222
Misturado
com a multidão, um daqueles peritos que já não conseguiam discernir os
ensinamentos revelados a Moisés, ensinamentos emaranhados por eles próprios
numa casuística estéril, faz uma pergunta ao Senhor.
Abre
Jesus os seus lábios divinos para falar àquele doutor da Lei e responde-lhe
pausadamente, com a firme certeza de quem tem disso viva experiência: amarás o
Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito.
Este
é o maior e o primeiro dos mandamentos.
O
segundo é semelhante a este: amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Nestes
dois mandamentos estão contidos toda a Lei e os profetas.
Vede
agora o mestre reunido com os seus discípulos na intimidade do Cenáculo.
Ao
aproximar-se o momento da sua Paixão, o Coração de Cristo, rodeado por aqueles
que ama, abre-se em inefáveis labaredas: dou-vos um mandamento novo: que vos
ameis uns aos outros e que, do mesmo modo que eu vos amei, vos ameis uns aos
outros.
Nisto
conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.
Para
vos aproximardes do Senhor através das páginas do Santo Evangelho, recomendo
sempre que vos esforceis por participar em cada cena como um personagem mais.
Assim
- conheço tantas almas normais e correntes que o fazem! - recolher-vos-eis como
Maria, suspensa das palavras de Jesus, ou, como Marta, atrever-vos-eis a
manifestar-lhe sinceramente as vossas inquietações, mesmo as mais pequenas.
223
Senhor,
porque chamas novo a este mandamento?
Como
acabamos de ouvir, o amor ao próximo estava prescrito no Antigo Testamento e
recordareis também que Jesus, mal começa a sua vida pública, amplia essa
exigência com divina generosidade: ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo
e aborrecerás o teu inimigo.
Eu
peço-vos mais: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem e orai
pelos que vos perseguem e caluniam.
Senhor,
deixa-nos insistir: porque continuas a chamar novo a este preceito?
Naquela
noite, poucas horas antes de te imolares na Cruz, durante aquela conversa
íntima com os que - apesar das suas fraquezas e misérias pessoais, como as
nossas - te acompanharam até Jerusalém.
Tu
revelaste-nos a medida insuspeitada da caridade: como eu vos amei.
Como
não haviam de te entender os Apóstolos, se tinham sido testemunhas do teu amor
insondável!
O
ensinamento e o exemplo do Mestre são claros e precisos.
Sublinhou
com obras a sua doutrina.
E,
no entanto, tenho pensado muitas vezes que, passados vinte séculos, ainda
continua a ser um mandamento novo, porque muito poucos homens se têm preocupado
em levá-lo à prática; os restantes, a maioria, preferiram e preferem
desconhecê-lo.
Com
um egoísmo exacerbado, perguntam:
-
Para quê mais complicações?
Já
me bastam as que tenho com as minhas coisas.
Não
é admissível semelhante atitude entre os cristãos.
Se
professamos essa mesma fé, se ambicionamos verdadeiramente seguir as pegadas,
tão nítidas, que os passos de Cristo deixaram na terra, não podemos
conformar-nos com evitar aos outros os males que não desejamos para nós mesmos.
Isto
é muito, mas é muito pouco, quando compreendemos que a medida do nosso amor é
definida pelo comportamento de Jesus.
Além
disso, Ele não nos propõe essa norma de conduta como uma meta longínqua, como o
coroamento de toda uma vida de luta.
É
- e insisto que deve sê-lo para que o traduzas em propósitos concretos - o
ponto de partida, porque Nosso Senhor o indica como sinal prévio: nisto
conhecerão que sois meus discípulos.
224
Jesus
Cristo, Nosso Senhor, encarnou e tomou a nossa natureza, para se mostrar à
humanidade como modelo de todas as virtudes. Aprendei de mim, que sou manso e
humilde de coração, convida-nos Ele.
Mais
tarde, quando explica aos Apóstolos o sinal pelo qual os reconhecerão como
cristãos, não diz: porque sois humildes.
Ele
é a pureza mais sublime, o Cordeiro imaculado.
Nada
podia manchar a sua santidade perfeita, sem mácula.
Mas
também não diz: saberão que se encontram diante de discípulos meus, porque sois
castos e limpos.
Passou
por este mundo com o mais completo desprendimento dos bens da terra. Sendo
Criador e Senhor de todo o universo, faltava-lhe até um sítio onde pudesse
reclinar a cabeça.
No
entanto, não comenta: saberão que sois dos meus porque não vos apegastes às
riquezas.
Permanece
quarenta dias e quarenta noites no deserto em jejum rigoroso, antes de se
dedicar à pregação do Evangelho.
