Vol. 1
PREFÁCIO
Motivo
e argumento da presente obra
A
gloriosíssima Cidade de Deus — que no presente decurso do tempo, vivendo da fé,
faz a sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da
eterna morada com paciência até ao dia em que será julgada com justiça, e que,
graças à sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória, a paz perfeita
— tal é, Marcelino, meu caríssimo filho, o objecto desta obra. [i]
Empreendi-a
a teu pedido, para me desobrigar da promessa que te fizera de defender esta
Cidade contra os que ao seu fundador preferem seus próprios deuses.
Grande
e árduo trabalho!
Mas
Deus será a nossa ajuda!
Sei
de que forças tenho necessidade para demonstrar aos soberbos quão poderosa é a
virtude da humildade, pois que, para lá de todas as grandezas passageiras e
efémeras da Terra, ela atinge uma altura que não é uma usurpação do orgulho
humano, mas um dom da graça divina.
De
facto, o rei e fundador, desta Cidade, de que resolvemos falar, revelou nas
Escrituras do seu povo o dito da lei divina Deus resiste aos soberbos e concede
a sua graça aos humildes [ii].
Mas
deste privilégio exclusivo de Deus, a alma intumecida de orgulho tenta
apropriar-se dele e gosta de ouvir dizer em seu louvor poupar os vencidos e
domar os soberbos [iii].
Também
é preciso falar da Cidade da Terra, na sua ânsia de domínio, que, embora os
povos se lhe submetam, se torna escrava da sua própria ambição de domínio. Dela
tratarei, nada calando conforme o exige o plano desta obra e o permitir a minha
capacidade.
CAPÍTULO
I
Acerca dos inimigos do nome
de Cristo que, por causa de Cristo, os bárbaros pouparam durante a devastação
de Roma.
É
desta Cidade da Terra que surgem os inimigos dos quais tem que ser defendida a
cidade de Deus.
Muitos
deles, afastando-se dos seus erros de impiedade, tornaram--se cidadãos bastante
idóneos da Cidade de Deus.
Mas
muitos outros ardem em tamanho ódio contra ela e são tão ingratos aos
manifestos benefícios do Redentor, que hoje não moveriam contra Ele a sua
língua senão porque encontraram nos seus lugares sagrados, ao fugirem das armas
inimigas, a salvação da vida de que agora tanto se orgulham.
Não
são na verdade estes romanos encarniçados contra o nome de Cristo aqueles a
quem os bárbaros pouparam a vida por amor de Cristo?
Disto
dão testemunho os santuários dos mártires e as basílicas dos Apóstolos que acolheram
quantos aí se refugiaram, tanto cristãos como estranhos, durante a devastação
da Urbe.[iv]
Ali
se apaziguava o encarniçado inimigo; aí findava o seu furor de extermínio; para
ali conduziam os invasores tocados de compaixão, aos que, fora daqueles
lugares, tinham poupado a vida, pondo-os a salvo das mãos dos que não tinham
igual compaixão.
Aqueles
mesmos que, noutros sítios, como inimigos que eram, realizavam crudelíssimas
chacinas, — quando se aproximavam destes lugares em que lhes estava vedado o
que, por direito de guerra, se permite noutras partes, refreavam a sua sanha
bélica e renunciavam ao desejo de fazer cativos.
Foi
assim que escaparam muitos dos que agora desacreditam o Cristianismo e imputam
a Cristo as desgraças que a cidade teve que suportar.
Não
atribuem, porém ao nosso Cristo mas ao destino, o beneficio de se lhes ter
poupado a vida por amor de Cristo.
Deveriam
antes, se o avaliassem judiciosamente, atribuir os sofrimentos e durezas que os
inimigos lhes infligiram à divina Providência que costuma, com guerras,
purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens.
É
a divina Providência que põe à prova a vida justa e louvável dos mortais com
tais aflições, para, uma vez provada, ou a transferir para uma vida melhor ou a
reter nesta Terra para outros fins.
Mas
de facto os ferozes bárbaros pouparam-lhes a vida contra os costumes normais
das guerras, por amor ao nome de Cristo, quer em outros lugares quaisquer, quer
nos recintos consagrados ao seu culto, e, para que a compaixão se tornasse mais
extensiva, escolheram os mais amplos destinados a recolher multidões.
Deviam
atribuir isto ao Cristianismo.
Era
a ocasião propícia para que dessem graças a Deus e recorressem ao seu nome com
sinceridade, evitando assim as penas do fogo eterno, aqueles que em grande
número escaparam às presentes calamidades usando hipocritamente desse mesmo
nome.
Porque
muitos dos que vês agora insultar com petulância e sem vergonha os servos de
Cristo, não teriam escapado àquela carnificina e àquele flagelo se não tivessem
fingido que eram servidores de Cristo.
