10/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual



A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO III

Tal como no livro anterior acerca dos males dos costumes e do espírito, também neste, acerca dos males exteriores e do corpo, Agostinho mos­tra que os Romanos, desde a fundação. de Roma, foram por eles ininterruptamente atormentados sem que os falsos deuses, que livremente adoravam antes da vinda de Cristo, nada fizessem para afastar tal género de males.

CAPÍTULO I

Únicos males de que os maus têm medo e de que o mundo sempre padeceu quando prestava culto aos deuses.

Julgo que já disse o bastante acerca dos males morais e do espírito que é preciso evitar a todo o custo, acerca dos deuses que nada fizeram para aliviar o peso destes males que acabrunhavam o seu povo de adoradores e acerca dos esforços que, pelo contrário, despenderam para os tornarem ainda mais pesados.

Creio que agora devo falar dos únicos males que os pagãos não querem suportar, como são: a fome e a doença, a guerra e a expoliação, o cativeiro e as carnificinas e outros que tais de que tratámos no livro primeiro. De facto, os únicos males que os maus julgam maus são os que não fazem maus; mas não se envergonham de, entre os bens que louvam, serem eles, os maus, que os louvam. Sentem-se mais agastados por terem uma casa de campo má do que por terem uma má vida — como se o maior bem do homem consistisse em ter todas as coisas, salvo ele pró­prio, boas. Mas os seus deuses, quando eram por eles livremente adorados, não se opuseram a que tais males — únicos que receiam — lhes acontecessem. Efectivamente em vários lugares e através de vários tempos, antes da vinda do nosso Redentor, inúmeros e incríveis flagelos acabrunharam o género humano. Mas que outros deuses, além destes deuses, adorava então o universo, à excepção apenas do povo hebreu e, fora deste povo, alguns que, em qualquer parte, por um ocultíssimo e justíssimo desígnio de Deus foram considerados dignos da graça divina? Mas para não me alongar demasiadamente, omitirei os gravíssimos males que em toda a parte aconteceram a outros povos. Falarei apenas do que respeita a Roma e ao Império Romano, isto é, à própria Cidade e às nações a ela ligadas quer por uma confederação quer na condição de submetidas. Todas estas nações sofreram tais males antes da vinda de Cristo, quando, por assim dizer, pertenciam já ao Corpo da República Romana.

CAPÍTULO II

Tiveram os deuses, que eram adorados igualmente por Romanos e Gregos, motivos para permitirem a destruição de Tróia?

Antes de mais nada, porque é que Tróia, ou ílion, donde provém o povo romano (não se deve escamotear nem dissimular o que já abordei no livro primeiro), foi vencida, tomada e destruída pelos Gregos, tendo e adorando ela os mesmos deuses?

Príamo, dizem, teve que pagar os perjúrios de Laomedonte, seu pai [i].

É então verdade que Apolo e Neptuno trabalharam a soldo desse Laomedonte? Na verdade, parece que este lhes prometeu uma recompensa e depois jurou que isso era falso. Admira-me que Apolo, alcunhado de adivinho, tenha executado um tão grande trabalho sem saber que Laomedonte se havia de recusar a cum prir o prometido. Até porque não fica bem que desconheça o futuro o próprio Neptuno, seu tio, irmão de Júpiter e rei do mar. Efectivamente, Homero que, diz-se, viveu antes da fundação de Roma, apresenta este Deus a fazer uma profecia importante acerca da estirpe de Eneias, por cujos descendentes Roma foi fundada, e diz-nos até que cobriu Eneias com uma nuvem para que não fosse morto por Aquiles. Isto mesmo é con­fessado em Vergílio:

(Neptuno) desejava destruir pela raiz as muralhas da perjura Tróia construídas por suas próprias mãos [ii].

Assim tão grandes deuses — Neptuno e Apoio —, ignorando que Laomedonte lhes recusaria a recompensa, tornaram-se, para os ingratos, em construtores gratuitos da muralha de Tróia. Vejam se não será mais grave acreditar em tais deuses do que a tais deuses prestar falso juramento. O próprio Homero — que nos apresenta Neptuno a combater contra os Troianos e Apoio a seu favor quando, segundo narra a fábula, ambos foram ofendidos pelo dito perjúrio — não acredita facilmente nisso. Se acreditam em fábulas não ponham como pretexto os perjúrios de Tróia ou então não se admirem de que os deuses tenham castigado os perjúrios de Tróia e tenham amado os de Roma. Efectivamente, como é que a conjura de Catilina encontrou, numa cidade tão grande e tão corrompida, tantos partidários que viviam da sua mão e da sua eloquência, isto é: do perjúrio e do sangue dos cidadãos? E os senadores, tantas vezes corrompidos nos pleitos, e o povo tantas vezes comprado nos comícios e nos pleitos debatidos em assembleias — que mais fizeram senão cometer o pecado do perjúrio? Porque em tão corrompidos costumes ainda se conservou o antigo costume do jurar, não para impedir os crimes pelo temor religioso, mas para juntar aos outros crimes o de perjúrio.