E
também não afirma aos seus: compreenderão que servis a Deus, porque não sois
comilões nem bebedores.
A
característica que distinguirá os apóstolos, os cristãos autênticos de todos os
tempos, já a ouvimos: nisto - precisamente nisto - conhecerão todos que sois
meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.
Parece-me
perfeitamente lógico que os filhos de Deus se tenham sentido sempre comovidos -
como tu e eu neste momento - perante essa insistência do Mestre.
O
Senhor não estabelece como prova de fidelidade dos seus discípulos os prodígios
ou os milagres inauditos, apesar de lhes ter conferido o poder de os
realizarem, pelo Espírito Santo.
O
que lhes comunica?
Conhecerão
que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.
225
Pedagogia Divina
Não
odiar o inimigo, não devolver mal por mal, renunciar à vingança, perdoar sem
rancor considerava-se então - e também agora, não nos enganemos - uma conduta
insólita, demasiado heróica, fora do normal.
Até
aqui chega a mesquinhez das criaturas!
Jesus
Cristo, que veio salvar todos os povos e deseja associar os cristãos à sua obra
redentora, quis ensinar aos seus discípulos - a ti e a mim - uma caridade
grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Cristo
nos ama a cada um de nós.
Só
desta maneira, isto é, imitando o exemplo divino - dentro da nossa rudeza
pessoal - conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um
modo mais elevado, inteiramente novo.
Que
bem puseram os primeiros cristãos em prática esta caridade ardente, caridade
que sobressaía e transbordava dos limites da simples solidariedade humana ou da
benignidade de carácter.
Amavam-se
uns aos outros de modo afectuoso e forte, através do Coração de Cristo.
Um
escritor do século II, Tertuliano, transmitiu-nos o comentário dos pagãos,
comovidos ao presenciarem o comportamento dos fiéis de então, tão cheio de
atractivo sobrenatural e humano: Vede como se amam, repetiam.
Se
notas que não mereces esse louvor agora ou em tantas ocasiões do dia-a-dia; que
o teu coração não reage como devia às exigências divinas, pensa também que
chegou o momento de rectificares.
Ouve
o convite de S. Paulo: façamos o bem a todos e especialmente àqueles que
pertencem, mediante a fé, à mesma família que nós, ao Corpo Místico de Cristo.
226
O
principal apostolado que nós, os cristãos, temos de realizar no mundo, o melhor
testemunho de fé é contribuir para que dentro da Igreja se respire o clima de
autêntica caridade.
Quando
não nos amamos verdadeiramente, quando há ataques, calúnias e inimizades, quem
se sentirá atraído pelos que afirmam que pregam a Boa Nova do Evangelho?
É
muito fácil, está muito na moda afirmar verbalmente o amor a todas as
criaturas, crentes e não crentes.
Mas
se quem fala assim maltrata os irmãos na fé, duvido de que na sua conduta haja
mais do que palavreado hipócrita.
Pelo
contrário, quando amamos no Coração de Cristo os que são filhos de um mesmo
Pai, associados na mesma fé e herdeiros de uma mesma esperança, a nossa alma
engrandece-se e arde em desejos de que todos se aproximem de Nosso Senhor.
Estou
a recordar-vos as exigências da caridade e talvez algum de vós tenha pensado
que falta precisamente essa virtude nas palavras que acabo de pronunciar.
Nada
mais oposto à realidade.
Posso
garantir-vos que, com santo orgulho e sem falsos ecumenismos, me enchi de
alegria quando, no passado Concílio Vaticano II, ganhava corpo com renovada
intensidade a preocupação de levar a verdade aos que andam afastados do único
Caminho, do de Jesus, pois me consome a ânsia de que se salve toda a
humanidade.
227
Sim,
foi bem grande a minha alegria, porque também via confirmado novamente um
apostolado tão da predilecção do Opus Dei, o apostolado ad fidem, que não
rejeita nenhuma pessoa e admite os não cristãos, os ateus, os pagãos a
participarem, na medida possível, dos bens espirituais da nossa Associação.
Isto
tem uma longa história, de dor e de lealdade, que já contei em outras ocasiões.
Por
isso repito, sem medo, que considero um zelo hipócrita, embusteiro, o que
impele a tratar bem os que estão longe, pisando ou desprezando os que vivem connosco
a mesma fé.
Também
não acredito que te interesses pelo pobre mais pobre da rua, se martirizas os
de tua casa, se és indiferente às suas alegrias, às suas penas e aos seus
desgostos e se não te esforças por compreender ou por passar por alto os seus defeitos,
sempre que não sejam ofensa a Deus.
(cont)
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