Vol. 1
LIVRO
III
CAPÍTULO
XXVI
Diversos
géneros de guerra que seguiram depois da dedicação de um templo à Concórdia.
Excelente obstáculo às sedições, na verdade,
esse templo da Concórdia, testemunha da chacina e do suplício dos Gracos, que
os Romanos acharam que deviam opor aos oradores. Quanto com isso aproveitaram
mostra-no-lo a sequência de acontecimentos ainda piores. Porque, desde então,
os oradores esforçaram-se, não por evitar o exemplo dos Gracos mas por superar
os seus projectos. Assim, o tribuno da plebe Lúcio Saturnino, o pretor Gaio
Servílio e, muito depois, Marcos Druso primeiro provocaram, todos eles, por
suas rebeliões, massacres já de si muito graves; depois, atiçaram as guerras
sociais que desolaram profundamente a Itália e a reduziram a um impressionante
deserto despovoado. Sucederam-lhe em breve a guerra dos escravos e as guerras
civis. Quantas batalhas se travaram! Quanto sangue derramado! Ao ponto de quase
todos os povos de Itália sobre os quais o Império Romano exercia a mais
poderosa autoridade, estarem submetidos como que a uma cruel barbárie! Logo a
seguir, de poucos gladiadores, menos de setenta, originou-se a guerra dos
escravos —, e de que maneira! — a que número e a que arrojo e ferocidade
chegaram! Os generais do Povo Romano que eles venceram! Que cidades e regiões
devastaram e de que maneira! Dificilmente o puderam explicar cabalmente os que
escreveram a história. E não ficou por aqui a guerra dos escravos: assolaram —
primeiro, a província da Macedónia, depois, a Sicília e a orla marítima. Quem
poderá relatar em toda a sua magnitude os horríveis males que se cometeram:
primeiro os latrocínios e, depois, as violentas guerras dos piratas?
CAPÍTULO
XXVII
As
guerras civis de Mário e de Sula.
Quando Mário, já de facto manchado pelo
sangue dos cidadãos fugiu vencido da Urbe, depois de ter imolado muitos dos
seus adversários de partido, a cidade como que respirou um pouco mas, usando as
palavras de Túlio:
Venceu depois Cina com Mário. Extinguiram-se então, com a
execução dos mais ilustres varões, as luzes da cidade. Sula vingou a seguir
esta cruel vitória — nem há necessidade de dizer à custa de quantas vidas de
cidadãos e de quanta desgraça para o Estado
[i].
Acerca desta vingança, que foi mais
perniciosa do que se se deixassem impunes os crimes que até aí se puniram, diz
Lucano:
O remédio excedeu a medida e
a mão seguiu de muito longe as marcas da doença. Os culpados morreram; mas
quando já só podiam restar culpados [ii].
Nesta guerra de Mário e Sula, sem contar com
os que morreram em combate, também, na própria Urbe romana, as ruas, as praças,
o Foram, os teatros, os templos ficaram juncados de cadáveres. Era difícil
dizer quando é que os vencedores fizeram mais vítimas: se antes, para vencerem,
ou se depois, por terem vencido. Quando da primeira vitória de Mário, quando,
regressado do exílio, se recompõe — sem falar dos massacres cometidos por toda
a parte, a cabeça do cônsul Octávio foi exposta nos rostros [iii];
os Césares foram trucidados nas suas casas por Fímbria; os dois Crassos, pai e
filho, foram assassinados à vista um do outro: Bébio e Numitório, arrastados
por um gancho, pereceram com as entranhas derramadas; Catulo subtraiu-se às
mãos dos inimigos tomando veneno; Mérula, flâmine Dial [iv], abriu
as veias e ofereceu a Júpiter o próprio sangue em libação; à vista de Mário em
pessoa mataram sem delongas cidadãos aos quais ele não queria estender a mão
quando o saudavam.
CAPÍTULO
XXVIII
Vitória
de Sula, vingadora da crueldade de Mário.