E
agora — ingrata soberba e ímpia loucura! — de coração perverso resistem ao seu
nome; ao qual se recolheram um dia para gozarem da vida temporal, tornando-se
réus das trevas eternas,
CAPÍTULO
II
Nunca, numa guerra, os
vencedores pouparam os vencidos por amor aos seus deuses.
São
muitos os feitos guerreiros consignados por escrito, uns anteriores à fundação
de Roma, outros ocorridos desde que esta nasceu até ao apogeu do Império.
Leiam-nos
e digam-nos se, no assédio de alguma cidade por estrangeiros, os vencedores
pouparam assim os que se refugiavam nos templos dos seus próprios deuses; ou se
um chefe bárbaro deu quiçá ordem alguma para que, após o assalto da cidade, não
se ferisse quem quer que fosse encontrado neste ou naquele templo.
Não
foi Eneias quem viu Príamo entre os altares
profanando com o seu sangue
os fogos que ele próprio tinha consagrado? [v]
E
Diomedes e Ulisses que depois de degolarem os guardas da cidadela, roubaram a sagrada
imagem, e ousaram pôr as mãos sangrentas sobre as virginais faixas da deusa? [vi]
E,
todavia, o que segue não é exacto:
Desde aquele momento, a
esperança dos Gregos começou a afrouxar e a desvanecer-se.[vii]
Na
verdade, foi depois disto que ficaram vitoriosos; foi depois disto que
destruíram Troia a ferro e fogo; foi depois disto que degolaram Príamo, refugiado
junto dos altares.
Troia
não caiu, portanto, por ter perdido Minerva.
E
a própria Minerva, que é que ela tinha perdido para perecer?
Teriam
sido por acaso os seus guardiões?
Sim,
isto é verdade: de facto, só pôde ser roubada depois de estes terem sido
degolados.
O
certo é que o ídolo era defendido pelos guardiões, em vez de serem eles defendidos
pelo ídolo.
Como é possível que se preste culto, — para
que guardasse a pátria e os cidadãos —
àquela que não fora capaz de guardar os seus guardas?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i]
Acerca de Marcelino.
A
ajuizar pelo que dele diz Ceciliano numa carta dirigida a Agostinho, em que
relata comovidamente a morte de Marcelino, este era dotado de qualidades que
dele faziam uma personalidade encantadora:
«Que
rectidão de comportamento! Que fidelidade na amizade»!
«Que
zelo pela cultura, que sinceridade nos sentimentos religiosos!
Que
medida nos seus juízos, que paciência para com os inimigos, que afabilidade
para com os amigos, que humildade para com os santos, que caridade para com
todos! Que estima pelo bem! Que arrependimento nas faltas!» (P.L. 33-649,
— Epist. 151,6).
Pois
este Marcelino, que era de uma família aristocrática, desde muito jovem entrou
na política, em que exerceu altos cargos na chancelaria imperial, como o
indicam os seus títulos de Tribunus, notarius, cognitor. Nesta última qualidade
de cognitor (Juiz) foi em 411 enviado a Cartago para assistir à conferência dos
bispos católicos e donatistas com o fim de pôr termo ao cisma destes.
Conheceu
então e tomou-se amigo do bispo de Hipona.
Mercê
das referidas funções e altos cargos e da amizade que o ligava a Agostinho, em
breve se tornou como que o elo de ligação entre este e os intelectuais de
Cartago, nomeadamente com o nobre Valusiano, cônsul, que lhe forneceu material
abundante, constituído por objecções dos pagãos, que o Bispo de Hipona
contestaria em algumas das suas obras, nomeadamente nesta da Cidade de Deus.
Quando
da revolta de Heraclio, alguns inimigos políticos e donatistas comprometeram-no
injustificadamente nessa revolta. Foi por isso preso e veio a ser assassinado
na prisão a 12 de Setembro de 413, apesar dos esforços de Santo Agostinho e
outros bispos para o salvarem.
Sobre este assunto, v., além de P. L. 33-649,
Moreau — Le dossier de Marcelin (in Recherches Augustiniennes IX, Paris 1973);
Morceau — Histoire Litt. de l’Afrique Chrétienne, IV p. 82 e sgs.; M. A. Me. Namara
— L ’Amitié de Saint Augustin — Paris, 1962.
[ii] Deus
superbis resistit, humilibus autem dat gratiam. Tiago, IV, 6; I Pedro, V, 5.
[iii]
Parcere subjectis, et debellare superbos. Vergílio, Eneida, VI, 853.
