Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
XXII
Culto
dos deuses: Varrão gaba-se de ter trazido aos Romanos esta ciência.
Como é então que Varrão se gaba de ter
prestado aos seus concidadãos um ingente serviço, não só por lhes ter lembrado quais
os deuses que os Romanos deviam venerar, mas também por referir a função a atribuir
a cada um deles? «De nada serve, diz ele, conhecer de nome e de vista um médico
se não se sabe que é médico. Da mesma forma, de nada te serve saber que
Esculápio é um deus se não sabes que ele alivia os doentes e, portanto, porque
é que deves suplicar-lhe». Confirma isto com outra comparação quando diz: «Não
só ninguém pode viver bem, mas nem sequer viver pode, se ignora quem é
ferreiro, quem é padeiro, quem é estucador, a quem é que se pode pedir tal
utensílio, a quem se pode tom ar como ajuda, como guia, como mestre. Deste
modo, declara ele, ninguém pode duvidar de quão útil é o conhecimento dos
deuses se souber qual a força, qual a competência e quais os poderes que cada
um possui sobre cada coisa. Deste modo, diz ele, podemos saber por que causa e
a que deus devemos invocar para nossa ajuda ou nossa defesa, para que não
procedamos como costumam os histriões e peçamos água a Libero e vinho às
Ninfas».
Que grande serviço, não há dúvida! Quem não
lhe agradeceria se ele tivesse mostrado a verdade e ensinado aos homens a
adorar o único verdadeiro Deus, do qual provêm todos os bens!
CAPÍTULO
XXIII
A
Felicidade, à qual os Romanos, adoradores de muitos deuses, durante muito tempo
não prestaram honras divinas, bastaria ela sozinha com exclusão de todos os
demais.
Mas, (voltando ao assunto) se os seus livros
e o seu culto são verdadeiros e se a Felicidade é uma deusa, porque é que se
não resolveram a venerá-la a ela apenas, pois que ela sozinha poderia tudo
conceder e sem delongas tom ar o homem feliz? Efectivamente, quem é que não
deseja acima de tudo o que o pode tom ar feliz? Porque é que só tão tarde e
depois de tantos romanos ilustres é que Luculo construiu um templo a uma tão
grande deusa? Porque é que o próprio Rómulo, que desejava fundar uma cidade
feliz, não começou por levantar um templo a esta deusa, nada tendo que pedir
aos outros, uma vez que nada lhe faltaria se lhe assistisse a Felicidade? É
que, se esta deusa lhe não tivesse sido propícia, nem ele começaria por ser rei
nem mais tarde se tom aria, como julgam, um deus. Para quê, pois, estabelecer
como deuses dos Romanos a Juno, Júpiter, Marte, Pico, Fauno, Tiberino, Hércules
e outros mais? Para que é que Tito Tácio lhes acrescentou Saturno, Ope, o Sol,
a Lua, Vulcano, a Luz e alguns mais, entre os quais a deusa Cluacina,
esquecendo-se da Felicidade? Para que é que Numa trouxe tantos deuses e tantas
deusas sem aquela? Será que não a conseguiu ver no meio de tão grande multidão?
Com certeza que o próprio rei Hostílio não introduziria deuses novos, como o
Pavor e o Palor, para que lhe fossem propícios, se tivesse conhecido esta deusa
e a adorasse. É que todo o pavor e todo o palor não só se retirariam depois de
venerados, mas até fugiriam repelidos pela simples presença da Felicidade.
Depois — como é que o Império Romano já se
alargava e dilatava tanto, quando ainda ninguém venerava a Felicidade? Será que
ele era maior do que feliz? Como é que, na verdade, se podia encontrar a
verdadeira felicidade onde não estava a verdadeira piedade? É que a piedade é o
culto autêntico do verdadeiro Deus, não o culto de tantos falsos deuses quantos
são os demónios. Mas, posteriormente, quando a Felicidade já tinha sido
recebida no grémio das divindades, é que se seguiu a grande infelicidade das
guerras civis. Acaso será que a Felicidade se sentiu justamente indignada por
tão tardiamente ter sido convidada a partilhar, não para ser honrada, mas
humilhada, o culto de Priapo, de Cluacina, de Pavor, de Palor, da Febre e de
outras que não são divindades que se devam adorar, mas antes crimes dos seus
adoradores?
Finalmente, se pareceu que se devia prestar
culto a tão eminente deusa juntam ente com esta indigníssima turba, porque é
que, pelo menos, não foi venerada com mais brilho do que os outros? Quem suportará
que não tenha a Felicidade sido colocada entre os deuses Consentes, membros,
segundo se diz, do Conselho de Júpiter, nem entre os chamados deuses Selectos?
Deviam ter-lhe levantado um templo que se impusesse pela proeminência do local
e pela dignidade da construção. Porque é que não se fez para ela coisa melhor
do que para o próprio Júpiter? Pois quem concedeu a Júpiter a própria realeza
se não a Felicidade — se é que foi feliz no seu reinado? E mais que o reinado
vale a felicidade. Ninguém de facto duvida de que é fácil encontrar um homem
que receie tornar-se rei; mas não se encontra ninguém que não queira ser feliz.