Segue-se porém a vitória de Sula, vingadora,
claro, das crueldades daquele, conquistada à custa de tanto sangue dos
cidadãos. Apenas terminada a guerra, os ódios, que ainda estavam vivos, tom
aram a paz ainda mais cruel. Aos primeiros e recentíssimos massacres de Mário
Velho, juntaram Mário o Jovem e Carbão, do mesmo partido de Mário, outros mais
cruéis. Receando a vitória de Sula e também pela sua própria salvação, tudo
encheram de cadáveres, dos seus como dos outros. Porque, além dos inúmeros
morticínios cometidos por toda a parte, cercaram o Senado e tiraram os
senadores da Cúria como que de uma prisão, levando-os à morte pelo gládio. No
templo de Vesta, o mais sagrado dos lugares entre os Romanos, Múcio Cévola foi
degolado abraçado ao próprio altar — e pouco faltou para o seu sangue extinguir
o togo que sempre ardia mercê do cuidado perpétuo das virgens.
Depois em Roma, onde entrou como vencedor,
numa Vila Pública, levado, não pela crueldade da guerra, mas da paz, Sula, sem
combate mas com uma simples ordem, mandou degolar sete mil prisioneiros —
inermes, evidentemente. Houve tantas vítimas, que não toi possível contá-las.
Até que alguém sugeriu a Sula que deixasse alguns viverem para que os
vencedores tivessem sobre quem mandar. Deteve-se então este anárquico e furibundo
desregramento de degolar e foi afixada uma lista, acolhida com grande
satisfação, com os nomes de dois mil cidadãos das duas mais ilustres ordens —
equestre e senatorial — que deviam ser executados ou proscritos. O número
causava tristeza, mas o limite consolava. Não era tanta a amargura de ver
tantas vitimas quanto o regozijo de se pensar que os outros já nada mais tinham
a temer. Mas a própria segurança dos salvos, aliás bem cruel, não deixou de se
afligir com todo o género de refinados tormentos impostos a alguns daqueles
cuja morte tinha sido ordenada. A um deles despedaçaram, sem ferro de cortar,
com as mãos. Alguns homens esquartejaram um homem vivo mais ferozmente do que
as feras costumam despedaçar o cadáver que lhes atiram. A um outro arrancaram
os olhos e foram-lhe cortando os membros um a um — e assim teve de viver, ou
antes, teve de ir morrendo longamente no meio de atrozes sofrimentos.
Duas famosas cidades foram postas em hasta
pública como se se tratasse de uma granja. Uma delas foi toda ela condenada à
morte como um só réu que se conduzisse ao suplício. E tudo isto se fez na paz,
depois da guerra — não para acelarar a vitória, a aliança, mas para que não
fosse menosprezada depois de alcançada. A paz rivalizou e até venceu a guerra
em crueldade. Esta abateu homens armados; aquela, homens desarmados. Na guerra,
o que feria podia ser atingido pelo ferido; mas na paz não se permitia ao
sobrevivente que vivesse — antes era obrigado a morrer sem resistência.
CAPÍTULO
XXIX
Comparação
da invasão dos Godos com as calamidades que os Romanos suportaram da parte dos
Gauleses ou dos autores das guerras civis.
Que raiva de povos estrangeiros, que
ferocidade dos bárbaros pode ser comparada a esta vitória de cidadãos sobre
outros cidadãos? Que é que Roma viu de mais funesto, de mais tétrico, de mais
amargo? Seria outrora a invasão dos Gauleses? Ou, recentemente, a dos Godos?
Seria a ferocidade de um Mário, dum Sula, doutros chefes afamados dos seus partidos,
que eram como que os luminares de todo o partido? É certo que os Gauleses
trucidaram a quantos membros do Senado encontraram por toda a cidade, salvo os
que estavam na cidadela do Capitólio, que se defendeu sozinha como pôde. Mas
permitiram aos que se acolheram a essa colina que resgatassem a preço de ouro
as suas vidas, que bem poderiam, se não arrebatar pelo ferro, pelo menos
extinguir pelo assédio. Os Godos, esses pouparam tantos senadores que o que
mais surpreendeu foi terem matado alguns apenas.