CAPÍTULO III

Os deuses não podiam ser ofendidos pelo adultério de Páris, pois que, conta-se, entre eles o adultério era frequente.

Não há, pois, qualquer razão para que os deuses — pelos quais, como dizem, aquele império se mantinha, — se fingissem irados contra os Troianos perjuros, porque está provado que foram vencidos pelos Gregos por serem mais fortes. Nem se indignaram com o adultério de Páris ao ponto de abandonarem Tróia, como, por sua vez, alguns pretendem. É que eles é que costumam ser os instigadores e mestres dos pecados e não os seus vingadores. Diz Salústio:

Como a tradição me ensinou, foram os Troianos que, errantes e vagabundeando de terra em terra sob o comando de Eneias, construí­ram e habitaram no princípio a cidade de Roma [iii].

Se, portanto, os deuses julgaram que deviam punir o adultério de Páris, deveriam ter punido mais severamente, ou pelo menos da mesma forma, os Romanos, pois a mãe de Eneias fez o mesmo. Mas, como poderiam eles detestar naquele tal crime que não detestaram na sua companheira Vénus (para não dizer outras coisas mais) — já que ela o cometeu com Anquises vindo daí a nascer Eneias? será porque aquele facto causou a indignação de Menelau e aquele outro foi com a aquiescência de Vulcano? De resto, julgo eu, os deuses não têm ciúmes de suas esposas pois até consideram conveniente tê-las em comum com os homens. Talvez se pense que zombo das fábulas e que não trato a sério questão de tanta monta. Não acreditemos, por favor, que Eneias seja filho de Vénus! Concedo-o contanto que Rómulo também não seja filho de Marte. Mas se admitimos um, porque é que não admitimos o outro? Será que é lícito aos deuses unirem-se às mulheres e ilícito aos homens unirem-se às deusas? Dura, ou antes incrível, condição esta — que seja permitido a Marte o coito, à custa dum direito de Vénus, e não o seja a Vénus, no exercício do seu próprio direito. Mas ambos os casos são confirmados pela autoridade romana. Mais perto de nós César não teve por menos certo que Vénus fosse sua avoenga do que o antigo Rómulo tivesse Marte por pai.

CAPÍTULO IV

Opinião de Varrão, segundo a qual é útil que os homens se digam, embora mentindo, filhos dos deuses.

Alguém me dirá — então tu acreditas nessas coisas? Claro que não acredito. O próprio Varrão, o mais douto dos seus varões, embora com falta de coragem e de firmeza, quase que confessa que são falsas. Diz, contudo, que é útil às cidades que os homens superiores se considerem filhos dos deuses, mesmo que isso seja falso, para que, deste modo, o espírito humano, cheio de confiança na sua pretensamente divina ori­gem, conceba com audácia grandes projectos, actue com mais energia e por isso os realize com mais sucesso.

Esta maneira de pensar de Varrão, expressa como me foi possível por palavras minhas, já vês que larga porta abre à mentira. Ela nos faz compreender quantos ritos ditos religiosos podem ter sido inventados desde o momento em que se julgou que as mentiras acerca dos deuses seriam úteis aos cidadãos.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Nesta passagem Santo Agostinho tinha em mente os versos ... Satis jampridem sanguitie nostro Laomedonteae luimus perjura Trojae. (Como o nosso sangue já expiamos bastante os perjúrios da Tróia de Laomedonte). Vergílio, Geórgicas, I, 501-502. Segundo a lenda Laomedonte, rei de Tróia, mandou construir por Apoio e Poseidon os muros de Pérgamo; mas chegada a altura do pagamento da obra, aquele negou-se ao pagamento da recompensa com estes ajustada.
[ii] ... cuperet cum vertere ab imo Structa suis manibus perjurae moenia Trojae. Vergílio, Eneida, V, 810-811.
[iii] urbem Rotmm, sicuti ego accepi, condidere et habuere initio Trojani, qui Aenea duce profugi sedibus incertis vagavantur. Salústio, Catilim, VI, 1.

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