Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
VI
Ambição
do rei Nino, que, para estender os seus domínios, começou por declarar a
guerra aos seus vizinhos.
Justino, que, seguindo Trogo Pompeio,
escreveu uma História Grega, ou antes
História Estrangeira, não somente em
latim, como este, mas mais abreviada, começou assim a obra dos seus livros:
No princípio, o poder sobre
os povos e as nações encontrava-se todo nas mãos dos reis, guindados a esta
suprema dignidade, não pela ambição popular, mas pela sabedoria que os bons
lhes reconheciam. O povo ainda não estava vinculado a leis; mais do que
estendê-los, era costume proteger os limites do Estado! Para cada um, esses
limites identificavam-se com as fronteiras da sua própria pátria. Nino, da Assíria,
foi o primeiro que, impelido por uma ambição até então ignorada, mudou estes
antigos e quase ancestrais hábitos. Foi ele o primeiro a declarar guerra aos
seus vizinhos e a estender o seu domínio até às fronteiras da Líbia sobre
populações ainda ignorantes da arte de se defenderem [i].
Depois acrescenta:
Nino consolidou por uma posse duradoura o vasto império
que tinha conquistado. Vencidos que foram os seus vizinhos, cada vez mais forte
com o aumento das suas tropas, marchou contra os outros povos, servindo cada
vitória de instrumento para a segunda, e assim submeteu os povos de todo o
Oriente.
Qualquer que seja a fidelidade aos factos
referidos por este ou por Trogo (efectivamente, outros escritores mais fiéis
evidenciam alguns dos seus erros), consta, porém, nos demais escritores que
Nino estendeu e alargou o reino dos Assírios. Sua duração foi até superior à
que o Império Romano até agora atingiu. Na verdade, como escreveram os que
continuaram a história cronológica, manteve-se este reino durante mil duzentos
e quarenta anos desde o primeiro ano em que Nino começou a reinar até passar
para os Medos.
Levar a guerra aos vizinhos, avançar depois
para novas conquistas, esmagar e submeter por pura ambição de domínio povos
pacíficos — que outro nome merece isto senão o de imensa quadrilha de ladrões?
CAPÍTULO
VII
Serão
os reinos da Terra ajudados ou abandonados pelos deuses no decurso do seu
progresso ou do seu retrocesso?
Se este reino foi tão extenso e tão duradouro
sem o menor auxílio dos deuses, porquê atribuir aos deuses romanos tão amplo em
extensão e tão longo no tempo, o domínio romano? Porque, qualquer que seja a
causa daquele, tem que ser a mesma deste. Se se pretende que se deve atribuir
aquele ao auxílio dos deuses, pergunto de quais. Porque os outros povos que
Nino conquistou e subjugou não adoravam deuses alheios. Ou, se os Assírios
tiveram deuses próprios, estes, obreiros mais hábeis na arte de construir e de
conservar um império, terão morrido quando esse povo perdeu o seu império? Ou,
porque lhes não era pago o devido salário ou porque receberam melhores ofertas,
preferiram passar-se para os Medos e destes, mais tarde, para os Persas, a
convite de Ciro que lhes fazia ofertas mais vantajosas? De resto, este povo,
depois do Império de Alexandre da Macedónia, grande em tamanho, mas muito breve
no tempo, perdura até hoje em extensas regiões do Oriente.
Se assim é — ou os deuses são uns traidores
que abandonam os seus e se passam para os inimigos (o que nem um simples homem
como Camilo fez, quando, depois de ter vencido e tomado de assalto a cidade
mais encarniçada inimiga de Roma, sentiu a ingratidão desta; todavia, esqueceu
logo a injúria e, lembrado da pátria, livrou-se mais uma vez dos Gauleses);
— ou não são tão fortes como
convém aos deuses que sejam fortes, eles que podem ser vencidos pelas decisões
ou força humanas;
— ou guerreiam-se uns aos
outros e são vencidos, não por homens mas por outros deuses próprios de cada
cidade, alimentando portanto entre si inimizades que cada um exerce a favor da
sua facção. Uma cidade não devia, por conseguinte, venerar os seus deuses de
preferência a outros pelos quais os seus poderão não ser ajudados.
Enfim, de qualquer modo que se interprete
essa passagem para o inimigo, ou essa fuga, ou essa migração ou essa defecção
dos deuses em pleno combate, — ainda o nome de Cristo não tinha sido pregado
nesses tempos e nessas regiões da Terra, quando aqueles impérios, no decurso de
ingentes calamidades bélicas, se perderam ou passaram a outros. Mas, se a
religião cristã já aí tivesse pregado um outro reino, esse eterno, e proscrito
o culto sacrílego dos falsos deuses quando, depois de uma existência de mais de
mil e duzentos anos, o seu reino tivesse sido arrebatado aos Assírios, — que
não teriam dito os espíritos frívolos dessa nação, senão que um reino
conservado durante tanto tempo não podia perecer senão por uma causa: o
abandono da sua religião e a introdução de uma religião nova?
Fixem neste possível clamor da vaidade a sua
atenção e, se lhes resta ponta de pudor, envergonhem-se de queixumes
semelhantes. O Império Romano sofreu mais um duro choque do que uma mudança;
suportou provas como as doutros tempos antes do nome de Cristo, das quais se
refez. Não se deve, pois, desesperar, nos tempos que correm. Efectivamente,
quem conhece, a este respeito, a vontade de Deus?