[iv]
Orósio (Paulo), presbítero de Braga (Historiarum adversus paganos libri septem,
C. VII, 39) refere que foi o próprio Alarico quem ordenou aos seus soldados que
poupassem os templos cristãos, nomeadamente as basílicas dos apóstolos Pedro e
Paulo, respeitassem quem neles procurasse refúgio e não deitassem mão dos
objectos de culto. Mais refere que Alarico assim procedeu, por, embora ariano,
considerar Roma como sede da Cristandade. Porque nos toca de perto este
presbítero de Braga, não será talvez inútil acrescentar que P. Orósio, amigo e
discípulo de Santo Agostinho, com este colaborou na luta contra o paganismo.
Santo Agostinho retrata-o como «homem de engenho vivo, de palavra fecunda, com
grande entusiasmo por conhecer a verdade e vivo desejo de ser instrumento útil
na casa do Senhor, para refutar as falsas e perniciosas doutrinas que nas almas
dos Hispânicos têm feito mais estragos do que a espada dos bárbaros nos seus
corpos». (Aug. Epist. 156,2; P. L. 33, 720-721).
Orósio
foi a Hipona consultar Agostinho acerca de certos pontos de doutrina suscitados
na Península Ibérica pelos priscilianistas, que nela abundavam com prejuízo
para a ortodoxia.
O
bispo de Hipona incumbiu-o de ir ao Oriente dar a conhecer os erros de Pelágio
e, quando ele regressou, de reduzir a escrito todas as catástrofes que antes de
Cristo caíram sobre o mundo. Assim nasceram
Historiarum
adversus paganos libri septem (sete livros de História contra os pagãos), obra
também conhecida durante a Idade Média por Maesta Mundi (Tristezas do Mundo).
Tal como o mestre, também Orósio reconhece estar na providência divina o
sentido da história, reconhecendo como providenciais todos os acontecimentos
históricos, mesmo os mais lamentáveis.
A
História contra os Pagãos gozou, ao lado da Cidade de Deus, de muita estima e
estudo na Idade Média, que «fez da obra do presbítero hispânico o seu manual de
história», (G. Finle — Errera San Agustin y Orósio. Esquema para un estúdio de
las fuentes dei «De Civitate Dei», in «La Ciudad de Dios», 167 (1954) II, 549).
No
prefácio da sua obra, Orósio reconhece:
«Minha
humilde pessoa deve tudo o que fez à tua direcção fraterna.
Toda
a minha obra a ti pertence e para ti se volta. A minha única contribuição
consiste em tê-la escrito com alegria, (ob. c., Viena, 1882).
Além
dos Historiarum adversus paganos libri septem, e antes desta obra, Orósio
escreveu: a) Consultatio sive commonitorium de errore priscillianistorum et
Origenistarum, que entregou a Santo Agostinho o qual, em resposta, escreveu
Liber ad Orosium contra Priscillianistas et Origenistas', b) Liber Apologeticus
Contra Pelagium de arbitrii libertate.
Sobre
Orósio, além das o. cit., v. P. L. 31, 635-1216.
—
Bibliografia geral Portuguesa II, Lx.-1944 p. 80-165;
—
G. Fink., Recherches Bibliographiques sur Paul Orose, in Arch. Bibl. Y Museos,
56, Mad. 1952, p. 271-322.
—
A melhor edição da «História» é a do Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum
latinorum
(C.S.E.L.) corrigida por S. Svennung. Tom, V, Upsala
1922.
—
E. Florez, Espana Sagrada, XV, 314-351;
—
C. Tonez Rodrigues, Los Siete Libros de la Historia contra los paganos, in
Quademos
de Est. Gallegos, Compostela, 1948, p. 23-48;
—
C. Tonez Rodrigues, La obra de Orose, in Bibl. de Uniu. de Compost.
n.os
61-62,1953-1954;
—
M. Martins, Correntes de Fil. Rei. em Braga, in Brotéria 1950, 162-
-213;
—
M. Castro, El Hispanismo en le obra de P. Orósio, in Quademos cit. 28,
154;
—
E. Cuevar e Dominguez Del Vai, Patrologia Espanola (ap. à Patrol,
de
B. Altaner) 81-84;
—
B. Lacroix, Orose et ses idées — Montrene-Paris, 1965;
—
B. Lacroix, Im importancia de Orósio — in Augustinus, 2 (1957);
—
Bracara Augusta 21, (B. 1967), p. 346-363;
—
«Orósio» in Die. de Hist, de Portugal;
—
Elias de Tejada, Orósio y Dracôncio, in ar. de Hist, del Derecho Esp., 29
(1963)
p. 191-201.
[v]
Sanguine foedantem quos ipse sacraverat ignes. Vergílio, Eneida, II, 502.
[vi] ...
caesis summae custodibus areis,
Corripuere
sacram effigiem manibusque cruentis
Virgíneas
ausi divae contingere vittas,...
Virgílio,
Eneida, II, 166-168.
[vii] Ex
illo fluere ac retro sublapsa referri Spes Danaum,...
Vergílio,
Eneida, II, 169-170.
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