LIVRO
IV
CAPÍTULO
XXXI
Opinião
de Varrão, que reprova as crenças populares e, embora não tenha chegado à
crença do verdadeiro Deus, pensa que se deve adorar a um só Deus.
Não é verdade que o próprio Varrão, (dói-nos que
ele tenha posto os jogos cénicos na categoria das coisas divinas, embora não
por iniciativa própria), quando exorta, em muitas passagens, como homem
religioso que era, a que se venerem os deuses, confessa que segue sem convic
ção pessoal as cerimónias instituídas, como recorda, pela Cidade Romana e que
não hesita em confessar que, se tivesse de constituir a cidade de novo,
consagraria os deuses e os seus nomes segundo uma regra tirada de preferência
da natureza? Mas, como já estava integrada no velho povo, julgou que devia
conservar a história dos nomes e sobrenomes tal como tinha sido transmitida. O
fim das suas descrições e investigações consiste em levar o povo ao culto, mais
do que levá-lo ao desprezo dos deuses.
Por tais palavras, este homem tão arguto dá
suficientemente a entender que nem tudo refere porque muitos pormenores não só
provocariam o seu desdém como até suscitariam a repulsa do próprio vulgo se não
se calassem. Poder-se-ia julgar que o que digo são meras conjecturas minhas, se
ele próprio, noutra passagem, ao falar das coisas religiosas, não declarasse
abertamente que há muitas coisas verdadeiras de que é inútil instruir o povo, e
também muitas que, embora falsas, é vantajoso para o povo tomá-las por
verdadeiras. É por isso que os Gregos ocultavam atrás dos muros e no silêncio a
celebração de suas iniciações e mistérios.
Deixou aqui bem patente o que tramam os
sabichões para o governo dos povos e das cidades. E nestes logros que se
deleitam (de miríficas maneiras) os demónios malignos que detêm em seu poder
tanto enganadores como enganados e de cuja dominação só os pode libertar a
graça de Deus por Jesus Cristo Senhor Nosso.
Diz ainda o mesmo argutíssimo e doutíssimo
escritor que lhe parece que só compreendem a natureza de Deus os que crêem que
ele é uma alma que dirige o universo com movimentos e com leis. Por isso,
embora ainda não estivesse na posse da verdade (pois o verdadeiro Deus não é
uma alma, mas o criador e autor da alma), todavia, se pudesse estar livre dos
preconceitos tradicionais, teria proclamado e recomendado o culto a um só Deus,
governador do mundo a que imprime movimento e fixa leis. E assim não restaria
acerca deste assunto senão uma questão: a de ele dizer que Deus é uma alma em
vez de criador da alma.
Diz também que, durante mais de cento e
setenta anos, os antigos romanos adoraram os deuses sem representações. Diz
ele:
Se isto se mantivesse até agora, o culto dos deuses teria
sido mais puro.
Como prova da sua asserção invoca, entre
outros, o Povo Judeu. Nem tem dúvidas em terminar esta passagem desta maneira:
Os primeiros que erigiram para o povo estátuas de deuses
suprimiram do meio dos seus concidadãos o temor, mas aumentaram o erro
julgando
sensatamente que os deuses podiam facilmente ser desprezados sob a aparência
estúpida de ídolos. Na verdade, não diz:
Introduziram o erro,
mas sim
aumentaram.
Quis assim, com certeza, dar a entender que,
mesmo sem ídolos, o erro já existia. Por isso, quando declara que só
compreendem o que seja Deus os que o têm por uma alma que governa o universo e
considera mais puro que se observe a religião sem ídolos, quem não verá quanto
ele está próximo da verdade? Se ele alguma coisa pudesse contra a antiguidade
de tão grande erro, sem dúvida que teria acreditado num Deus único que governa
o mundo e teria pensado que Aquele se deve adorar sem ídolos.
Encontrando-se tão perto da verdade, poderia
talvez reconhecer facilmente a mutabilidade da alma e isso tê-lo-ia levado a
conceber que o verdadeiro Deus é, por natureza, imutável e, consequentemente,
criador da própria alma.
Porque assim é, todos esses motivos de
escárnio respeitantes à multidão dos deuses que tais homens compilaram nos seus
livros, foram eles obrigados por uma secreta vontade de Deus mais a
confessá-los do que a tentarem convencer-nos deles. Se daqui tiramos alguns
testemunhos — fazemo-lo para refutar os que se não querem aperceber de quão
grande e quão maligno é o poder dos demónios de que nos libertarão o sacrifício
único de tão santo sangue derramado e o dom do Espírito que nos foi concedido.
CAPÍTULO
XXXII
Sob
que pretexto de utilidade os chefes das nações quiseram que as falsas religiões
se mantivessem entre os povos que lhes estavam submetidos.
Diz ainda Varrão, a propósito da genealogia
dos deuses, que os povos estão mais inclinados a ouvir os poetas do que os
filósofos. É por isso que os seus antepassados, isto é, os antigos romanos,
acreditaram no sexo e na genealogia dos deuses e lhes atribuíram casamentos.
