03/11/2016

Leitura espiritual



Leitura Espiritual


Amigos de Deus



São Josemaria Escrivá

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Mas se abundam os temerosos e os frívolos, nesta nossa terra muitos homens rectos, impelidos por um nobre ideal - ainda que sem motivo sobrenatural, por filantropia - afrontam toda a espécie de privações e consomem-se generosamente a servir os outros, a ajudá-los nos seus sofrimentos ou nas suas dificuldades.
Sinto-me sempre levado a respeitar, e mesmo a admirar a tenacidade de quem trabalha decididamente por um ideal limpo.
No entanto, considero minha obrigação recordar que tudo o que iniciamos aqui, se é empresa exclusivamente nossa, nasce com o selo da caducidade.
Meditai as palavras da Escritura: contemplei tudo o que as minhas mãos tinham feito e as canseiras que tive ao fazê-lo e vi que tudo era vaidade e vento que passa e que nada havia de proveitoso debaixo do sol.

Esta precariedade não sufoca a esperança.
Pelo contrário, quando reconhecemos a pequenez e a contingência das iniciativas terrenas, o trabalho abre-se à autêntica esperança que eleva toda a actividade humana e a converte em lugar de encontro com Deus.
Essa tarefa é assim iluminada com uma luz perene, que afasta as trevas das desilusões.
Mas se transformarmos os projectos temporais em metas absolutas, suprimindo do horizonte a morada eterna e o fim para que fomos criados - amar e louvar o Senhor e possuí-lo depois no Céu - os intentos mais brilhantes transformam-se em traições e inclusive em instrumento para envilecer as criaturas.
Recordai a sincera e famosa exclamação de Santo Agostinho, que tinha experimentado tantas amarguras enquanto não conhecia Deus e procurava fora d'Ele a felicidade: fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansa em Ti!
Talvez não exista nada mais trágico na vida dos homens do que os enganos padecidos pela corrupção ou pela falsificação da esperança, apresentada com uma perspectiva que não tem como objecto o amor que sacia sem saciar.

A mim, e desejo que a vós suceda o mesmo, a segurança de me sentir - de me saber - filho de Deus enche-me de verdadeira esperança que, por ser virtude sobrenatural, ao ser infundida nas criaturas, se acomoda à nossa natureza e é também virtude muito humana.
Sou feliz com a certeza do Céu que alcançaremos, se permanecermos fiéis até ao fim; com a felicidade que nos chegará, quoniam bonus, porque o meu Deus é bom e é infinita a sua misericórdia. Esta convicção incita-me a compreender que só o que está marcado com o selo de Deus revela o sinal indelével da eternidade e tem um valor imperecível.
Por isso, a esperança não me separa das coisas desta terra, antes me aproxima dessas realidades de um modo novo, cristão, que procura descobrir em tudo a relação da natureza, caída, com Deus Criador e com Deus Redentor.

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Em que esperar

Dado que o mundo oferece muitos bens, apetecíveis para este nosso coração, que reclama felicidade e busca ansiosamente o amor, talvez alguns perguntem: nós, os cristãos, em que devemos esperar? Além disso, queremos semear a paz e a alegria às mãos cheias, não ficamos satisfeitos com a consecução da prosperidade pessoal e procuramos que estejam contentes todos os que nos rodeiam.

Por desgraça, alguns, com uma visão digna mas rasteira, com ideais exclusivamente caducos e fugazes, esquecem que os anelos do cristão se hão-de orientar para cumes mais elevados: infinitos.
O que nos interessa é o próprio Amor de Deus, é gozá-lo plenamente, com um júbilo sem fim.
Temos comprovado, de muitas maneiras, que as coisas da terra hão-de passar para todos, quando este mundo acabar; e já antes, para cada um, com a morte, porque nem as riquezas nem as honras acompanham ninguém ao sepulcro.
Por isso, com as asas da esperança, que anima os nossos corações a levantarem-se para Deus, aprendemos a rezar: in te Domine speravi, non confundar in æternum, espero em Ti, Senhor, para que me dirijas com as tuas mãos agora e em todos os momentos pelos séculos dos séculos.

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O Senhor não nos criou para construirmos aqui uma Cidade definitiva, porque este mundo é o caminho para o outro, que é morada sem pesar.
No entanto, nós, os filhos de Deus, não devemos desligar-nos das actividades terrenas em que Deus nos coloca para as santificarmos, para as impregnarmos da nossa bendita fé, a única que dá verdadeira paz, alegria autêntica às almas e aos diversos ambientes.
Tem sido esta a minha pregação constante desde 1928: urge cristianizar a sociedade; levar a todos os estratos desta nossa humanidade o sentido sobrenatural, de modo que uns e outros nos empenhemos em elevar à ordem da graça a ocupação diária, a profissão ou o ofício.
Desta forma, todas as ocupações humanas se iluminam com uma esperança nova, que transcende o tempo e a caducidade do mundano.

