A
FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRAR SEQUER O
PENSAMENTO DE QUEM FALA
AGOSTINHO
– E também no tocante às
coisas que se contemplam com a mente, aquele que não entende, inutilmente ouve
as palavras de quem as vê, a não ser porque é útil acreditar em tais coisas
enquanto se ignoram.
Aquele, porém, que as pode ver interiormente,
é discípulo da verdade; exteriormente, é juiz de quem fala, ou melhor, das suas
palavras, pois muitas vezes sabe as coisas que foram ditas, enquanto quem as
disse não as sabe.
Seria este o caso em que
alguém, acreditando nos epicuristas e julgando a alma mortal, repetisse os
argumentos já tratados pelos mais sábios sobre a sua imortalidade, na presença de
quem pode intuir as coisas espirituais.
Este julgaria que aquele diz
a verdade, ou antes considerar falácia o que diz.
Devemos, pois, acreditar que
quem não sabe pode ensinar?
E, no entanto, usa as mesmas
palavras que também usaria aquele que sabe.
Por isso tudo, nem sequer
resta às palavras o papel de manifestar ao menos o pensamento de quem fala,
pois é duvidoso se este sabe ou não o que diz.
Considera também os mentirosos
e enganadores, e facilmente compreenderás que, com as palavras, eles não só não
revelam, mas até ocultam o pensamento.
Jamais duvidaria que as
palavras sinceras se esforcem e façam o melhor para manifestar o espírito de
quem fala, o que conseguiriam, e seria ótimo para todos se não fosse permitido
aos mentirosos falarem. Todavia, repetidamente percebemos em nós mesmos e nos
outros que as palavras não expressam o pensamento; e isto pode acontecer de
duas maneiras: ou quando as palavras que gravamos e repetimos saem da boca de
quem está pensando em algo diferente, o que acontece amiúde quando cantamos um
hino; ou quando, nos saem umas palavras em vez de outras, contra a nossa
vontade, por um lapso da própria língua; também neste caso não são transmitidos
os sinais das coisas que temos na mente.
Os mentirosos, sem dúvida,
também pensam as coisas que dizem, e embora nós não saibamos se falam a
verdade, sabemos, porém, que eles têm em mente o que dizem; a menos que lhes aconteça
uma das coisas que mencionei; e se me objectarem que, às vezes, isto pode
ocorrer, e que, quando ocorre, isto aparece, ainda que muitas vezes possa ficar
oculto, e que eu, ao ouvir tais coisas, às vezes também possa ser enganado, não
me oporei.
E há ainda outro caso,
bastante frequente e origem de inúmeras controvérsias: quando quem fala exprime
de facto seu pensamento, mas apenas para si e para uns poucos, e não para o interlocutor
e para os demais.
Por exemplo, se alguém em
nossa presença afirmasse que o homem é superado em valor por alguns animais,
não o toleraríamos e logo refutaríamos com grande veemência esta falsa e
perniciosa afirmação; e talvez por valor ele entenda a força física, e com tal
palavra enuncie mesmo o que pensava, sem mentir, sem engano, sem ocultar as palavras
gravadas na memória, agitando na mente alguma outra coisa, sem que por um lapso
da língua fale algo diverso do que corresponde ao seu pensamento; estaria
apenas chamando com um nome diverso do nosso a coisa que pensa, e nós teríamos
concordado imediatamente com ele, se houvéssemos intuído o seu pensamento, o
que não conseguiu explicar-nos com as palavras da sua afirmação.
Dizem que a definição pode
sanar tal erro; assim, se nesta questão se definisse o que é valor (virtus), tornar-se-ia claro, dizem, que
a controvérsia gira só em torno da palavra, e não da coisa.
Mas, mesmo concordando com
isto, quantos bons definidores poderemos encontrar?
E isso embora se tenha
discutido bastante sobre a arte de definir, o que não é oportuno tratarmos
aqui, nem merece sempre a minha aprovação.
Nem considero o caso de não
ouvirmos bem umas coisas e disputarmos longamente sobre elas como se as
tivéssemos ouvido.
Quando, há pouco, quis dizer
“misericórdia” com uma certa palavra púnica, afirmaste ter ouvido, daqueles que
têm familiaridade com esta língua, que aquela palavra significa “piedade”.
Eu opunha-me, afirmando que
tinhas esquecido de todo o que tinhas ouvido, pois me parecia teres dito não
“piedade”, mas “fé”, embora tivéssemos sentados bem perto, e certamente estas
duas palavras não podiam levar a um engano pela semelhança do som.
Por um bom lapso de tempo pensei,
todavia, que não soubesses aquilo que te fora dito, e no entanto era eu que não
sabia o que havias dito; ora, se eu tivesse ouvido claramente as tuas palavras,
não teria recebido a impressão, nada absurda, que a língua púnica indicasse com
o mesmo vocábulo “piedade” e “misericórdia”.
Tais coisas ocorrem com frequência,
mas, como disse, vamos deixá-las de lado, para não dar a impressão que quero
atribuir culpa às palavras pela negligência de quem ouve, ou até pela surdez
dos homens.
O que mais aflige é o que disse acima, isto é,
o não conseguirmos conhecer o pensamento de quem fala, embora ouvindo claramente
as palavras, e palavras latinas, e sendo nós da mesma língua.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)
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