiam envergonhada e não se atreviam a olhar à vontade para os gestos impudicos; mas ainda menos se atreviam a condenar na castidade do seu coração os ritos de uma divindade que elas veneravam. Era num templo que estas coisas se ensinavam publicamente, mas, para se praticarem, procurava-se pelo menos um lugar secreto, em casa. O pudor dos mortais (se, lá, algum pudor houvesse) ficaria muito admirado por os homens não cometerem livremente os actos vergonhosos que se aprendiam religiosamente junto dos deuses e que estes ordenavam se exibissem sob pena de virem a incorrer na sua cólera. Que outro espírito seria capaz de excitar as mentes pervertidas por um secreto instinto e impeli-las ao adultério e a comprazer-se nele uma vez cometido, senão o que se compraz em tais ritos,
levanta nos templos estátuas aos demónios,
ama nos jogos as representações dos vícios,
murmura em segredo palavras de justiça, para assim enganar alguns poucos bons
e multiplica em público os incitamentos à perversão, para se assenhorear da multidão dos maus?

CAPÍTULO XXVII

Sob o pretexto de apaziguarem os deuses, os Romanos, ao sacralizarem os jogos obscenos, destruíram a disciplina pública.

Túlio, homem grave, mas filósofo amador, quando estava para ser edil, clamou aos ouvidos da cidade que um dos seus deveres de magistrado era o de apaziguar a deusa- -mãe Flora com a celebração de jogos. Esses jogos costumavam ser celebrados tanto mais devotamente quanto mais torpes. Diz noutra altura, quando já era cônsul, por ocasião de um dos mais graves perigos da cidade, que, durante dez dias, foram realizados jogos sem ser omitido qualquer rito apropriado para apaziguar os deuses. Como se irritar tais deuses com a temperança não fosse preferí­vel a aplacá-los com a luxúria, e provocar a sua inimizade com a honradez não fosse preferível a amansá-los com tamanha dissolução! Na realidade esses homens por causa dos quais se aplacavam os deuses, por muito atroz que fosse a sua ferocidade, não seriam mais nocivos do que os próprios deuses ao serem apaziguados com vícios tão repugnantes. Efectivamente, para desviarem o perigo com que o inimigo ameaçava os corpos, conciliavam-se os deuses por meios que arruinavam a virtude nas almas. Não se prestavam a ser defensores das muralhas contra os assaltantes senão depois de se terem tornado destruidores dos bons costumes.

Esta é a apaziguação de tais numes — a mais petulante, a mais impura, a mais impudente, a mais iníqua, a mais imunda; a louvável e instintiva virtude romana privou os seus actores de toda a dignidade, expulsou-os da tribo, declarou-os desonrados e taxou-os de infames. Esta é, repito, a impudica apaziguação de tais numes, — desprezível, abomi­nável, vergonha da verdadeira religião. Estas são as sedutoras fábulas ultrajantes para os deuses. Estes são os ignominiosos actos dos deuses — criminosa e vergonhosamente cometidos ou mais criminosa e vergonhosamente inventados. Era isto que toda a cidade aprendia publicamente pelos olhos e pelos ouvidos. Vendo que os deuses se compraziam com tais crimes, julgava que era preciso não só exibi-los mas também imitá-los. Não sei o que de bom e de honesto se ensinava (se é que se ensinava) a tão poucos, e tão ocultamente que mais se temia que fosse conhecido do que infringido.

CAPÍTULO XXVIII

Carácter salvífico da religião cristã.

Ao verem que, pelo nome de Cristo, os homens se libertavam do jugo infernal dessas potestades imundas e da sua comunidade de castigo, ao verem que os homens passavam da perniciosíssima noite da impiedade para a luz salutar da piedade,
— os iníquos e ingratos, profunda e enraizadamente possuídos por esses espíritos nefastos, lastimam-se e murmuram.

E isto porque as multidões afluem às igrejas: formam uma casta assembleia com uma separação honesta de sexos; ali aprendem como se deve viver virtuosamente no tempo para, depois da morte, se merecer a felicidade na eternidade; ali, na presença de todos e de um lugar elevado se proclamava a Santa Escritura; os que a não cumprem, ouvem-na para castigo. Se por acaso, ali acorrem alguns zombadores de tais preceitos, toda a sua petulância em repentina mudança se desvanece ou é reprimida pelo temor e pelo respeito. Efectivamente, ali nada de vergonhoso, nada de vicioso é proposto para ser visto ou para ser imitado; ali se inculcam os preceitos e se contam os milagres do verdadeiro Deus; ali se louvam os seus dons ou se solicitam as suas graças.

CAPÍTULO XXIX

Exortação aos Romanos para que abandonem o culto dos deu­ses.