Parece que isto aconteceu só pela razão de que a pretensa prudência e sabedoria
dos homens se preocupava em enganar o povo em matéria de religião, servindo
assim e imitando os demónios, cujo maior desejo é enganar. Com efeito, assim
como os demónios não se podiam apoiar senão naqueles que começaram por enganar,
assim também os chefes, certamente homens não justos, mas semelhantes aos
demónios, inculcavam como verdade aos povos, sob o nome de religião, crenças
que sabiam que eram vãs. Desta maneira, prendiam-nos, a bem dizer, mais
eficazmente, à sociedade civil, para os manterem semelhantemente submetidos.
Quem, pois, débil e ignorante, poderia escapar a chefes das nações e demónios,
uns e outros enganadores?
CAPÍTULO
XXXIII
É
pelo juízo e pelo poder do verdadeiro Deus que os tempos de todos os reis e de
todos os impérios são ordenados.
É, pois, Deus, autor e dispensador da
felicidade, porque é ele o único Deus verdadeiro, quem concede os reinos da
Terra tanto aos bons como aos maus. E não o faz à toa, como que fortuitamente
(pois que Ele é que é o verdadeiro Deus e não a fortuna), mas conforme a ordem
das coisas e dos tempos, para nós oculta mas dele perfeitamente conhecida. Ele
não serve nem está submetido a esta ordem dos tempos. Pelo contrário, é Ele
que, como senhor, a rege e, como moderador, a ordena. Mas a felicidade — essa
dá-a aos bons. Podem tê-la ou não os que servem; podem tê-la ou não os que
reinam. Todavia, só será plena naquela vida onde já ninguém terá que servir. E
por isso que os reinos da Terra são por Ele concedidos tanto aos maus como aos
bons: Ele não quer que os seus adoradores, ainda crianças na vida moral,
desejem d ’Ele esse dom como qualquer coisa de grande.
É este o mistério do Antigo Testamento, no
qual se ocultava o Novo: nele, as promessas e os dons são de ordem terrena. Mas
os homens espirituais de então já compreendiam, sem, todavia, o pregarem abertamente,
de que eternidade eram figura estas coisas temporais e em que dons divinos
consistia a verdadeira felicidade.
CAPÍTULO
XXXIV
O
reino dos Judeus foi instituído e conservado pelo único e verdadeiro Deus
enquanto eles se mantiveram na verdadeira religião.
Também, para fazer compreender que estes bens
terrenos, únicos a que aspiram os que não podem conceber outros melhores,
dependem do poder do próprio Deus único e não da multidão dos falsos que os
Romanos outrora acreditaram que deviam ser venerados, multiplicou Ele o seu
povo no Egipto, a partir de um reduzido número de indivíduos, e libertou-o por
meio de sinais maravilhosos. E não foi a Lucina
que invocaram as mulheres judias quando, das mãos dos Egípcios perseguidores,
que procuravam matar todos os seus filhos, Ele próprio salvou os seus
recém-nascidos para que de forma prodigiosa se multiplicassem e aquele povo
crescesse de maneira incrível. Mamaram sem a deusa Rumina; estiveram nos seus berços sem Cunina; comeram e beberam sem
Educa e sem Potina; foram educados sem tantos deuses da infância; casaram sem
os deuses conjugais; uniram-se aos respectivos cônjuges sem o culto de Priapo, sem invocarem Neptuno, o mar abriu-se aos que passavam
e as ondas se fecharam sobre os inimigos que os perseguiam; não se consagraram
a qualquer deusa Mania quando
receberam o maná caído do céu; não veneraram as Ninfas nem as Linfas quando
a água jorrou da rocha batida quando estavam sequiosos; conduziram a guerra sem
os insensatos ritos de Marte e de Belona e, se não venceram certamente sem
a vitória, nem por isso consideraram esta como uma deusa mas como uma dávida do
seu Deus; tiveram searas sem Segetia,
bois sem Bubona, mel sem Melona, fruta sem Pomona, numa palavra — todos estes bens pelos quais os Romanos
julgavam que deviam invocar uma tão grande multidão de falsos deuses,
receberam-nos eles de uma forma mais feliz do único Deus verdadeiro.
E, se contra Ele não tivessem pecado por uma
curiosidade ímpia, se d’Ele afastados por pretensas artes mágicas, não
deslizassem para os deuses estrangeiros e os ídolos, e se, por fim, não
tivessem dado a morte a Cristo — manter-se-iam no mesmo reino, embora não mais
espaçoso, todavia mais feliz. E agora o facto de se apresentarem dispersos por
quase todas as terras e nações, constitui uma decisão providencial daquele
único e verdadeiro Deus. E assim a destruição das imagens, dos altares, dos
bosques sagrados e dos templos dos falsos deuses, e a proibição dos
sacrifícios, que se vão verificando por toda a parte, pode provar-se pelos livros
deles como tudo de há muito estava profetizado, para que, quando se lerem estas
previsões nos nossos livros, se não possa pensar que as inventámos. Deixemos
para o próximo livro a continuação destas considerações e ponhamos termo aqui a
esta longa exposição.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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