Vol. 1
CAPÍTULO
X
Os
santos nada perdem quando perdem as coisas temporais.
…/2
Diz-se
que uma prolongada fome matou muitos cristãos.
Também
isto converteram em seu proveito os autênticos homens de fé, suportando-a com
espírito de religião.
A
fome, ao tirar-lhes a vida, como se fora uma enfermidade corporal, libertou-os
dos males desta vida. Porém, aos que não matou, ensinou-lhes a viverem mais
sobriamente e a jejuarem mais prolongadamente.
CAPÍTULO
XI
Fim
da vida temporal — longa ou breve.
Muitos
foram na verdade os cristãos massacrados.
Muitos
foram consumidos em hedionda variedade de muitas mortes. Isto é duro de
suportar, mas é comum a todos os que foram gerados para esta vida. Uma coisa
sei: ninguém teria morrido se não existisse para morrer um dia.
O
fim da vida torna igual a vida longa à vida breve. Efectivamente, de duas
coisas que já não existem nem uma é melhor nem a outra é pior; nem uma é mais
longa nem a outra é mais breve. Que importa o género de morte que acabará com
esta vida — quando ao que morre não se obrigará que morra de novo?
A
cada mortal o ameaçam mortes de todos os lados. Nos quotidianos azares desta vida,
enquanto durar a incerteza acerca de qual das mortes surgirá, eu pergunto se
não será preferível suportar uma morrendo, a ser por todas ameaçado vivendo.
Não
ignoro quão depressa preferimos viver longos anos sob o temor de tantas mortes,
a morrermos de uma vez e já não temermos diante de nenhuma. Mas uma coisa é o
que o sentido carnal, fraco como é, repele por medo — e outra o que a razão,
convenientemente esclarecida, convence.
Não
deve considerar-se má a morte que uma vida virtuosa precede. Na verdade, o que
torna má a morte mais não é que o que à morte se segue. Àqueles que
necessariamente hão-de morrer não deve preocupar muito o que acontecerá para
que morram, mas antes para onde terão de ir irremediavelmente depois da morte.
Os cristãos sabem que foi muito melhor a morte do pobre piedoso entre os cães
que o lambiam, do que a do ímpio rico entre púrpuras e linhos. Em que podem
então prejudicar aos que viveram sem mácula as formas horríveis de morrer?
CAPÍTULO
XII
Mesmo
que tenha sido negada sepultura aos corpos humanos — com isso de nada são
privados os cristãos.
Tão
grande era o montão de cadáveres, que nem os puderam sepultar. A fé autêntica
nenhum medo tem disso, pois, tendo presente o que foi predito, — nem as feras devoradoras
impedirão a ressurreição dos corpos daqueles de quem nem sequer um dos cabelos
se perderá. De maneira nenhuma a Verdade teria dito
não
temais os que matam o corpo mas não podem matar a alma [i],
se constituísse obstáculo para a vida futura o quer que fosse que quisessem
fazer os inimigos nos corpos dos mortos.
Ninguém haverá tão insensato que sustente
que, antes de sermos mortos, não devemos temer os que matam o corpo, mas
devemos temer sim os que impedem que se dê sepultura aos cadáveres. Seria então
falso o que Cristo disse:
Os
que matam o corpo e depois já nada mais lhe podem fazer[ii],
se
tivessem alguma coisa de importante a fazer ao cadáver. Longe de nós pensar que
é falso o que disse a Verdade. Diz-se que eles realmente algum dano causam quando
matam, pois, que o corpo tem sensações ao morrer.
Depois,
já nada há a fazer, porque já não há sensibilidade no corpo morto. Na verdade,
a terra não cobriu muitos corpos cristãos; mas o que não conseguiram foi expulsar
ninguém dos espaços do Céu e da Terra, cheios como estão da presença d’Aquele
que sabe onde fará surgir, pela ressurreição, o que Ele mesmo criou. Diz realmente
o salmo:
Deixaram
os cadáveres dos teus servos em pasto às aves do céu e a came dos teus santos
às feras da terra. Derramaram o seu sangue como água à volta de Jerusalém e não
havia quem os sepultasse[iii].
Mas
estas palavras são mais para vincarem a crueldade dos que tal fizeram do que o
infortúnio dos que tal sofreram.
Embora
estas coisas pareçam efectivamente duras e cruéis aos olhos dos homens, todavia
preciosa
é aos olhos de Deus a morte dos seus santos [iv].
Portanto,
tudo isto, ou seja: os cuidados fúnebres, a qualidade da sepultura ou a
solenidade das exéquias, constituem mais uma consolação dos vivos do que um
alívio dos defuntos. Se ao ímpio serve de proveito uma sepultura de alto preço,
ao piedoso tanto faz uma ordinária ou mesmo nenhuma. Brilhantes funerais, aos
olhos humanos, prestou a multidão dos seus servidores ao famoso rico purpurado.
Mas muito mais brilhantes perante o Senhor ofereceu ao pobre coberto de úlceras
o exército dos anjos que não lhe erigiram um túmulo de mármore mas o colocaram no
seio de Abraão.
Disto
se rirão aqueles contra os quais decidimos defender a Cidade de Deus. Todavia,
também os seus filósofos têm mostrado desprezo pelo cuidado com a sua sepultura.
