12/12/2016

Leitura espiritual



JESUS CRISTO NOSSO SALVADOR

Iniciação à Cristologia


PRIMEIRA PARTE


A PESSOA DE JESUS CRISTO



Capítulo IV

O MISTÉRIO DA UNIDADE PESSOAL DE JESUS CRISTO

A distinção entre natureza e pessoa.

Esta distinção aparece mais clara ao considerar os indivíduos racionais ou pessoas possuidores de uma determinada natureza. Com efeito, comprovamos que existem muitos sujeitos ou indivíduos diferentes (p. ex. os homens) que possuem a mesma natureza (a condição humana).

A distinção entre uma natureza e a própria pessoa que a possui é uma distinção entre uma parte e o todo, entre a parte que lhe dá o modo de ser e o todo que existe realmente: p. ex. Pedro tem realmente uma natureza humana como algo próprio, e, além disso, possui outros elementos individuais exclusivos dele, não comuns a outros homens; Pedro é a pessoa, o todo, e a natureza é uma parte dele que o especifica.


b) A união absolutamente misteriosa e singular das duas naturezas em Cristo é hipostática, na pessoa.

Já vimos que Cristo não é um ser «só em algum sentido», com a unidade moral, extrínseca o acidental que pode existir entre dois sujeitos ou indivíduos subsistentes, um divino e outro humano, que formem uma comunhão de vida e de acção, como sustentava Nestório. Mas, por outro lado, essa unidade, real e ontológica, que afirmamos em Cristo, tampouco é segundo a natureza: não existe uma só natureza composta pela divina e a humana, como afirmava Eutiques.

A união das duas naturezas em Cristo é uma união hipostática ou na pessoa. Nosso Senhor «ainda que seja Deus e homem, não são dois Cristos, mas um só Cristo (…) um absolutamente (…) na unidade da pessoa»[1]. O Verbo, ao assumir a natureza humana de Maria Virgem, fê-la realmente sua, e começou a ser homem no tempo, sem deixar de ser o mesmo que era desde a eternidade. De modo que, depois da Encarnação, o Filho de Deus subsiste em duas naturezas: é Deus e também é homem.

Esta união é completamente misteriosa, não tem semelhança com nenhuma outra, e conhecemo-la unicamente pela fé. Os exemplos que se empregaram na catequese para ilustrar este mistério são simples analogias que servem só em parte, mas que distam dele noutros aspectos. O símil mais utilizado pela Tradição é a união da alma e do corpo[2]: a união de duas substâncias que formam no nosso caso uma só pessoa, e nisto serve de exemplo para a união da divindade e humanidade em Cristo. Mas não serve como exemplo noutros aspectos: p. ex. enquanto a alma e o corpo são duas substâncias incompletas, e este não é o caso da divindade nem da humanidade de Cristo; nem tampouco enquanto a união do corpo e alma se constitui uma só natureza.


c) A natureza humana de Cristo é íntegra e perfeita, mas não é uma pessoa humana, nem é um sujeito diferente do Verbo

O Filho de Deus assumiu uma verdadeira e perfeita natureza humana individual, composta de corpo e alma, e é em verdadeiramente homem. Daí surgiu que alguns conceberam a natureza humana de Cristo como um sujeito humano diferente da pessoa do Verbo, ainda que não o chamassem «pessoa», mas só «hypóstasis».

Contra estes, o quinto concílio ecuménico, II de Constantinopla, no ano 553 «confessou a propósito de Cristo: ‘Não há mais que uma só hypóstasis (ou pessoa), que é Nosso Senhor Jesus Cristo, uno da Trindade’ (DS, 424). Portanto, tudo na humanidade de Jesus Cristo deve ser atribuído à sua pessoa divina como seu próprio sujeito (cf. Conc. Éfeso: DS, 255), não somente os milagres mas também os sofrimentos (cf. DS, 424) e a própria morte: ‘O que foi crucificado na carne, nosso Senhor Jesus Cristo, é verdadeiro Deus, Senhor da glória e uno da santíssima Trindade’ (DS, 432)»[3].

A natureza humana de Jesus Cristo, ainda que real, criada, individual e concreta, não é uma hypóstasis ou uma pessoa humana, pois não é um subsistente, não é um todo completo em si mesmo que exista independentemente do outro, já que pertence propriamente ao Verbo que a assumiu, e foi levada de forma inefável à união do ser pessoal do Filho de Deus que pré-existia à união. De modo que o Filho de Deus, uno da santíssima Trindade, é o único subsistente, sujeito ou pessoa, na sua natureza divina e na sua natureza humana.

Afirmar que a humanidade de Cristo não é pessoa humana não significa diminuir ou tirar algo da verdadeira e real índole humana de Nosso Senhor, já que essa natureza á completa e perfeita, e não lhe falta nada que seja próprio dela. E tampouco rebaixa a condição e dignidade da sua humanidade o facto de não existir por si mesma e não constituir uma pessoa humana, mas sim, pelo contrário, «a natureza humana é em Cristo mais digna que em nós, porque no nosso caso ao existir por si tem a suam própria personalidade, todavia em Cristo existe a pessoa do Verbo»[4].

d) A pessoa de Jesus Cristo é divina, eterna e imutável na sua Encarnação e não formada pela união das naturezas: é pessoa do Filho de Deus

 Já sabemos que só se encarnou a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o Filho de Deus, como nos ensina a revelação e a fé da Igreja: as três pessoas divinas fizeram que a natureza humana se unisse á pessoa singular do Filho de Deus[5].