Pelo Baptismo, somos portadores da palavra de Cristo, que serena, que inflama e aquieta as consciências feridas.
E para que o Senhor actue em nós e por nós, temos de lhe dizer que estamos dispostos a lutar em cada dia, ainda que nos vejamos frouxos e inúteis, ainda que sintamos o peso imenso das misérias pessoais e da pobre debilidade pessoal.
Temos de lhe repetir que confiamos n'Ele, na sua ajuda: se é preciso, como Abraão, contra toda a esperança.
Assim trabalharemos com renovado empenho e ensinaremos as pessoas a reagirem com serenidade, livres de ódios, de receios, de ignorância, de incompreensões, de pessimismos, porque Deus tudo pode.

211
        
Onde quer que nos encontremos, esta é a exortação do Senhor: vigiai!
Em face deste apelo de Deus, alimentemos nas nossas consciências os desejos esperançosos de santidade, com obras.
Dá-me, meu filho, o teu coração, sugere-nos o Senhor ao ouvido. Deixa-te de construir castelos com a fantasia, decide-te a abrir a tua alma a Deus, pois exclusivamente no Senhor acharás o fundamento real para a tua esperança e para fazer o bem aos outros.
Quando não lutamos connosco mesmos, quando não rechaçamos terminantemente os inimigos que estão dentro da cidadela interior - o orgulho, a inveja, a concupiscência da carne e dos olhos, a auto-suficiência, a tresloucada avidez da libertinagem - quando não existe essa peleja interior, os mais nobres ideais definham como a flor do feno; ao romper o sol ardente, a erva seca, a flor cai e acaba a sua vistosa formosura.
Depois, pela menor fenda brotarão o desalento e a tristeza, como plantas daninhas e invasoras.

Jesus não se conforma com um assentimento titubeante.
Pretende, tem direito a que caminhemos com inteireza, sem concessões às dificuldades.
Exige passos firmes concretos; pois, de ordinário, os propósitos gerais servem para pouco.
Os propósitos pouco delineados parecem-me entusiasmos falazes que intentam calar as chamadas divinas percebidas pelo coração; fogos fátuos, que não queimam nem dão calor e que desaparecem com a mesma fugacidade com que surgiram.

Por isso, convencer-me-ei de que as tuas intenções de alcançar a meta são sinceras, se te vir caminhar com determinação.
Faz o bem, revendo as tuas atitudes habituais quanto à ocupação de cada instante; pratica a justiça, precisamente nos ambientes que frequentas, ainda que a fadiga te vença; fomenta a felicidade dos que te rodeiam, servindo os outros com alegria no lugar do teu trabalho, com esforço para o acabar com a maior perfeição possível, com a tua compreensão, com o teu sorriso, com a tua atitude cristã.
E tudo por Deus, com o pensamento na sua glória, com o olhar no alto, anelando a Pátria definitiva, pois só esse fim vale a pena.

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Tudo posso

Se não lutas, não me digas que procuras identificar-te mais com Cristo, conhecê-lo, amá-lo.
Quando empreendemos o caminho real de seguir a Cristo, de nos portarmos como filhos de Deus, não se nos oculta o que nos aguarda: a Santa Cruz, que temos de contemplar como o ponto central onde se apoia a nossa esperança de nos unirmos ao Senhor.

Digo-vos desde já que este programa não é uma empresa cómoda; viver da maneira que o Senhor assinala pressupõe esforço. Leio-vos a enumeração do Apóstolo, quando refere as suas peripécias e os seus sofrimentos para cumprir a vontade de Jesus:
Dos judeus recebi cinco vezes quarenta açoites menos um. Três vezes fui açoitado com varas; uma vez apedrejado; três vezes naufraguei; uma noite e um dia estive no abismo do mar. Muitas vezes, em viagens, perigos de rios, perigos de ladrões, perigos dos da minha nação, perigos dos gentios, perigos na cidade, perigos no descampado, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e misérias, em muitas vigílias, com fome e com sede, com muitos jejuns, com frio e nudez. Além destas coisas exteriores, pesam sobre mim as ocupações de cada dia pela solicitude de todas as igrejas.

Gosto, nestas conversas com o Senhor, de me cingir à realidade em que se desenvolve a nossa vida, sem inventar teorias, nem sonhar com grandes renúncias, com heroicidades, que habitualmente não acontecem.
Importa que aproveitemos o tempo, que se nos escapa das mãos e que, segundo o critério cristão, é mais do que ouro, porque representa uma antecipação da glória que depois nos será concedida.

Logicamente, na nossa jornada, não toparemos com tais nem com tantas contradições como as que ocorreram na vida de Saulo. Nós descobriremos a baixeza do nosso egoísmo, os golpes da sensualidade, as investidas de um orgulho inútil e ridículo e muitas outras claudicações: tantas, tantas fraquezas.
Descoroçoar?
Não.
Com S. Paulo, repitamos ao Senhor: sinto complacência nas minhas enfermidades, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo; pois quando estou fraco, então sou mais forte.

(cont)


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