E até exércitos inteiros, ao morrerem pela pátria terrena, se não preocuparam
com o lugar onde viriam a jazer nem de que feras seriam alimento. A este propósito
puderam dizer os poetas com aplauso dos seus leitores:
Quem
não tem uma é coberto pelo céu [v].
De
forma nenhuma devem insultar os cristãos por causa dos corpos insepultos. A
eles foi prometida a reforma da própria carne e de todos os membros, não somente
à custa da terra mas ainda do seio mais secreto dos outros elementos em que se
tenham convertido os cadáveres ao se desintegrarem. Num instante voltarão à sua
integridade.
CAPÍTULO
XIII
Porque
se devem sepultar os corpos dos santos.
Mas
nem por isso se devem desprezar e abandonar os corpos dos defuntos,
principalmente os dos justos e dos fiéis dos quais o Espírito se serviu
santamente como órgãos e receptáculos de todo o género de boas obras. Se as
vestes e o anel dos pais, bem como as coisas deste género, são tanto mais
queridos dos descendentes quanto maior tiver sido o afecto para com os pais, de
maneira nenhuma se devem desprezar os corpos com os quais mantivemos muito mais
familiaridade e intimidade do que com qualquer peça de vestuário que se usa. O
corpo é parte natural do homem e de modo nenhum é um ornamento ou instrumento que
se usa por fora. Por isso é que os funerais dos antigos justos eram tidos por
um dever de piedade: celebravam-se exéquias e concedia-se sepultura. Eles
próprios, enquanto vivos, deixavam instruções a seus filhos acerca do
sepultamento e da trasladação dos seus corpos.
É
louvado Tobias, que, por enterrar os mortos, alcançou, segundo o testemunho de
um anjo, merecimento perante Deus. Também o próprio Senhor, que havia de
ressuscitar ao terceiro dia, elogia a boa acção da mulher piedosa, — ou seja a
de ela ter derramado um precioso unguento sobre os seus membros com vista à
sepultura — e recomenda que essa acção seja divulgada como boa. E com louvor
são lembrados no Evangelho aqueles que com delicadeza tiraram da cruz o seu
corpo, com respeito o amortalharam e sepultaram. Porém estes documentos
autorizados não pretendem convencer-nos de que nos cadáveres haja alguma
sensibilidade: mas que a divina Providência, à qual agradam estes deveres de
piedade porque reafirmam a nossa fé na ressurreição, se interessa também pelos
corpos dos mortos. Também aqui nos é dada uma salutar lição: se, perante Deus,
nem as obrigações e cuidados dispensados aos membros já sem vida dos homens perecem
— quão grande será a recompensa que nos espera pelas esmolas que oferecemos aos
que ainda têm vida e sensibilidade!
Há
outras disposições que os santos patriarcas quiseram proferir com significado
profético acerca da sepultura ou da trasladação dos seus corpos — mas para
tratar disso não é este o lugar próprio. Basta o que já dissemos.
Quanto
aos bens necessários ao sustento dos vivos, tais como o alimento e o vestuário,
se é certo que a sua falta causa grave doença, também é certo que isso não quebra
nos bons a fortaleza perante o sofrimento, nem arranca da alma a piedade, mas
antes a torna mais fecunda pelo exercício. Quão menos se hão-de sentir
infelizes os justos quando lhes faltam com os cuidados que é costume empregarem-se
nos funerais e no sepultamento dos corpos dos defuntos — estando eles já em paz
nas misteriosas moradas dos santos! Por isso quando, no saque daquela grande
Urbe ou na de qualquer outra cidade, faltaram aos cadáveres dos cristãos estes
cuidados, não houve culpa dos vivos que os não podiam prestar, nem pena para os
mortos que a não podiam sentir [vi].
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] 1 Nolite timere eos qui corpus occidunt, animam autem non
possunt occidere.
Mat., X, 28.
[ii] 2 Qui corpus occidunt et postea non habent quod faciant.
Luc., XII, 4
[iii]
Posuerunt mortalia servorum tuorum escam volatilihus caeli, cames sanctorum
tuorum bestiis terrae; effuderunt sanguinem eorum sicut aquam in circuitu
Hierusalem, et non erat qui sepeliret.
Salmo LXXVIII, 2-3.
[iv] 4
Pretiosa in conspectu Domini mors sactorum ejus.
Salmo CXV, 15.
[v] 5 Caelo tegitur, qui non habet umam.
Lucano, Farsália,
VII, 819.
[vi] Honras
fúnebres.
Os pagãos ligaram às honras fúnebres uma
importância exagerada.
Receavam que os mortos voltassem para
apoquentar os vivos no caso denão lhes serem prestadas de forma condigna as
respectivas honras fúnebres.
Depois deles, também muitos cristãos julgavam
que os mortos não se levantariam no último dia ressurgindo, no caso de as suas
ossadas terem sido impiamente dispersadas ou de o seu corpo ter ficado insepulto.
Contra estes exageros e a pedido de Paulino
de Nola, escreveu Agostinho em 421 o tratado «De cura pro mortuis gerenda», expondo uma doutrina de respeito pelo
corpo humano que foi templo de Deus, habitáculo do Espírito Santo e órgão e
instrumento da alma para o bem, mas sem esquecer que para o cristão seria
indiferente que o corpo tenha sido queimado ou devorado ou inumado.
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