JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR
Iniciação à Cristologia
PRIMEIRA PARTE
A PESSOA DE JESUS CRISTO
Capítulo V
CRISTO ENQUANTO HOMEM CHEIO DE GRAÇA E DE VERDADE
4. A auto-consciência de Cristo
a) A auto-consciência de Cristo segundo algumas
teorias subjectivistas recentes.
A partir do
século XX a cristologia mostrou um especial interesse pela consciência que
Jesus tinha de si mesmo: se se sabia Filho de Deus e Messias. Sem dúvida, esta
tendência está relacionada com a evolução do pensamento filosófico moderno para
com a subjectividade, que reduz a realidade pessoal de Cristo á sua
auto-consciência.
Esta
concepção leva não só a pôr em Cristo um centro de consciência humano diferente
do Verbo, como a imaginar que essa consciência se reduz aos fenómenos psíquicos
humanos. Então, como poderia Jesus chegar a conhecer a sua identidade de Filho
de Deus?
Alguns
autores respondem negando que Jesus tivesse consciência da sua divindade. E
outros sustentam que Jesus, desde uma ignorância inicial pela qual se
considerava como um simples galileu, iria pouco a pouco tomando consciência de
ser o Filho de Deus e o Salvador do mundo (processo que não explicam
satisfatoriamente). De qualquer forma, esta consciência de Jesus nunca chegaria
a ser clara, nem sequer no final da sua vida na cruz, onde o vêm cheio de
dúvidas e de perplexa obscuridade sobre o sentido da sua vida e da sua morte.
Apesar de
que nada proíba que se façam indagações mais profundas acerca da humanidade de
Cristo com métodos psicológicos, estas teorias afastam-se da verdade pois levam
a cabo uma transposição unívoca da nossa psicologia para Cristo, o que não é
legítimo pois Ele não é um simples homem, mas Deus e homem, que, além do mais,
na sua humanidade possuía a visão de Deus. Deste modo, contradizem o que nos
diz a fé sobre a plenitude do conhecimento de Cristo, no qual não cabe a
ignorância, e chocam com o ensinamento da Escritura sobre a consciência de
Jesus acerca da sua divindade.
b) A auto-consciência e o «Eu» de Cristo
A auto-consciência de Cristo.
Jesus na
sua consciência humana tinha um claro e verdadeiro conhecimento de si, sabia
quem era: o Filho de Deus que veio a este mundo e se fez homem para nos salvar[1].
Os Evangelhos mostram-nos sempre que, essa auto-consciência, era rectilínea e
clara desde as suas primeiras palavras quando tinha doze anos: «Porque me procuráveis? Não sabeis que eu
devia estar em casa de meu Pai?» (Lc 2,49). Neste ponto também
poderíamos trazer à colação os textos da escritura que já vimos nos quais Jesus
expressa a consciência da sua identidade quando se designa como Filho de Deus,
ou afirma a sua pré-existência ao mundo, ou diz que é igual ao Pai, etc.
A unidade psicológica
Se nos
fixamos na palavra «eu» nos lábios de Jesus (palavra que expressa a sua
auto-consciência, comprovaremos que nos Evangelhos nunca aparece um eu humano
de Jesus e outro eu do Filho de Deus: nunca se sente e se mostra como um homem
diferente do Filho de Deus. Pelo contrário, na Escrituras aparece um único Eu
que expressa a sua unidade psicológica, que deriva da unidade ontológica da sua
pessoa: Ele é e sabe-se um só sujeito, o Filho de Deus feito homem. P. ex.: «Agora, Pai, glorifica-me ao teu lado (na
minha humanidade), com a glória que eu tinha junto de ti (como Filho eterno de
Deus) antes que o mundo existisse» (Jo 17,5).
Assim é
muito significativa a expressão «Eu sou» utilizada por Jesus, que recorda a
resposta dada por Deus a Moisés: «Eu sou
o que sou (…) assim responderás aos filhos de Israel: Eu sou vos manda» (Ex
3,14). Por exemplo: «Se não
acreditardes que Eu sou, morrereis nos vossos pecados» (Jo 8,24);
e também: «Quando levantardes ao alto o
Filho do homem, então conhecereis que Eu sou» (Jo 8,28), onde
Cristo fala da sua «elevação» mediante a cruz e a sucessiva Ressurreição: então
se manifestará claramente ante todos os homens quem é, que é deus.