CAPÍTULO
VIII
Com
o patrocínio de que deuses julgam os Romanos que o Império se dilatou e
manteve, uma vez que se convenceram de que a protecção de cada coisa devia ser
confiada a cada deus em particular.
Se estais de acordo, indaguemos agora qual é
ou quais são, no meio de tamanha turba de deuses adorados pelos Romanos, qual
ou quais os que eles julgam que dilataram e mantiveram o império. Em trabalho
tão preclaro e tão cheio de dignidade não ousarão com certeza atribuir qualquer
quinhão à deusa Cluacina nem a Volúpia — assim chamada devido à voluptuosidade;
nem a Lubertina, cujo nome vem de libido [ii]
nem a Vaticano, que preside aos vagidos das crianças; nem a Cunina, que vigia
sobre os seus berços (cunae). Mas,
como é que num só capítulo deste livro podem ser mencionados os nomes de todos
os deuses e de todas as deusas que dificilmente poderão caber em grossos
volumes que tratam dos ofícios de cada deus para cada tarefa? Acharam que nem
sequer deviam confiar a um só deus os trabalhos de campo mas entregaram os
plainos à deusa Rusina (nus — campo),
os cumes (juga) dos montes a Jugatino, as encostas (collis) à deusa Collatina, os vales a Valónia. Nem mesmo puderam
reservar só para Segetia as ceifas (segetes)
— mas puseram a deusa Seia a presidir às sementes, enquanto estão debaixo da
terra; a deusa Segetia, quando já estão acima da terra até à ceifa; a deusa
Tutilina, à conservação do grão colhido e recolhido para se conservar em
segurança (tuta). A quem é que não
pareceria suficiente aquela Segetia a todo o desenvolvimento da messe desde que
nasce até que a espiga amadureça? Tal não bastou, porém, a homens amantes de
uma multidão de deuses — e assim prostituíram a sua mísera alma à turba de
demónios, desprezando o casto abraço do único Deus verdadeiro. Puseram por isso
Prosérpina a presidir à germinação do trigo, o deus Nóduto aos gomos e nós (nodus) dos caules, a deusa Volutina ao
envoltório das folhas; a deusa Patelana à abertura dos folículos para que a espiga
passe; a deusa Hostilina, quando as espigas vão igualando as suas barbas, pois
os antigos para «igualar» (aequare)
usavam o verbo hostire; a deusa Flora
à floração do trigo; o deus Lactumus quando está leitoso; a deusa Matuta à
maturação; a deusa Runcina quando se arrancam (runcare), isto é, quando o levam da terra. E não enumero a todos
porque me aborrece o que a eles não causa vergonha.
O pouco que disse é para que se compreenda
que os Romanos de nenhuma forma ousavam atribuir o estabelecimento do Império
Romano, a sua dilatação, a sua manutenção a divindades que estavam de tal modo
especializadas, cada uma em seu ofício, que a nenhuma foi confiado um emprego
global. Como é que, portanto, Segetia teria tomado a seu cuidado o Império, ela
a quem não era permitido ocupar-se ao mesmo tempo das searas e das árvores?
Como é que Cunina poderia pensar nas armas, ela a quem não era permitido deixar
o berço das crianças? Como é que Nóduto poderia prestar ajuda na guerra, ele
que nem ao invólucro da espiga mas apenas aos nós dos caules estava vinculado?
Cada um põe em sua casa apenas um porteiro e embora seja um só homem, basta
perfeitamente; mas eles colocaram três deuses — Fórculo nas portas (fores), Cárdea nos gonzos (cardo), Limentino à soleira (limen). E assim Fórculo não podia
guardar ao mesmo tempo os gonzos e a soleira.
CAPÍTULO
IX
Se
a extensão e a duração do Império Romano se devem atribuir a Júpiter, que os
seus adoradores consideram como o maior dos deuses.
Deixemos, pelo menos por momentos, essa turba
de minúsculos deuses, e procuremos, como devemos, o papel dos deuses maiores,
graças ao qual Roma se tomou tão grande a ponto de dominar tantos povos desde
há tanto tempo. De certeza que isto é obra de Júpiter. Querem, efectivamente,
que ele seja o rei de todos os deuses e de todas as deusas: indica-o o seu
cetro, indica-o o Capitólio no alto da colina. Declaram que é acertadíssimo,
embora proferido por um poeta, este dito a respeito deste deus:
Tudo
está cheio de Júpiter [iii].
Varrão crê que ele é adorado mesmo por
aqueles que adoram um só deus sem imagem, mas com outro nome. Se assim é,
porque é que ele é tão maltratado em Roma, como de resto entre outros povos,
erigindo-lhe uma está tua? Isto desagradava tanto ao próprio Varrão que,
embora pressionado pelo costume perverso duma semelhante cidade, não receou
dizer e escrever que os que levantaram estátuas aos deuses aos povos tiraram o
medo, mas infundiram o erro.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Trogo
Pompeio, um historiador romano de origem gaulesa, contemporâneo de Augusto, com
o título de Historiae Philipicae escreveu uma história em quarenta e quatro
livros, em continuação de Tito Lívio. Era a descrição da história de vários
povos, excepto os Romanos, a partir da Macedónia, reino de Filipe. Toda a obra
se perdeu e é actualmente conhecida apenas pelo resumo que dela fez no Séc. II
Juniano Justino
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