Suponhamos que se consultam os próprios deuses sobre este assunto, por meio de
áugures ou por qualquer outro modo, e se lhes pergunta se consentiriam em ceder
o lugar à Felicidade: se por acaso os templos e os altares dos outros deuses
ocupavam todo o sítio indicado para construir um templo maior e mais belo à
Felicidade, — o próprio Júpiter se afastaria para que o cume da colina do Capitólio
fosse antes destinado à Felicidade. Ninguém, na verdade, resistiria à
Felicidade, a não ser (o que não pode acontecer) quem quisesse ser infeliz. Se
fosse consultado, de forma nenhuma Júpiter faria o que a ele lhe fizeram os
três deuses — Marte, Término e Juventas — que de modo nenhum quiseram ceder o
lugar ao seu superior e rei. Efectivamente, referem os seus livros, quando o
rei Tarquínio pretendeu construir o Capitólio, notou que esse lugar, que lhe
pareceu o mais digno e o mais apropriado, já estava ocupado por outros deuses.
Não se atreveu a fazer fosse o que fosse contra a determinação deles, julgando
que eles se afastariam voluntariamente perante tão alta divindade e chefe seu.
Porque eram muitos os que se encontravam na colina do Capitólio, perguntou-lhes
por intermédio dos áugures se queriam ceder o lugar a Júpiter. Todos quiseram
ceder-lho menos aqueles que citei — Marte, Término e Juventas. E por isso o
Capitólio foi edificado de" maneira a manter estes três deuses no seu
interior, mas sob representações tão obscuras que apenas os mais doutos sabiam
disso. O próprio Júpiter não teria, pois, desprezado a Felicidade como ele foi
desprezado por Término, Marte e Juventas. E até estes deuses que não cederam o
lugar a Júpiter com certeza o cederiam à Felicidade, que fizera de Júpiter seu
rei. Ou então, se não cedessem, não o fariam por desprezo, mas por preferirem
manter-se obscuros na casa da Felicidade a brilhar sem ela em locais próprios.
Assim, uma vez instalada a Felicidade num
local espaçoso e elevado, os cidadãos ficariam a saber onde deviam ir implorar
auxílio para todas as suas legítimas aspirações; e assim, por imposição da
própria natureza, teriam abandonado a supérflua multidão dos outros deuses e
prestado culto apenas à Felicidade; só a ela teriam orado; só o seu templo
teria sido frequentado pelos cidadãos que quisessem ser felizes — e ninguém há
que não o queira; e assim seria a ela própria que a pediriam em vez de a
pedirem a todos os outros. Que é, de facto, que se pretende obter de um deus
senão a felicidade, ou pelo menos o que parece referir-se-lhe? Se, portanto, a
Felicidade tem o poder (e tem-no se é deusa) de se dar a qualquer um, que
loucura solicitar de um outro deus o que dela própria pode obter? Esta deusa,
portanto, devia ser venerada acima de todos os deuses, mesmo pela dignidade do
lugar. De facto, como se lê nos seus próprios escritores, os antigos Romanos
veneraram a um não sei que Sumano, ao qual atribuíam os trovões nocturnos, mais
do que a Júpiter, ao qual pertencem os trovões diurnos. Mas, depois da
construção de um esplêndido e eminente templo a Júpiter, as multidões a ele de
tal modo afluíram por causa da dignidade do edifício, que dificilmente se
encontraria quem se lembrasse de ter lido ao menos o nome de Sumano, pois já
não era possível sequer ouvi-lo. Se, portanto, a felicidade não é uma deusa,
pois que, esta é que é a verdade, é antes um dom de Deus, procure-se então esse
Deus que a pode dar, e abandone-se essa maléfica multidão de falsos deuses que
uma vã multidão de homens estultos segue, fazendo deuses dos dons de Deus e
ofendendo, com a contumácia duma vontade orgulhosa, Aquele de quem esses dons
são. Efectivamente, não pode deixar de ter infelicidade quem adora a
felicidade, como se fosse um deus, e abandona o Deus dador de felicidade; como
não pode deixar de ter fome quem lambe pão em pintura e não o pede a quem o tem
de verdade.
CAPÍTULO
XXIV
Com
que argumentos defendem os pagãos que se devem adorar os dons divinos tal como
os próprios deuses.
Convém, porém, examinar as suas razões. Até
que ponto, dizem eles, se deve crer que os nossos antepassados eram tão tolos
que não sabiam que os dons divinos não são deuses? Sabiam que tais dons a
ninguém são concedidos a não ser por concessão de um deus. Mas como não
descobriam o nome desses deuses, deram-lhes o nome das coisas que julgavam que
por eles eram concedidas: alguns faziam-no por meio duma derivação da palavra —
assim de bellum (guerra) formaram Bellona e não Bellum; de cuna (berço) formaram Cunina e não Cuna; de seges (seara) formaram Segetia e não Seges; de bos (boi)
tiraram Bubona e não Bos; de poma (fruto) tiraram Pomona
e não Poma. Mas às vezes, sem
qualquer alteração da palavra, davam aos deuses o nome das coisas. Assim
chamaram Pecunia à deusa que concede
dinheiro {pecunia) sem, todavia, se considerar pecunia (= dinheiro) uma deusa; Virtus a que dá a virtude, Honor, a deusa que confere a honra; Concordia a deusa que concede a
concórdia, Victoria a que dá a
vitória. Assim, dizem eles, quando se diz que a Felicidade é uma deusa,
entende- -se, não a própria felicidade, que é dada, mas a divindade por quem a
felicidade é dada.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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