Cobiça antes estes bens, ó louvável índole romana, ó raça dos Régulos, dos Cévolas, dos Cipiões, dos Fabrícios. Cobiça antes estes bens. Distingue-os daquela torpíssima vaidade, da tão falaz malignidade dos demónios. Se em ti algo de louvável sobressai, só pela verdadeira piedade pode ser purificado e aperfeiçoado, mas perde-se ou arruína-se pela impiedade. Escolhe agora já o caminho a seguir, para que, sem resquícios de erro, sejas louvada, não em ti mas em Deus verdadeiro. Tiveste outrora glória entre os povos — mas, por um secreto desígnio da Providência divina, faltou-te o poder de escolher a verdadeira religião. Acorda! É dia! Acorda como acordaste em alguns de teus filhos de cuja virtude perfeita e sofrimentos suportados pela verdadeira fé nos gloriamos. Lutaram até ao fim contra as mais hostis potências. Triunfaram morrendo valorosamente os que

pelo seu sangue nos geraram esta pátria [i].

Para esta pátria te convidamos e exortamos. Junta-te ao número dos seus cidadãos porque ela tem como que por asilo a verdadeira remissão dos seus pecados. Não ouças os ... teus filhos degenerados que caluniam Cristo e os cristãos, pretendendo responsabilizá-los por estes tempos de desgraça, e que buscam o tempo de gozar não uma vida tranquila, mas antes o vício em segurança. Jamais te satisfizeram esses tempos, nem mesmo para a tua pátria terrena. Apodera-te agora já da pátria celeste. Por ela pouco trabalharás — e nela reinarás na verdade e para sempre. Aí não terás o fogo de Vesta nem a pedra do Capitólio, mas o único e verdadeiro Deus que

não porá limites nem ao teu espaço nem à tua duração. E dar-te-á um império sem fim [ii].

Não procures os deuses falsos e enganosos. Rejeita-os e despreza-os. Atira-te para a verdadeira liberdade. Não são deuses. São espíritos perversos para quem a tua felicidade eterna é a sua pena. Parece que Juno não invejou tanto aos Troianos (de quem tiras a origem carnal) as fortalezas romanas, como estes demónios (que até agora consideras deuses) invejam a todo o ser humano as moradas eternas. Tu própria formaste, em parte não pequena, um juízo de tais espíritos, quando os aplacaste com jogos, mas quiseste que fossem considerados infames os histriões que os representassem. Reclama a tua liberdade contra os espí­ritos imundos que põem sobre os teus ombros a carga de consagrar festas às suas ignomínias. Afastaste dos cargos honoríficos os actores dos crimes divinos: suplica ao verdadeiro Deus que afaste de ti estes deuses que se deleitam com os seus próprios crimes, quer verdadeiros — o que é o máximo da ignomínia — quer falsos — o que é o máximo da perversidade. Muito bem por espontaneamente teres recusado o acesso à sociedade civil aos histriões e aos cénicos! Acorda a valer! De modo nenhum a majestade divina se aplaca com artes que maculam a dignidade humana. Como podes entre as Santas Potestades celestes colocar deuses que se deleitam com tais honras, ao mesmo tempo que aos homens encarregados de lhes oferecerem essas homenagens os consideras como não devendo ser contados no número dos cidadãos romanos de qualquer classe?

Incomparavelmente mais gloriosa é a cidade do Alto, onde a vitória é a verdade, onde a dignidade é a santidade, onde a paz é a felicidade, onde a vida é a eternidade. Se te envergonhas de teres tais homens na tua sociedade, muito menos terá ela tais deuses na sua. Se, por­tanto, desejas chegar à cidade bem-aventurada, evita a sociedade dos demónios. É indigno que sejam venerados por gente honesta aqueles que são aplacados por gente desprezível. Sejam, pois, afastados da tua piedade pela purificação cristã, tal qual como os afastou das tuas dignidades a nota do censor.

Quanto aos bens carnais, únicos de que os maus querem gozar, e quanto aos males carnais, únicos que não querem suportar — os demónios não têm sobre eles o poder que se lhes atribui. (E, mesmo que o tivessem, seria preferível desprezar esses bens a, por causa deles, prestar- -lhes culto e, prestando-lhes culto, pormo-nos na impossibilidade de chegar aos bens que eles nos invejam). Mas eles não têm nos bens de cá o poder que lhes atribuem aqueles que sustentam que é preciso venerá-los no interesse desses bens. Vê-lo-emos mais tarde. Por agora, ponho termo a este livro. 

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] sanguine nobis Hanc patriam peperere suo... Vergílio, Eneida, XI, 24-25.
[ii] ... nec metas rerum nec tempore ponit: Imperium sine fine dabit... Vergílio, Eneida, I, 278-279.

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