A Encarnação não supôs mudança alguma no Filho de Deus, que é imutável, como tampouco o supôs a criação. Somente se dá a mudança na natureza humana: inovação que consiste no facto de começar a existir elevada inefavelmente à união pessoal com o Verbo. A pessoa divina não adquiriu nenhuma perfeição nova, porque possui todas as perfeições da natureza humana, contidas de forma muito mais excelente na sua natureza divina.

A fé ensina-nos que a pessoa de Cristo é a pessoa eterna do Filho Unigénito de Deus. E o Verbo, desde antes dos séculos, tem o seu ser pessoal por geração eterna de Deus Pai. Portanto, a pessoa de Cristo não é causada pela união das duas naturezas, mas sim é eterna. Cristo não «é» ou existe pela sua natureza humana, mas sim que por ela «é homem». A pessoa de Cristo, depois da Encarnação, subsiste sem mudança alguma nas duas naturezas, mas não é formada por composição ou pela união de ambas.
Como consequência, a filiação de Jesus no que respeita a seu Pai não é adoptiva como a dos outros homens, mas si que é Filho de Deus por natureza, o Unigénito, o próprio Filho do Pai, pois d’Ele recebeu o seu ser pessoal por geração eterna[6]


3. A concepção subjectivista da pessoa e a sua incidência na cristologia

Com a mudança produzida por descartes no pensamento filosófico modificou-se também o conceito de pessoa. Se anteriormente se definia a pessoa em ordem da realidade e do ser, a partir deste autor tentar-se-á definir a partir da subjectividade; p. ex. como a auto consciência do próprio eu e do próprio psiquismo (no qual se contem toda a realidade pessoal), ou antes como a abertura e capacidade de relação com outro tu.
Quando se aplicam estas teorias subjectivistas a Cristo suscitar-se-á imediatamente o problema de imaginar em Jesus uma pessoa humana distinta do Verbo. Com efeito, se o que constitui e define a pessoa é a sua auto consciência, a humanidade de Cristo – que tem consciência da sua vida psíquica – será um sujeito humano.

a) Algumas teorias recentes sobre a personalidade de Jesus Cristo

Nessa linha de pensamento, alguns autores explicam que a personalidade consiste na abertura da consciência humana ao ser em geral, que no fundo é uma abertura ao infinito, quer dizer, a Deus. Por isso afirmam que em Cristo haveria um centro de consciência humano referido a outro centro de consciência divino; quer dizer, n’Ele encontraríamos duas subjectividades: uma divina (Deus) e outra humana (Cristo), ao que alguns autores chamam abertamente pessoa humana.

Então, como pode dar-se, em Cristo, uma unidade entre o humano e o divino? Como expressam anuidade entre essas duas subjectividades? – tentam explicá-la pelas operações existentes entre os dois centros de consciência: pelo conhecimento que essa pessoa humana tenha da divindade e pela comunicação ou revelação de si que Deus faça a essa pessoa humana. E assim dizem que «toda a realidade de Jesus» reside no facto de que a sua subjectividade humana está totalmente aberta ao infinito, em completa obediência ao Pai; e por isso pode receber a total auto doação de Deus que se revela plenamente: assim pois, Jesus será um ser humano no qual tem lugar a revelação suprema de Deus.


b) Crítica destas teorias

Estas teorias reduzem a cristologia a uma simples antropologia: Cristo seria uma simples pessoa humana igual a nós, um homem que tem uma relação mais intensa coma divindade, um homem especialmente santo; e não se poderia dizer com verdade que Jesus Cristo é Deus feito homem, tal como ensina a fé.

Essas teorias, além do mais, sustentam uma antropologia insuficiente que reduz a realidade de um ser a um dos seus actos: a pessoa seria a simples consciência de si. O que é um erro, pois toda a operação vital – como o é a consciência – requer um sujeito operante, que é a pessoa. Portanto a pessoa não se identifica com a sua consciência, nem se constitui por ela: a pessoa é quem tem essa consciência de si.

Por isso a Congregação para a Doutrina da Fé, em 1972, contestou esses erros como opostos à fé[7].

(cont)

Vicente Ferrer Barriendos

(Tradução do castelhano por ama)




[1][1] Símbolo Quicumque, DS, 76.
[2] Cf. Símbolo Quicumque, DS, 76: «Como a alma racional e o corpo formam um só homem; assim, Cristo é um, sendo Deus e homem».
[3] CCE, 468.
[4] S. Th. III, 2,2, ad. 2.
[5] S. Th. III,2,2 ad 2.
[6] Cf. DS, 595; 611; 619; 852. Entenderemos melhor esta verdade se tivermos presente que a filiação é uma relação de uma pessoa no que respeita a outra que a engendrou e lhe comunicou a sua natureza específica. Assim, a Filiação Divina  adoptiva é e relação do homem que recebeu a vida divina participada, a graça, respeitante a Deus que lha comunicou. Esta filiação adoptiva «não é uma qualidade sobrenatural» recebida de Deus que transforme o homem fazendo-o divino por participação, como o é a graça santificante, mas a subseguinte «relação» da pessoa que essa vida sobrenatural respeitante a Deus.
[7] Cf. CONGR. PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração, O mistério oi Filho de Deus, 3.

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