Ora bem, no
intento de explicar «como» se podia formar essa auto-consciência n’Ele, a
opinião mais provável para os teólogos é que Jesus se sabia não só homem mas
também ao mesmo tempo Filho de Deus mediante o conhecimento de visão beatífica,
pela qual o seu intelecto humano gozava de um imediato conhecimento do Verbo.
Capítulo VI
OUTRAS CARACTERÍSTICAS QUE COMPLETAM A FIGURA DE
JESUS CRISTO ENQUANTO HOMEM
Para
completar o conhecimento de Cristo
enquanto homem, veremos agora outros traços que completam o quadro da sua
perfeita humanidade. Também aqui começaremos por examinar os problemas que
surgiram historicamente, e assim poderemos entender melhor o sentido e o
alcance da doutrina definida pela Igreja nessas ocasiões.
1. As heresias do monoergismo e do monotelismo. O
concílio III de Constantinopla
O monoergismo.
O patriarca
Sérgio de Constantinopla, em começos do século VII, para ganhar aos
monofisistas que continuavam muito activos, ensinou que Cristo, ainda que
tivesse duas naturezas, tinha uma única operação, pois sustentava que o obrar e
o actuar provem da pessoa, não da natureza.
O
monoergismo ou monoergetismo[2],
que Sérgio defendia e que o imperador Heraclito também sustentava, foi
eficazmente combatido sobretudo por Máximo o Confessor.
O monotelismo.
O imperador
Heraclito, que procurava a unidade religiosa para salvaguardar a já minada
solidez do Império, deixou de falar do polémico monoergismo e passou a
sustentar que havia uma só vontade em Cristo. E no ano 638, com um édito, impôs
o monotelismo a toda a Igreja[3]
Atribuía a
Jesus uma única vontade pois, segundo ele, a sua vontade humana estaria movida
por uma vontade divina sem que tivesse um querer humano próprio. Justificava a
sua tese aduzindo que os Santos Padres ensinaram que em Cristo a natureza
humana era instrumento da divindade; e como um instrumento não se move pela sua
vontade mas pela vontade de quem o utiliza, concluía que Cristo não possuía uma
vontade humana.
Máximo o
Confessor conseguiu que o papa Martinho I convocasse um concílio em Latrão (ano
681) que condenou os erros do monotelismo e do monoergismo[4]
O concílio III de Constantinopla (ano 681).
Quando
mudou a situação politico-religiosa do império convocou-se um concílio
ecuménico. Este concílio, sexto ecuménico y III de Constantinopla, condenou o
monotelismo e o monoergismo, e definiu solenemente que se «dão n’Ele (Cristo)
duas vontades naturais e duas operações naturais, sem divisão, sem mudança, sem
separação, sem confusão»[5]
Em
Constantinopla ficou claro que não é suficiente a confissão da integridade da
natureza humana de Cristo se se a considerar só como elemento passivo e inerte
nas mãos do Verbo, como uma simples fachada humana do Filho de Deus.
Este
concílio também ensinou que essas duas vontades e operações de Cristo não se
contrapõem, mas que se dão unidas: o humano está sujeito e segue o divino.
2. A vontade humana de Cristo
a) A existência de uma vontade humana de Cristo
O Verbo
assumiu uma natureza humana perfeita; e a vontade livre pertence, e de modo
essencial, á integridade e perfeição da natureza. Portanto, Jesus tem uma
vontade racional humana, a faculdade que inclina para o bem conhecida por inteligência.
Certamente
que a pessoa é «quem» quer e actua, mas fá-lo segundo a forma e poder da sua
natureza. Portanto, Jesus Cristo é quem quer segundo cada uma das suas
naturezas: tem um querer divino comum com o pai e o Espírito Santo, próprio da
natureza divina; e tem outro querer humano, próprio da sua assumida natureza
humana, que não partilha com o Pai ou o Espírito Santo.
Os
monoteletistas pensavam que a humanidade de Cristo era um instrumento do Verbo
que era unicamente movido pela divindade e não se determinava por si mesmo. E
enganavam-se, porque a humanidade de Jesus Cristo é um instrumento racional e
livre, não inerte ou inanimado, que se move segundo o sue próprio modo de ser:
move-se pela sua própria vontade humana a seguir o querer divino[6]
b) A liberdade humana de Cristo
A liberdade
humana de Cristo aparece explicitamente assinalada em alguns textos do Novo
Testamento. Por exemplo, quando diz: «Dou
a minha vida para tomá-la de novo. Ninguém ma tira, mas sou eu que a dou
livremente. Tenho poder para a dar e tenho poder para a recuperar» (Jo
10,17-18; cf. Mc 3,13). A existência de uma liberdade humana também é
assinalada implicitamente quando se afirma que Jesus obedeceu a seu pai, ou que
se ofereceu por nós em sacrifício (cf. Ef 5,2), ou que mereceu por nós
(cf. Flp 2,5-11); e sem liberdade não é possível obedecer nem
merecer.