Pelo contrário, Sula, quando ainda era vivo
Mário, instalou-se como vencedor no Capitólio, que tinha sido salvo dos
Gauleses, para daí decretar a matança. E, como Mário se pôs em fuga — para
voltar mais feroz e sedento de sangue —, aquele, no Capitólio, por um
senatus-consulto privou muitos cidadãos das suas vidas e dos seus bens. Mas,
quando Sula estava ausente, que é que de sagrado, de digno de ser poupado houve
para os partidários de Mário, pois nem sequer pouparam a Múcio, cidadão,
senador, pontífice, quando abraçava mal-aventuradamente o altar onde
repousavam, como se dizia, os destinos de Roma? Pondo de parte outras inúmeras
mortes, a última lista de Sula degolava mais senadores do que os que os Godos
puderam espoliar.
CAPÍTULO
XXX
Sequência
de guerras que, em grande número e gravidade, precederam a vinda de Cristo.
Com que cara, com que coração, com que
impudência, com que tolice ou melhor com que demência não imputam aqueles males
aos seus deuses e imputam os de agora ao nosso Cristo? As cruéis guerras civis
foram mais amargas, como confessam os seus historiadores, do que todas as
guerras com os inimigos estranhos. Julgaram eles que elas tinham não só
apoquentado a República mas até a tinham de todo perdido. E eclodiram muito antes
da vinda de Cristo. Um a sequência de aceleradas causas liga as guerras de
Mário e de Sula às guerras de Sertório e de Catilina (o primeiro proscrito e o
segundo sustentado por Sula); liga estas às guerras de Lépido e de Catulo (dos
quais um pretendia derrogar e o outro manter a política de Sula); liga estas às
de Pompeio e de César (dos quais o primeiro, partidário de Sula, lhe igualava e
até ultrapassava o poderio, e o segundo, não podendo suportar o poderio do seu
rival, apenas porque o não possuía, adquiriu um maior ainda pela derrota e a
morte de Pompeio); liga estas a um outro César, posteriormente apelidado de
Augusto, sob cujo império nasceu Cristo.
O próprio Augusto sustentou guerras civis com
numerosos adversários. Nelas morreram muitos e muito ilustres homens, entre os
quais Cícero, esse tão eloquente artífice da condução da República. O vencedor
de Pompeio, Gaio César, cultivou a sua vitória civil com clemência, conservou a
vida e as dignidades aos seus adversários. Mas, sob o pretexto de que ele
aspirava à realeza, alguns senadores de elevada estirpe conjurados
assassinaram-no na própria Cúria, pretendendo assim salvar a liberdade
republicana. Depois António, de costumes totalmente diferentes, manchado e
corrompido por todos os vícios, parece ter ambicionado o poderio de César.
Cícero resistiu-lhe com veemência em nome da mesma pretensa liberdade da
pátria. Foi então que surgiu o outro César, jovem de maravilhosa índole, filho
adoptivo de Gaio César e posteriormente, como disse, apelidado de Augusto.
Cícero favoreceu este jovem César para excitar o seu poderio contra António,
esperando que ele, repelido e abatido o domínio de António, restaurasse a
liberdade da República. Mas foi bem cego e incapaz de prever o futuro: o jovem
cujo prestígio e poderio favorecia, permitiu a António a morte de Cícero, como
que num pacto de reconciliação, e apoderou-se, em seu proveito, da liberdade da
República a favor da qual tanto e tão alto tinha Cícero clamado.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii] Lucano,
Farsália, II, 142-144 (a). Migne acrescenta o seguinte: “Foi então dada
liberdade aos ódios e, liberto do freio das leis, o rancor atirou-se para a
frente”. Lucano, Farsália, II, 142-146.
[iii] Os
Rostros (Rostra) eram as tribunas destinadas aos oradores no Forum. Eram assim
chamadas essas tribunas por estarem adornadas de esporões (Rostra) de ferro
retirados aos maiores navios inimigos apresados e por terem a forma de bico das
aves (Rostra).
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