O
Magistério da Igreja também ensinou expressamente a voluntariedade e a
liberdade com que Cristo se entregou por nós[7].
Ora bem,
que Cristo fosse livre não significa que pudesse pecar, pois a liberdade não
consiste em poder eleger o bem ou o mal. Assim como o erro não aperfeiçoa a
inteligência nem é conforme a ela, eleger o mal ou pecar não aperfeiçoa a
vontade nem é conforme a ela, ainda que mostre que o homem é livre. A liberdade
consiste no modo que a vontade tem de querer o bem: em querer o bem por si
mesma e não arrastada por nenhum outro factor interno ou externo. Como diz São
Tomás: «Livre é o que é causa de si mesmo»[8].
c) A sua livre obediência à vontade do Pai. Em
Jesus Cristo não houve oposição entre a vontade humana e a divina
O III
concílio de Constantinopla confessa que a vontade humana de Cristo sempre
«segue a sua vontade divina sem lhe fazer resistência ou oposição, mas sim,
pelo contrário, está sempre subordinada a esta vontade omnipotente»[9].
Efectivamente,
a Sagrada Escritura assinala que a vontade humana de Jesus não é outra que
cumprir o querer divino: «Baixei do céu
não para fazer a minha vontade mas sim a vontade d’Aquele que me enviou» (Jo
6,38). Já desde o momento de entrar neste mundo diz: «Eis-me aqui que venho (…) para fazer, oh
Deus!, a tua vontade» (Heb 10,7). Viveu sempre da vontade do Pai
(cf. Jo 4,34; 5,30), e foi obediente até à morte, e morte de cruz (cf.
Flp 2,8). Precisamente por esta obediência livre de Jesus todos somos
justificados (cf. Rom 5,19).
Ainda que o
III concílio de Constantinopla afirme que em Jesus Cristo não houve oposição
entre a vontade humana e a divina, à primeira vista parece que houve, pelo
menos no episódio da oração no horto de Getsemani, quando Jesus diz: «Não se
cumpra a minha vontade, mas a tua» (Mt 26,39).
Para
entender esta passagem, é necessário explicar que a sua inclinação natural ou
que a sua sensibilidade (a que às vezes também chamamos «vontade»[10])
podiam apetecer algum bem diferente do querer divino, mas estavam inteiramente
submetidas a ele pelo acto livre da vontade racional (que é a faculdade que
chamamos propriamente «vontade humana»).
Isto é manifesto quando se diz que não se faça «a minha vontade» (a vontade como inclinação natural e sensível), «mas faça-se» este é o acto da vontade
como eleição livre e racional). «a tua»
(a vontade divina) (cf. Mt 26,39).
Assim pois,
«Cristo possui duas vontades (…) não opostas, mas cooperantes, de forma que o
Verbo feito carne, na sua obediência ao Pai, tenha querido humanamente tudo o
decidiu divinamente com o Pai e o Espírito Santo para nossa salvação»[11].
(cont)
Vicente
Ferrer Barriendos
(Tradução do castelhano por ama)
[1]
COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, La
conciencia que Jesus tenia de si mismo y de su misión, em Documentos 1969-1996, BAC 587, p.
382-384.
[2] Em grego «energeia» significa poder,
actividade. Os termos monoergetismo ou monoergismo provêm de uma «operação ou
acção».
[3] Em grego «thélema» significa vontade. O termo monotelismo provem de «uma
vontade».
[4]
Cf. DS 500-515.
[5]
CONC. III DE CONSTANTINOPLA, DS 556.
[6]
Cf. S. Th. III, 18,1, ad 2; III,
20,1.
[7] Cf. DS, 423, 502.
[8] SÃO TOMÁS DE AQUINO, De Veritate, q. 24, a. 1; cf. S. Th. III,18,4.
[9] CONC. III DE CONSTANTINOPLA, DS, 556.
[10] V. g.: Dizemos de alguém que «fez a
sua vontade», referimo-nos a que fez o que lhe apetecia naturalmente ou guiando-se
simplesmente pela sua inclinação sensível.
[11] CCE, 475; cf. CONC. III DE
CONSTANTINOPLA, DS, 556-559.
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